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Djamila Ribeiro: afeto, ancestralidade e cura

Com seus livros no topo dos mais vendidos, Djamila se tornou um fenômeno no Brasil. Como ela defende, não precisamos ser uma coisa ou outra, somos muitas

Por Paula Jacob
Atualizado em 28 jul 2022, 17h58 - Publicado em 8 jul 2022, 08h10

Estar na presença de Djamila Ribeiro é um deleite de nuances: como num entardecer, as transformações acontecem com naturalidade e graça. Da mesma forma solar que sorri, ela debate temas profundos sem hesitar, olho no olho. Uma das filósofas e escritoras brasileiras mais relevantes da atualidade existe em plenitude em todas as esferas. Foi então num cenário ao mesmo tempo imponente e acolhedor, o hotel Rosewood, em São Paulo, que CLAUDIA dividiu uma tarde com ela, para falar sobre essa coisa tão humana de sermos complexos em nossas ações e gostos.

Ocupando um lugar na Academia Paulista de Letras que antes era de Lygia Fagundes Telles, Djamila é firme com a literatura. Não basta publicar, é preciso tirar do papel as teorias e praticá-las. Ela inaugurou o espaço do selo Feminismos Plurais, dedicado a unir as frentes do combate à violência contra a mulher. Leva os títulos da coleção para eventos e debates na Europa: são seis em francês, dois em italiano, um em espanhol, e, em breve, em inglês e alemão.

Djamila Ribeiro para Claudia
Foto da entrevista de capa da edição de julho de CLAUDIA. (Camila Tuon (CeGê)/CLAUDIA)

“Nosso pensamento não é colocado no debate internacional como algo a ser considerado. Traduzir esses livros é também um movimento político de não aceitar essa invisibilização”, diz ela, que ainda lançou um curso sobre jornalismo contra-hegemônico. E, assim, segue elaborando um futuro que rompe com as lógicas coloniais. Não à toa, foi laureada com o prêmio Prince Claus, maior honraria do governo holandês para quem tem atuações notáveis no campo da cultura e do desenvolvimento. Por aqui, ela está em turnê com o seu Cartas Para a Minha Avó, livro que reconstrói a história das mulheres de sua família. “Fui formatada na universidade, tinha que me provar o tempo todo. E isso refletiu na dificuldade de falar sobre mim.”

Djamila Ribeiro para Claudia
Djamila veste saia, terno e joias, tudo Dior. (Camila Tuon (CeGê)/CLAUDIA)

O sucesso se soma aos milhares de exemplares vendidos de Lugar de Fala (2017), Quem tem Medo do Feminismo Negro (2018) e Pequeno Manual Antirracista (2019). Para o segundo semestre, tem ainda o lançamento de Cotas Raciais, da promotora Livia Sant’Anna, 13º título da coleção Feminismos Plurais, e o Feminismo Dalit, escrito por mulheres da casta mais inferiorizada da Índia e traduzido por brasileiras. Quem vê apenas esses números e feitos e prêmios e viagens, muito importantes não só para ela, mas para os brasileiros, deixa de lado a Djamila que gosta de plantas, de música, de dança, de candomblé, de amor, essa que se mostra na entrevista a seguir.

Djamila Ribeiro para Claudia
Camisa, Belloni, e casaco, Jakke, ambos na Casa Cipó; calça, Maria Filó. Bracelete, anel e brincos, tudo Bulgari. (Camila Tuon (CeGê)/CLAUDIA)

Na escrita de Cartas Para a Minha Avó, você ressignificou a sua ancestralidade feminina?
Sim, foi um processo. Eu fui criada para não ser como a minha mãe foi, aquela mulher independente, que trabalha. E, claro, eu sou isso. Mas, [escrevendo o livro], percebi o quanto as pessoas valorizavam o papel do meu pai na minha vida, que me incentivou nos estudos (o que, de fato, fez). Mas tinha alguém ali que cozinhou a minha comida, cuidou de mim, lavou meu uniforme. É um livro onde quatro mulheres se conectam, quebrando ciclos, colocando isso num lugar de afeto e não de disputa. Curar meu feminino me torna uma mãe melhor e auxilia a Tulane [a filha, de 17 anos]. É uma memória para que ela saiba de onde partiu e valorize isso.

