Como gêmea, sofri para conferir “Gêmeas, Uma Mórbida Semelhança”
A série da Amazon tem uma atuação incrível de Rachel Weisz e uma trama incômoda, inspirada em fatos reais e com final bem diferente do original
Reza a lenda de Hollywood que quando Leonardo DiCaprio estava se preparando para gravar O Homem da Máscara de Ferro aproveitou por estar com o ator Jeremy Irons ao seu lado e pediu dicas de “como interpretar gêmeos”. Afinal, pouco tempo antes o ator britânico teve uma atuação arrasadora no filme Gêmeos – Uma Mórbida Semelhança, dirigido por David Cronenberg e passou a ser a referência de como interpretar duas pessoas idênticas. Leonardo DiCaprio estava preocupado em mostrá-los diferentes, mas Jeremy Irons aconselhou ao contrário: “o truque é interpretá-los da mesma maneira”, teria sido a resposta.
A resposta de Jeremy Irons parece obvia e rasa, mas é profunda. E digo com propriedade porque sou gêmea e ultra próxima da minha irmã. Embora sejamos bivitelinas (ou seja, não somos idênticas) e muito – mas muito – diferentes, são essas diferenças que nos fazem sentir tão bem quando estamos juntas, mas as pessoas só buscam nossas similaridades. Sim, passamos uma vida lidando com a curiosidade das pessoas sobre nossa relação. Mas nem Ruth e Raquel bateram o recorde de perguntas quando o filme de 1988 fez sucesso. A exceção parece ter se tornado o exemplo e quando a refilmagem da obra chegou à Amazon Prime Video, justamente no dia do nosso aniversário, 21 de abril, tive que superar meu trauma para conferir como Rachel Weisz atualizaria uma história tão macabra. Sofri, mas valeu a pena. Ela está perfeita ao dobro.
Não que seja novidade para a atriz interpretar gêmeas, já tinha feito isso em Constantine e aqui, Elliot e Beverly Mantle trabalham em uma clínica de fertilização, compartilhando desde as drogas à amantes e ambições. Isso inclui ir além dos limites da ética médica no campo da fertilização. Mas sabe o que é mais assustador? A história é inspirada livremente em um fato real que chocou os Estados Unidos nos anos 1970.
O conto sobre os irmãos gêmeos, Stewart e Cyril Marcus, ginecologistas renomados que foram encontrados mortos no apartamento de Cyril, em julho de 1975, foi um choque na época. Os dois, que não eram idênticos, mas muito parecidos, tinham uma conturbada e estranha relação, sem nunca terem ficado longe um do outro por muito tempo. Morreram apenas dias à parte em um aparente pacto de suicídio. Eles alcançaram o auge de suas carreiras nos anos 1960, quando escreveram o livro Advances in Obstetrics and Gynecology, mas, repentinamente passaram a ter comportamentos erráticos, às vezes agredindo ou atormentando pacientes. Quando Cyril sofreu uma overdose, começou a circular os rumores de dependência química de ambos, que seguiram atendendo mesmo sem estarem em condições.
Aos poucos foram perdendo clientela e quando ficou impossível de disfarçar o vício, receberam um ultimato de médicos para buscarem tratamento. O problema foi que os gêmeos decidiram que iriam se tratar sem ajuda externa e se isolaram no apartamento de Cyril, usando medicamentos anticonvulsivantes. Se suspeita que em algum momento Stewart teve uma overdose, provavelmente enquanto Cyril estava fora comprando mais remédios. Testemunhas dizem que ao voltar, o gêmeo chegou a sair do prédio como se estivesse considerando fugir, mas mudou de ideia e retornou ao apartamento, de onde não saiu mais com vida.
A cópia do romance de Iris Murdoch, A Fairly Honorable Defeat, virada para baixo no meio de uma das salas foi considerada como uma nota de suicídio. O livro é sobre dois irmãos e uma figura satânica chamada Julius, que aposta que pode acabar com o relacionamento dos dois e estava perto de um dos corpos. A história é tão bizarra que a imprensa fez uma série de matérias sobre eles, mas foi Linda Wolfe que eternizou suas mortes com o livro The Strange Death of the Twin Gynecologists, que foi a base para o filme de David Cronenberg, que também usou Twins, de Bari Wood e Jack Geasland para fechar o roteiro premiado.
O filme de 1988 inicialmente era para ter sido estrelado por Robert De Niro e depois por William Hurt, mas ambos desistiram do material por ser extremamente pesado. Já com liberdades criativas, a intensa e abusiva relação entre os irmãos é o coração da história, com um final relativamente mais próximo da história real. Já a nova versão muda significativamente a trama e retrata mais do que uma relação doentia entre as irmãs, aproveita para colocar em pauta questões sobre abuso da ciência e a falta de ética médica.
Se tiver estômago para aguentar, vale conferir. As gêmeas têm uma dependência emocional doentia e o roteiro tem uma tirada meio maniqueísta do tipo “Ruth e Raquel”, mas o pacto entre elas, embora diferente da história original, é macabro. Recomendo ficar vendo os créditos, senão perde a grande surpresa da série. E a confirmação de mais um grande trabalho de Rachel Weisz. Pena que não ajuda a desmitificar a visão negativa sobre gêmeos, que não são mórbidos, menos ainda, tão semelhantes.