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Elas, Nós por Elizabeth Cardoso

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Doutora em Teoria Literária pela USP, Elizabeth Cardoso (@elizabethcardoso357) é escritora e professora do Programa de Pós-graduação em Literatura e Crítica Literária na e do Programa de Educação: Psicóloga da Educação, na PUC-SP. Na academia, pesquisa literatura de ancestralidade negra, do romance contemporâneo, da literatura infantil e da formação de leitores de literatura.

Elas, nós

Ficcionalizar a vida real, realizar a ficção: nesta coluna de estreia, uma homenagem à Stella do Patrocínio

Por Elizabeth Cardoso
1 jul 2023, 08h00
Stella do Patrocínio por Elizabeth Cardoso
 (Colagem e ilustrações Jessica Hradec/CLAUDIA)
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O dia estava ensolarado e o asfalto ardia vertendo água em meus olhos. Difícil mantê-los abertos a claridade cegava e tornava as pessoas vultos que passavam por mim anonimamente. Mas alguém estava falando, falando … Uma voz ardida nas consoantes e doce nas vogais, não eram gritos auditivos, mas eram gritos semânticos, uma melodia alternadamente mineira e carioca com um corte agudo que me lembrou São Paulo. Esfreguei o olho com os dedos, cobri a testa com a palma da mão, curvei as costas, tentei encarar a voz e ouvir o rosto, era uma moça magra, mas de rosto cheio, cabelos selvagens que gritavam “basta!” ecoando por toda pele que murmurava “não aguento mais”. Percebi que meu olhar encontrou sua voz porque seu corpo preto emoldurou a claridade de Botafogo, destacando-se como água na brasa. 

Eu sei que você é uma olho, é uma espiã que faz espionagem, é um fiscal é um vigia também. É uma criança prodígio precoce poderes milagre mistério. É uma cientista, já nasce rica e milionária. Eu tô sabendo porque as aparências não se enganam.

Perscrutei o ambiente, estávamos sozinhas. Tive vergonha de dizer que não sabia quem eu era e que na verdade me sentia assim também, olhada, roubada de mim pelo julgamento dos outros. Mas não tive folego. Quis sentar ao seu lado e imitá-la com um solilóquio íntimo que ao encontrar suas palavras ganharia sentido. 

E eu não sou da casa, não sou da família, não sou do ar, do espaço vazio, do tempo, dos gases…, não sou do tempo, não sou dos gases, não sou do ar, não sou do espaço vazio, não sou do tempo, não sou dos gases…, não sou da casa, não sou da família, não sou dos bichos, não sou dos animais… sou de deus, um anjo bom que deus fez para sua glória e seu serviço.

Criei coragem, me aproximei balbuciei três palavras baixinho querendo saber seu nome e de onde ela veio. Sua resposta eram palavras livres que não queriam ser rimas, mas insistiam em filosofar. 

É dito: pelo chão você não pode ficar, 

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Porque lugar de cabeça é na cabeça  

Lugar de corpo é no corpo,  

Pelas paredes também você não pode,  

Pelas camas também você não vai poder ficar,  

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Pelo espaço vazio também você não vai poder ficar,  

Porque lugar de cabeça é na cabeça  

Lugar de corpo é no corpo. 

Eu sou Stella do Patrocínio Bem patrocinada

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Um homem chegou me ignorando. Não gostou de eu estar ali com ela. Seu marido? Sem resposta, eu já não estava mais na conversa. O sol voltou a me cozinhar. Os dois deram alguns passos. Eu fiquei parada, ouvindo. Discutiram. Discordaram. Ela começou a falar mais alto, sua falação enfurecida chamou a tenção dos vultos. O homem se afastou foi até um bar por perto, quando estava voltando com um copo de água para a companheira assustou-se com a chegada polícia e ao longe eu e ele vimos Stella ser algemada e empurrada para dentro do camburão enquanto ela gritava 

eu sou escrava do tempo do cativeiro. Fui do tempo da… tua, da tua bisavó da tua vó da tua mãe… agora eu sou do teu tempo. O tempo é o gás o ar o espaço vazio. A gente que passa.

Água do copo evaporou no asfalto. E a cidade seguiu seu ritmo.

Stella do Patrocínio
A poeta Stella do Patrocínio. (Arquivo/Reprodução)
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Soube depois que Stella do Patrocínio, mulher negra, nascida em 1941 no Rio de Janeiro, tinha 21 anos de idade naquele dia em que foi levada ao pronto socorro onde foi diagnosticada com esquizofrenia e internada no Hospital D. Pedro II, onde ficou até 1966, quando foi transferida para a Colônia Juliano Moreira, onde morreu com 51 anos de idade. 30 anos de internação psiquiátrica. 

Uma vida sem casa, sem família, amigos, lazer, trabalho, amor, qualquer tipo de privacidade ou reconhecimento de subjetividade. Um corpo atravessado por eletrochoques, medicamentos abusivos e a imposição de um mundo que não era o seu. Mas Stella tinha algo maior, tinha sua voz que dava vazão para uma inteligência e uma visão de mundo tão agudas e perspicaz que ecoou como poesia. Sua falação, ou falatório, chamou a atenção e a louca virou poeta, a poeta virou poesia e sua poesia é palavra livre filosófica que nos ensina e emociona. 

Foi a reforma psiquiátrica, na década de 1980, que levou as oficinas de artes de Neli Gutmacher para a Colônia. Os resultados da oficina chamaram a atenção de outra artista, Carla Guagliardi, que ao conhecer Stella gravou conversas que teve com ela. Em 1990, Mônica Ribeiro, na época estagiária em psicologia, fez transcrições das falas. Alguns anos depois, Viviane Mosé transpôs as falas de Stella para o formato de poesia, no livro Reino dos Bichos e dos Animais é o meu nome, em 2001 (de onde retirei a última falação/poesia).

Recentemente duas pesquisas lançaram novas interpretações à obra de Stella, fazendo ecoar seu poder maior: sua voz. Stella do Patrocínio: da internação involuntária à poesia brasileira, de Anna Carolina Vicentini Zacharias (de onde retirei as demais falações/poesias), e Stella do Patrocínio: entre a letra e a negra garganta de carne, de Sara Martins Ramos. Sendo que nesta última podemos acessar algumas das gravações. 

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Venho escrevendo histórias de mulheres ficcionais com forte vínculo com a realidade vivida por todas nós. Nesta coluna, Elas, Nós, quero escrever histórias de mulheres reais com a fina eletricidade da ficção para inscrevê-las como um nós. São histórias extraordinárias, mas que permanecem silenciadas. Cercadas de injustiças e violências enfrentadas, muitas vezes, até a morte. Esse enfrentamento me interessa, pois daí podemos retirar um ensinamento valioso: nunca desistir de ser quem somos.

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