Depois de ter publicado três livros teóricos, você lança Cartas Para Minha Avó, o seu livro mais pessoal. O que te inspirou a colocar em palavras e organizar essa construção do feminino na sua família?

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Pequeno Manual Antirracista foi e tem sido um grande sucesso, por isso meu editor propôs que eu escrevesse um novo livro no mesmo estilo, só que voltado para crianças. Fui resistente porque não queria fazer outro tão próximo. Mas, quando sentei para escrever, saíram 32 páginas do Cartas Para a Minha Avó. Ele faz parte de um processo meu de maturidade. Fui formatada na universidade, estudava temas que os professores não legitimavam – Simone de Beauvoir e outras filósofas –; precisei pegar a melhor bolsa, fazer congressos internacionais. Enfim, precisava mostrar que eu sabia fazer o que estava fazendo. Depois desses anos todos, refleti sobre “o que eu preciso provar e para quem?”. Tinha uma dificuldade imensa de falar sobre mim, mesmo lendo mulheres que fazem isso, feministas negras que se colocam nos textos. Este livro se impôs a mim, me fazendo entender que eu precisava relaxar e deixar fluir.

Muitas pessoas te colocam num lugar bastante acadêmico, de pensamento social. Trazer esse livro foi alguma questão para você no sentido de mostrar um lado mais vulnerável?

Não fiquei preocupada com o que estava escrito, sabia que era importante, mas foi muito doloroso. Eram lutos e dores que achei que já tivesse elaborado. Chorei demais, precisei me afastar e depois voltar. Apesar de ter sido o mais difícil de todos, foi o que me deu mais satisfação. Me conectar com mulheres, as da minha família e as leitoras que me escrevem até hoje.

No livro, você fala sobre o afeto de outras mulheres negras “como se reencontrar com uma história da qual fui apartada”. O que esse afeto tem a contribuir para a sociedade?
Precisei olhar para a minha mãe por esse lugar do afeto, porque ela era uma mulher brava. Eu e meus irmãos fomos criados sem muito espaço para sermos quem éramos. Se fazíamos coisas erradas, apanhávamos e ficávamos de castigo. Essa coisa de não poder errar, de fazer as coisas do jeito que ela queria que a gente fizesse. E por muito tempo não compreendi isso na minha mãe. Depois de um tempo que fui entender porque ela era assim. Ela tinha muito afeto, mas também foi brutalizada. Acredito que faz parte desse afeto a gente humanizar essas mulheres, isso não quer dizer que a gente precise concordar com elas, mas, sim, devemos olhar para o contexto. Minha mãe também apanhou muito da minha avó. E eu já quebrei esse ciclo na educação com a minha filha. Olhar para isso também me fez humanizar a minha avó, que, por sua vez, tinha suas questões com a minha mãe. Reconstruir é importante para não repetirmos esses ciclos de violência, e também para entender que muitas das atitudes vieram, sobretudo, pela falta de amor que elas tiveram na vida delas. Mas mesmo assim elas amaram. O amor é revolucionário por causa disso: a gente cura a nossa linhagem, humaniza e para de culpar as outras mulheres.

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Grada Kilomba diz sobre “ter a liberdade de ser você”. O que você entende disso?
Precisei internalizar essa frase. Uma vez inseridos em movimentos sociais, achamos que temos que ser de um jeito só. Com o tempo, a gente percebe que gosta de fazer outras coisas. E precisamos nos permitir mostrar quem somos, independente da opinião alheia. O candomblé me ajudou nesse processo de libertação. Aprendi a lógica da encruzilhada, aquela do “e”, que se difere da lógica colonial-patriarcal do “ou”, sempre em oposição. Eu sou ativista e gosto de comédias da Sandra Bullock e de ouvir Whitney Houston e de cuidar das plantas e de ser mãe e de trabalhar.

