Mulheres usam as redes sociais como caminho para a autoaceitação
Famosas e anônimas formam uma rede de mulheres que nos ensina a ter uma visão mais positiva sobre nós mesmas
Talvez você tenha notado uma mudança – mesmo que ainda tímida – nas redes sociais: menos barriga tanquinho, mais corpos reais e clima de liberdade. As hashtags reforçam o movimento. Somente no Instagram, elas somam mais de 6 milhões de menções, tais como #amesuascurvas, #ameuseucorpo, #foradopadrão, #corpãoquerido, #meucorpodeverão, #positividadecorporal ou, ainda, em inglês #bodypositive.
Geralmente acompanham fotos de mulheres que caminham na contramão das celebridades com corpo escultural e das musas fitness. O posicionamento expressa um olhar mais carinhoso para as próprias características sem se importar com padrões.
Aos poucos, tamanho da etiqueta, celulite, estrias, flacidez e acne em evidência deixam de ser motivo de vergonha.
A atitude já se fazia mais do que necessária. Em 2017, a Royal Society for Public Health, do Reino Unido, analisou o comportamento de cerca de 1,5 mil jovens, de 14 a 24 anos, e concluiu que o Instagram é a rede social com maior impacto negativo na saúde mental nessa faixa etária. Sete em cada dez participantes da pesquisa disseram que o aplicativo havia feito com que apresentassem maior rejeição a si mesmos.
Segundo Joana Novaes, coordenadora do Núcleo de Doenças da Beleza da PUC do Rio de Janeiro, as redes sociais, assim como a televisão, mexem com o imaginário das pessoas de duas maneiras: pela idealização ou identificação.
No primeiro caso, buscam modos de vida que existem apenas atrás das telas, em que todos são felizes e não há problemas. “Elas se sentem inferiorizadas porque estão diante de uma realidade sem derrota. Já ao verem um sujeito comum, que não esconde seus defeitos, se identificam e pensam: ‘Se ele pode, eu também posso’.”
Para os especialistas, é importante que exemplos de aceitação e autoestima sejam fontes de identificação e inspiração desde que não se tornem outro padrão a ser seguido. Eles alertam que uma das consequências da busca pela perfeição – muitas vezes disfarçada de estilo de vida saudável – é a ortorexia (doença que surge quando esse objetivo se torna uma obsessão).
“São pessoas que acabam adotando dietas extremamente rigorosas e passam por enorme sofrimento emocional se saem dessa alimentação regrada”, explica a psicóloga Rogéria Taragano, colaboradora do Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. “Quando pensamos em saúde mental, vemos que a comparação com ideais inexistentes pode ser muito prejudicial e contribui para o surgimento de problemas passíveis de se transformarem em transtornos alimentares”, completa.
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O radicalismo pode trazer riscos dos dois lados. “É preciso ter em mente, por exemplo, que cuidar do corpo não significa fazer apologia à magreza, mas sim manter-se saudável. Não podemos ignorar o fato de que pacientes obesos, mesmo aqueles que têm exames normais de colesterol e pressão, obtêm benefícios à saúde ao perder 10% do peso”, contrapõe a endocrinologista Maria Edna Melo, presidente do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia.
O grito das famosas
O poder de influência das celebridades é uma poderosa arma nessa luta contra estereótipos. Principalmente quando se trata de Anitta, que coleciona quase 27 milhões de fãs só no Instagram. Basta imaginar o alívio das suas admiradoras quando viram a celulite dela exibida com tamanha naturalidade – sem nenhum tipo de disfarce – no clipe Vai Malandra, lançado em dezembro do ano passado.
Em entrevista exclusiva para esta reportagem, a cantora comentou a (gigante) repercussão. “A estética do clipe é muito verdadeira. Não combinaria mostrar uma perfeição que não existe. Tenho celulite e está tudo bem.”
Com mais de 190 milhões de visualizações no YouTube, Anitta aqueceu o assunto e fomentou o debate. “Fico feliz em saber do impacto positivo que a realidade sobre o meu corpo teve nas mulheres. Acredito que todas nós devemos nos unir e parar de julgar umas às outras.”
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É esse também o caso da atriz Giovanna Grigio, 20 anos, uma das protagonistas da última temporada de Malhação, da TV Globo, e dona de um perfil no Instagram com 4,6 milhões de seguidores – a maioria composta de adolescentes.
Uma foto compartilhada de biquíni no início deste ano, com suas estrias à mostra, ganhou enorme repercussão – grande parte positiva. Mesmo sem ter essa intenção, ela mostrou às suas jovens fãs que não há motivos para deixar de ir à praia e compartilhar uma imagem do momento. “Quando postei a foto não tinha nenhuma pretensão específica. Depois, com esse feedback, entendi a importância de atitudes como essa”, disse a CLAUDIA.
O debate ganhou outro capítulo quando as marcas e cicatrizes de acne da americana Kendall Jenner (uma das modelos mais bem pagas do mundo) se tornaram um dos assuntos mais comentados nas redes durante o Globo de Ouro, premiação internacional de cinema e televisão. Kendall, que já admitiu ter sofrido muito com o problema na adolescência, manifestou-se no Twitter respondendo ao comentário de uma seguidora: “Nunca deixe essa porcaria acabar com você”.
