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Fugas e Residências, por Nara Vidal

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Nara Vidal é autora dos romances “Eva” e “Sorte”, e do livro de contos “Mapas para Desaparecer”. Nascida em Guarani (MG), ela é formada em letras pela UFRJ com mestrado em artes e herança cultural pela London Met University. Direto de Londres, escreve para CLAUDIA sobre as múltiplas experiências da vivência feminina.
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O silêncio na relação entre irmãos

O amor é sempre difícil de viver porque parte de dois conceitos também difíceis de praticar: a liberdade do outro ser quem é e o cultivo da relação

Por Nara Vidal
11 jun 2023, 18h53
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  • Estava no jardim de casa, quando ouvi um farfalhar na árvore. Adoro a palavra farfalhar, mas quase nunca acontece de conseguir usá-la. Achei que o agito nas folhas fosse a construção de um ninho. Eu me sentei na borda de um canteiro para ficar olhando. Mas o passarinho me parecia apreensivo, tenso, voava um pouco desorientado, voos rasantes, pios estridentes. Resolvi voltar para dentro de casa e, da janela, continuei a observá-lo. Não demorou muito, o passarinho sai da copa da árvore carregando pelo bico um outro passarinho, mas morto. Nunca mais ele voltou. Achei justo: quem quer viver onde viveu a morte? 

    Desde criança, pensava em morte como o contrário de vida. Havia até exercícios na escola, aqueles de antônimos. Parece-me, contudo, mais um complemento do que um polo oposto. Como quando, por exemplo, notamos o brilho nunca visto do azul antigo em contraste com o cinza. O opaco que destaca o brilho. O corpo diminuto do passarinho morto não foi deixado ali no jardim da minha casa. Foi levado não sei para onde; imagino que para perto de onde vive o passarinho que o levou embora. Não é possível nos livrarmos dos nossos mortos. Mas não é possível carregarmos o peso morto.

    No mês passado, uma amiga me relatou algo difícil: havia cortado relações com os irmãos. Imaginei que a razão tivesse sido alguma diferença ideológica e de difícil conciliação. A verdade era mais dura. O corte era que naquela relação entre irmãos, havia um desequilíbrio: ela estava sozinha. No caso, sozinha, não é palavra empregada em seu uso metafórico. Ela estava mesmo sozinha. Estava casada com um homem que não amava mais, os filhos saindo para a universidade, os irmãos em outro continente ligados pelo fragilíssimo fio do passado. Ela também já não tinha mãe e pai. Às vezes, se chamava de órfã. Eu ria porque me parecia uma briga dela para morar na infância, como alguém que depois dos trinta ainda rói as unhas. Minha amiga precisa crescer, ela me dizia. Mas não precisamos todos? Ou precisamos?

    Nesse momento que passei com ela, nos debruçamos sobre uma relação tão pouco falada e tão complexa que é a relação entre irmãos, pessoas que você aprende que deve amar incondicionalmente, como se amar incondicionalmente fosse natural. Ela me contou da infância feliz, família grande, sempre rindo, sempre muito querida por todos, sempre um exemplo (não sabemos de quê) para amigos e parentes.

    Quando ela saiu de casa e os outros ficaram na mesma cidade, ela imaginou que pudesse fazer coisas lindas. E durante muitos anos, ela quis para os irmãos o que quis para ela, se convencendo de que eles precisavam viver as mesmas experiências que ela vivia porque eram as mais interessantes. Essa imaturidade foi, aos poucos, sendo vencida pelo tempo, pelo cansaço. A relação com os irmãos se manteve, na maior parte do tempo, agradável, especialmente quando ninguém tinha problemas; ou quando ninguém trazia problemas para a conversa.

    Ela passou a sentir que, bastava uma divergência ou fragilidade, e os irmãos, numa completa inadequação ou improviso na inteligência emocional, diziam para ela que tudo ficaria bem e que, curioso isso, se precisasse de alguma coisa, eles, irmãos que são, estariam sempre ao lado dela. Uma vez, passou o dia do seu aniversário com dor de cabeça de tanto chorar porque uma das irmãs, a que respeitou tanto, tinha uma dinâmica cruel de lidar com ela.