Djamila Ribeiro para Claudia
Vestido, Apartamento 03. Brincos e colar, Rose Benedetti. Sapatos, A-Aurora. (Camila Tuon (CeGê)/CLAUDIA)

Sua relação com a ancestralidade também vem de um lugar religioso, do candomblé. Citando Gilberto Gil, você acredita que devemos “andar com fé”?
Sem fé, não tem como seguir. Sou devota dos orixás, e nesses arquétipos é possível também conhecer as nossas potências e desafios. Muitas pessoas atribuem ao deus que elas acreditam todas as coisas como se não tivessem que fazer nada. Mas a ética e o bom caráter são fundamentais. Para o candomblé, nossos ancestrais são honrados também pelas nossas atitudes. Não adianta pedir aos orixás e prejudicar as pessoas. O que não significa uma fé num lugar cego. Me considero uma mulher de muita fé porque ela é alimentada pelo nosso comportamento. Se alguma coisa me acontece, não vou atribuir a culpa disso aos orixás. Independente de qualquer coisa, eles estão olhando por mim, direcionando o meu caminho, mas isso também depende de mim e do quanto estou atenta aos meus passos. 

Falando de Gil, você é uma pessoa bastante ligada à música. De onde veio essa conexão? 

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A minha casa era muito musical. Meu pai tinha uma coleção de discos e, por meio deles, sabíamos se ele estava feliz ou triste. Cresci ouvindo samba, MPB e jazz. Minha mãe adorava Elis Regina, então minhas referências eram essas. Hoje, acabo escutando músicas antigas por conta disso. Sou muito musical, mas não toco nenhum instrumento. Tenho vontade de aprender a tocar piano. A música tem essa coisa de me despertar memórias, da época da faculdade, do nascimento da minha filha…

Agora, sobre literatura: você deu mais um passo com a iniciativa Feminismos Plurais. Por que era importante marcar esse projeto num ambiente físico?
Era um sonho antigo. Quando começamos a coleção, em 2017, não tínhamos dinheiro algum. Fizemos as coisas como deu, carregando livro na mala, ocupando os espaços públicos. O objetivo sempre foi dialogar com as massas, algo que não ficasse exclusivo aos espaços acadêmicos ou ativistas. O desejo foi aumentando à medida que lançamos os títulos, também pelo Selo Sueli Carneiro [do qual Djamila é coordenadora], até que um amigo me disse que gostaria de ajudar cedendo um espaço. A vontade era de juntar literatura com esse lugar de acolhimento. Agora, temos biblioteca, salas de pesquisa com wi-fi, atendimentos psicológico e odontológico, e, em breve, orientação jurídica.

Ali, você também gravou e lançou, em parceria com o YouTube e a ABRAJI, o curso de jornalismo contra-hegemônico. Você acredita que esse olhar mais diverso auxilia no tratamento das pautas?
Diversificar fontes é essencial por vários motivos. Um deles é parar de chamar, por exemplo, pessoas negras para datas ou acontecimentos específicos. Outra coisa é também evitar o “a polícia fez uma operação na favela”, quando, na verdade, ocorreu uma verdadeira chacina. O que é essa operação? Ninguém explica, nem discute porque a periferia ainda é mostrada pelo viés da criminalização. Não tem reportagem sobre a escola feminista de Heliópolis (SP) ou as iniciativas que a população periférica comanda. Ou criminaliza ou torna isso um espetáculo. E as pessoas num geral não entendem que isso está ligado ao racismo estrutural, ao encarceramento em massa.

Djamila Ribeiro para Claudia
Saia, camisa, top e joias, tudo Dior. (Camila Tuon (CeGê)/CLAUDIA)

O candomblé me ajudou nesse processo de libertação. Aprendi a lógica da encruzilhada, aquela do “e”. Eu sou ativista e gosto de comédias da Sandra Bullock e de ouvir Whitney Houston e de cuidar das plantas e de ser mãe e de trabalhar

