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Bloco de Notas, por Lorena Portela

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Autora do sucesso "Primeiro Eu Tive que Morrer", Lorena Portela é cearense, escritora e jornalista. Vive em Londres, mas a cabeça mora aqui, no Brasil.

Os alunos na Saint Martins me lembram de um futuro que não existe

Apesar do mundo, ainda precisamos ter forças para levantar de manhã cedo

Por Lorena Portela
19 nov 2023, 08h14
 (Buro Millennial/Pexels)
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Na esquina da minha rua, aqui em Londres, fica um dos núcleos da Central Saint Martins, a respeitada faculdade de Arte e Moda do Reino Unido. Quando saio para o trabalho, ou quando vou ao supermercado, ou fazer exercício, ou qualquer dessas banalidades, vejo os alunos sentados na calçada, em grupos pequenos, coloridos, contrastando com o predominante marrom dos prédios da cidade. 

Moro nesse endereço há um ano e meio e, cada vez que vejo essa cena, sinto uma alegria modesta, um senso de normalidade, de ordem, de que a vida está seguindo o seu curso, que vem aí mais uma geração de designers e artistas e criativos, como vem aí, em algum outro lugar da cidade, mais uma geração de médicos, de vendedores, de arquitetos, de esportistas.

A ternura é também por imaginar o que sente um jovem que acabou de fazer 20 anos, estudando numa das universidades mais legais do mundo, morando na cidade mais legal do mundo – na minha modesta opinião, claro. Tem cheiro de futuro ver os alunos sentados na calçada, bonitos em suas roupas, criativos na milimétrica combinação de looks, de vez em quando rindo para mim – quando também capricho na produção, do contrário, nem olham na minha cara –, modernos, apontando para a frente. 

Mas teve um dia da semana passada, e nem estava chovendo, que eu olhei aquela cena e, ao invés do sorriso invisível, senti uma pena imensa. Vi de canto de olho os rabiscos bonitos em seus cadernos e pensei: para que isso? Para quê? Para que esse esforço, esse talento, essa tentativa, essa busca, essa esperança?

E junto das perguntas veio a vontade, um impulso de pegar aquelas mãos que seguravam uma coca-cola zero e dizer (a despeito do quão privilegiado esse grupo é): salvem essa juventude de vocês, corram para as colinas, parem de tentar, o mundo está ruim, não vai melhorar, não tem melhorado, não melhorou para mim, não vai melhorar para vocês.

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A guerra se impõe, a violência se impõe, a fome, a desgraça, e ainda por cima vocês vão sofrer de amor, e vão ser usados e abandonados. E vão se viciar em outras substâncias para além do telefone e das redes sociais, e vão se sentir irremediavelmente sozinhos, e o sexo vai ser ruim por muitas vezes.

Não tem lugar para todos vocês num mercado de trabalho atroz, e não vai haver um só político no qual vocês acreditam porque a política não nos traz nenhuma crença, deus não nos traz nenhuma crença. E, de novo, outra guerra, não tem mais árvore, nem a cura do câncer, nem nada, nada, nada, o que tem é pandemia, e tirania, e mais uma guerra aqui do nosso lado, ali, ali, olha o bomba ali, e terrorismo, e armas nas escolas.

Se está ruim agora, imagina quando chegar a vez de vocês enfrentarem os problemas e tentarem arrumar um emprego que não lhes adoeça e não vai ter jeito, vocês vão adoecer. Com o salário, vocês vão pagar aluguel de um quarto numa casa com mais seis pessoas a 1h30 do centro e vocês podem até herdar uma casa, se seus pais não falirem, mas não vão herdar ar pra respirar, nem água para beber, nem um mundo minimamente melhor do que é agora, porque eu também acreditei num mundo melhor e não deu certo.

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E então outra guerra, guerra até o fim. 

Até o fim. 

E porque eu não conseguia parar de pensar nos para quês – por que ainda estamos tentando?, por que não jogamos a toalha?, por que esse fingimento de que há um futuro bom pra alguém? -, levei a lista de perguntas para a terapia, ainda bem.

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A terapeuta jogou no fácil e me relembrou que continuamos acordando de manhã, indo ao trabalho, pagando as contas, viajando, fazendo faculdade, reservando mesa no restaurante, marcando date, abrindo uma garrafa de vinho, tendo filhos, sambando, indo à praia, beijando na boca, adotando cachorro, publicando livros. No final das contas, esse instante importa e é tudo que temos.

Eu sei da obviedade desta frase. Eu sei do lugar-comum que representa. Temos o agora e isso importa. Eu sei do clichê. Mas na hora da minha absoluta descrença com os anos 2040 e 2050, bateu diferente. Iluminou um pouquinho, calou a verdade carrasca. 

No fim das contas, não preciso sacudir os ombros dos jovens na calçada da Saint Martins para que acordem daquele sonho, porque, como eu, tudo que eles têm é esse fim de manhã de terça-feira, sentados na calçada da faculdade, o meal-deal do Tesco ou a pad-thai do tailandês do outro lado da rua.

Tudo que eles têm é o rabisco no caderno da aula que vão mostrar à professora na aula das 14h. Tudo que eles têm são esses amigos que lhes fazem companhia nesse frio ainda suave de outono e que, com alguma sorte, ainda estarão em suas vidas em 2050. Se o ano de 2050 chegar. E se não chegar, tudo bem, meio que já não podemos contar com isso mesmo.

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