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    Cristalizadas numa infância, a minha amiga cresceu para respeitar e admirar a irmã mais velha. A irmã mais velha, com dramas íntimos muito peculiares e sem análise, exercia na mais nova uma espécie de autoridade silenciosa, insidiosa, de palavra final, de juízo. Quando se desentendiam, mesmo que tivesse sido uma falha da mais velha, era a mais nova, desesperada pela aceitação da irmã que se desculpava, desaguando, aí então, as duas, num choro catártico de promessa de amor pelo passado, pelos laços fortes.

    O silêncio na relação entre irmãos, por Nara Vidal
    (Galt Museum & Archives/Unsplash)

    Aos poucos, minha amiga começou a entender que a relação trazia um grau de toxicidade. Nunca intencional. De fato, essas coisas são naturalizadas e quando não há conversa, reflexão, pedido honesto de desculpas pelas falhas cometidas de todos os lados, as intenções sempre são boas. Ninguém quer, afinal, cortar relações, alterá-las, desequilibrá-las e chegar ao osso das coisas. Porque, às vezes, os ossos são tão porosos que a fragilidade fica ali, tão nítida que chega a doer os olhos. 

    Enquanto eu ouvia a minha amiga, pensei na minha própria relação com as minhas irmãs. Relação de afeto, mas também relação que falha, às vezes, e que eu não mais me permito tratar como se fosse uma garantia. Não é obrigação das minhas irmãs sentirem amor por mim. A fantasia de que os amores e as relações familiares são uma garantia e à prova do tempo, dos abalos sísmicos e furacões é muito nociva.

    O amor é sempre muito difícil de viver porque parte de dois conceitos também difíceis de praticar: a liberdade do outro ser quem é e o cultivo da relação. Por isso, é impossível amarmos muita gente. Uma relação dedicada de amor só consegue ser preservada com tempo para escuta, acolhimento, socorro, pedidos de desculpas quando o outro se sente violado, ofendido, abandonado. Estender a mão não é fácil, porque quando estendemos a mão, estamos dando ao outro nosso tempo, nossa paciência, nossa boa vontade, mas não na teoria, na prática. E, vamos lá, quem tem tempo de cuidar do outro? Por isso, muitas relações, de irmãos inclusive, se firmam na superfície. Nas amenidades. Não é culpa de ninguém, mas pode ser uma pena para todos. 

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    Penso numa tia que começou a fazer análise. Na época, psicanalistas, psicólogos e seus pacientes sofriam todo tipo de preconceito e julgamento. Eu me lembro da minha mãe rindo da irmã que, de repente, começou a falar o que dava na cabeça, que havia cortado relações com uma tia que era cruel com ela, tóxica, mas que, por ser da família, nunca teve questionada sua validação.

    Acho que deve ter doído pra minha tia fazer esses cortes. Mas, com o tempo, ela se fortaleceu, entendeu que relações não são heranças que precisamos carregar como pesos mortos. Relações com mães, pais, tios, amigos de infância e, claro, com irmãos também, são difíceis, podem ser manipuladas, podem estar cristalizadas, podem ser tóxicas e de controle. Talvez, o mais complexo disso é que, raramente, todas as partes entendem essas questões concomitantemente. 

    Não houve conclusão na conversa com a minha amiga. Mas ela se fortalece, ainda que esteja, vez ou outra, quebrada. Pode ser que seja um processo porque se conhecer por dentro, acender a luz desse nosso profundo e vasculhar os cantos requer valentia. Acho que jogar essa poeira para o alto e lançar essas questões são atos corajosos.

    E para as minhas duas irmãs mando, aqui pelo texto, meu carinho infinito. Como o passarinho do meu jardim, carregamos interseções.

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