Djamila Ribeiro

E, mesmo em 2022, muitas pessoas ainda deslocam os movimentos sociais da pauta da proteção do meio ambiente. Você acredita na intersecção dessas temáticas?
É fundamental elas estarem ligadas. Os movimentos sociais sempre foram tratados de maneira específica, quando a questão é de raça, classe e gênero. Como disse Angela Davis, “a raça forma a classe”: a mulher negra está na base da pirâmide social porque entrecruza essas linhas. Assim como a pauta ambiental precisa estar na pauta antirracista, por conta do genocídio dos povos indígenas. O racismo ambiental também inclui espaços mais pobres, sem infraestrutura e saneamento básico. E o Estado não se preocupa porque são, justamente, bairros negros ou territórios indígenas. Esses problemas são estruturais e estão interligados. Não tem como falar de feminismo sem antirracismo, e de antirracismo sem proteção ambiental e por aí vai. Caso contrário, a gente desmobiliza as ações e perde a complexidade dessas questões.

Como é traduzir e estar com pensadores brasileiros em espaços que sempre foram vistos como cânones do pensamento?
A ideia da internacionalização da Feminismos Plurais sempre existiu. Quem produz pensamento crítico em português acaba ficando isolado inclusive na América Latina. Lélia Gonzalez já falava sobre isso, do Norte global se impor ao Sul, e o quanto as políticas de tradução também seguem uma lógica colonial. Aqui no Brasil, traduzimos tudo o que vem da Europa e dos Estados Unidos, mas o movimento contrário não acontece. As feministas negras estadunidenses falam de teorias, hoje, que a própria Lélia disse nos anos 1980. Quando digo isso a elas, se surpreendem porque não a conhecem. E eu digo: “claro, vocês não traduzem a gente por aqui”. A via não é de mão dupla. Nosso pensamento não é colocado no debate internacional como algo a ser considerado. Por isso, traduzir esses livros é também um movimento político de não aceitar essa invisibilização.

Agora, você ocupa o lugar que antes foi de Lygia Fagundes Telles na Academia Paulista de Letras. Sendo a primeira mulher negra nesse espaço, o que você escreveria para a sua avó?
Boa pergunta. As pessoas, muitas vezes, falam que seria muito legal que meus pais e minha avó estivessem vivos para ver esses feitos acontecendo. Mas, como eu acredito na continuidade, sei que eles estão vendo. Carla Akotirene fala que quando a gente se torna visível, limpamos essa linhagem de ancestrais que foram apagados, mal tratados. No candomblé, o Aiê (Terra) reflete no Orum (onde as pessoas que morrem ficam). Então, penso que a minha avó está lá, contente, falando da “minha neta de Santos”.

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Seu companheiro, Breno, sempre te acompanha, te elogia e te enaltece. O que esse amor, que é tão bonito de ver, significa para você?
Ele me alimenta muito, porque a nossa relação é de troca e cumplicidade. As pessoas têm curiosidade de conhecê-lo porque “ai, é muito difícil uma mulher como você, forte, com vida pública ter um companheiro que está ao lado”. Mas não deveria ser assim, né? Essa relação, para mim, também está num lugar de cura. A gente passa por relacionamentos que temos que anular nossas conquistas e desejos por conta do outro. Ele não tem problema de estar com uma mulher que brilha. Ele cuida de mim e da Tulane, e isso me fortalece, me dá paz, calma. Claro que, vez ou outra, precisamos alinhar as coisas, posto que é homem (risos), mas a masculinidade dele é muito bonita, sem agressividade ou sem a necessidade de diminuir a companheira. O amor que compartilhamos me fortalece porque me sinto plena para ser quem sou.

Fotos: Camila Tuon (CeGê)
Styling: Gabriela de Paula (CeGê)
Beleza: Beatriz Alves de Araújo
Cabelo: Virgínia Alvez Grazia
Direção de arte: Kareen Sayuri
Assistente de foto: Ádima Macena
Produtora de Moda e Assistente de Styling: Carol Santos
Camareira: Maria José dos Santos
Beleza feita com produtos da linha Capture Youth (Age-delay Advanced Creme e Intense Rescue), Forever (Skin Glow, Skin Correct e Perfect Fix), Addict (Lip Glow) e Blackstage (Eye Palette 004), tudo da Dior.

 

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