#semfiltro
Para muitas pessoas, porém, o caminho da aceitação da própria imagem ainda é desafiador. A jornalista carioca Alexandra Gurgel, 29 anos, acumula milhares de seguidores em suas redes sociais. Ela mantém no YouTube um canal em que fala sobre sua relação com o corpo e em seu Instagram posta fotos de biquíni e lingerie, normalmente acompanhadas de mensagens que estimulam a autoestima.
Mas nem sempre foi assim. “Quase fui bulímica e anoréxica, fiz milhões de dietas restritivas, uma lipo aos 22 e desenvolvi depressão. Eu me sentia fracassada por não conseguir ser magra. Até que, em 2012, tentei suicídio, mas fui socorrida. Fazer terapia me ajudou muito”, conta.
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Na internet, Alexandra descobriu termos como feminismo, gordofobia e percebeu que não estava sozinha. “No final de 2016, quando finalmente consegui vestir um biquíni e não ligar para a opinião alheia, descobri que estava livre. Não me acho perfeita, mas cuido da minha autoestima. Aprendi a lidar de forma mais saudável com o que não gosto. Hoje consigo olhar meus pontos negativos no espelho e simplemente não focar neles.”
A youtuber Ellora Haonne, 20 anos, também defende a iniciativa em suas redes sociais, chamando a atenção, principalmente, para a diferença entre corpos reais e imagens que costumam ser compartilhadas online. Recentemente, publicou um vídeo revelando os truques que ela mesma usava para disfarçar, por exemplo, a barriga saliente.
A tag #tourpeloseucorpo foi criada pela também influenciadora Luiza Junqueira, do canal Tá Querida, com quase 400 mil inscritos, justamente para mostrar a realidade por trás de filtros, tratamentos de imagens e aplicativos como Photoshop.
“A gente vive se comparando a essas ilusórias perfeições nas fotos, mas posso garantir que essas pessoas não são assim. Sabe por quê? Pois sou uma delas”, diz, antes de detalhar e filmar outras características suas, como espinhas, vermelhidão no rosto e celulite. O vídeo já ultrapassa 2 milhões de visualizações.
A jornalista Daiana Garbin, autora do livro “Fazendo as Pazes com o Corpo” (Sextante), ilustra outro exemplo de reviravolta e superação. Em 2016, deixou o cargo de repórter da TV Globo para dedicar-se ao canal Eu Vejo, no YouTube, em que fala sobre sua história e conversa com quem passou por problemas semelhantes.
Daiana sofre de distorção da imagem corporal, distúrbio que faz com que a pessoa perceba o próprio corpo de tamanho diferente do que é de fato. Em um de seus vídeos, faz um honesto desabafo. “Desde os 5 anos, eu odeio o que vejo no espelho. Eu queria ser magra, mas todos os dias eu me sinto gorda”, diz, antes de revelar que já passou por três lipoaspirações e tomou diversos remédios para emagrecer.
Para ela, compartilhar sua história nas redes sociais foi, ao mesmo tempo, uma forma de ajudar outras mulheres e um empurrão em seu tratamento. “Quando tive coragem de dividir meu sofrimento, me tornei corajosa também para enfrentá-lo”, revela.
Influência positiva
Foi por meio de exemplos como os de Alexandra, Ellora e Daiana que a publicitária Juliana Rangel passou a recuperar sua autoestima. Hoje com 31 anos, Juliana, por insistência da família, submeteu-se a uma cirurgia bariátrica aos 20. “Na época, não conhecia pessoas com quem me identificasse, sentia que precisava me enquadrar no padrão de qualquer maneira”, diz. Juliana sofreu complicações devido à operação e desenvolveu depressão, voltando a ganhar peso.
“Hoje olho para trás e penso: ‘Por que esta menina fez isso?’.” Tempos depois, ela conheceu um grupo de mulheres gordas no Facebook e passou a olhar-se de outra forma.
“Organizamos uma festa no ano passado e usei um top pela primeira vez na vida. A identificação é muito importante. Por isso, deixei de seguir nas redes sociais aqueles com quem não me identifico e acompanho apenas pessoas que me incentivam. Eu ainda estou caminhando. É um trabalho diário.”
O caminho a favor da quebra de padrões, porém, ainda se mostra longo. Prova disso é a também repercussão, desta vez negativa, da foto publicada por Bruna Marquezine durante o Carnaval. A atriz, de 22 anos, foi bombardeada por comentários agressivos sobre seus seios naturais – muitos deles sugerindo que ela colocasse próteses para corrigir o que chegaram a chamar de “murcho” e “caído”.
Bruna não se manifestou. Mas o episódio acende também a esperança. Uma onda de mulheres anônimas que defendem a beleza do natural se mostrou forte e relevante em meio aos comentários maldosos. Prova de que esses posts, vídeos e gestos de sororidade que incentivam a autoaceitação fazem a diferença.