Vida compartilhada: como equilibrar as necessidades vivendo a dois
Por mais que soe paradoxal, manter a própria individualidade, sem negligenciar a existência do outro, é a chave para viver um relacionamento saudável a dois
Relacionar-se com alguém é estar em uma constante negociação. E nem sempre os acordos acabam nos contentando. Às vezes, acreditamos que ganhamos. Outras, temos a sensação de estarmos quites ou até em desvantagem. Quando o assunto são vínculos amorosos, porém, nada é tão absoluto. Não se trata de vencer ou perder, mas de manter-se fiel a quem somos ao mesmo tempo em que nos permitimos sentir e compreender as necessidades do outro. Fácil, né? Só que não!
Equilibrar as nossas idealizações com os anseios de quem amamos é, talvez, um dos maiores desafios das relações (mas a possibilidade existe). De acordo com Andreone Medrado, doutorande em psicologia pela USP, o passo 1 é saber diferenciar a individualidade do individualismo. “A primeira diz respeito ao universo subjetivo do ser. É o autoconhecimento e o espaço que cada um de nós tem para construir aquilo que acredita.
Não há problemas em sermos orientados pela maneira de agirmos e pensarmos.” O problema mora no individualismo, que “acontece quando a pessoa acredita que tudo ao seu redor deva estar alinhado com o que ela pensa. Aí entra o egoísmo”. Para não cair nessa armadilha, Andreone recomenda refletir acerca do tipo de comunicação que exercemos na relação, a motivação por trás de nossas escolhas, o quão empáticos somos, se temos limites bem definidos e o quão dispostos estamos a ser flexíveis.
“Quero reiterar que a flexibilidade não deve ser confundida com uma certa tendência a ter relacionamentos abusivos. Aqui, estou falando sobre analisarmos se as nossas expectativas podem ser ajustadas ou não.” Elu pontua que, inevitavelmente, todas as dinâmicas sociais, amorosas ou não, serão contratuais. Contudo, elas jamais podem se transformar em uma legislação inalterável, onde as leis fiquem sob custódia de apenas uma das partes.
“Combinar as coisas está incluso no pacote, pois cada um vem de um contexto diferente”, afirma. Tão problemático quanto exigir que o outro se adeque às nossas necessidades é tentar nos encaixar em uma existência que não nos cabe. Confundir empatia com subserviência, na maioria dos casos, traz consequências longínquas para quem está do lado “desfavorecido” da troca.
“Eu penso que isso está muito relacionado ao fato de sermos criadas para nos importar excessivamente com o que os outros pensam. Quantas vezes, durante a infância, não ouvimos frases como ‘Não faça isso para o fulano não achar aquilo’. Crescemos tão atentas a essa opinião que caímos na baixa autoestima disfarçada de empatia”, elabora a psicóloga, sexóloga e palestrante Bárbara Menêses.
É natural que absorvamos um pouco das demandas alheias ao nos relacionarmos. Porém, ser influenciado é diferente de ser 100% transformado. “Um exemplo lúdico para ajudar: em uma relação, há um indivíduo vermelho e outro branco, e a convivência acaba lhes deixando rosa. É normal, pois misturamos as histórias de vida. Ainda somos um pouco brancos ou vermelhos, mas conseguimos pensar por óticas cor-de-rosa. O que não é saudável é que todos na relação sejam de uma única tonalidade”, alerta a especialista.
O principal malefício de nos transformarmos em uma cópia de nossa parceria, para Medrado, é viver uma vida que não desejamos: “Ao nos desfazer para caber, construímos uma série de traumas que sustentam o edifício da ‘relação saudável’. E, caso acabe, quem se anulou poderá vivenciar uma série de gatilhos que se estendem em várias facetas”.
E por que é tão comum cairmos nessas negociações desiguais? Para Medrado, tal questão é atravessada por inúmeros fatores, como monogamia, não-monogamia, neoliberalismo, patriarcado, gênero e raça. “No caso da monogamia, especificamente, o inegociável faz parte daquela estrutura que mantém o vínculo. Não que ambas as partes queiram manter, mas elas precisam atender a expectativa social do que é ‘correto’. Claro que isso pode acontecer na não-monogamia, mas, normalmente, este modelo acaba sendo pautado na mutualidade. O medo do término não pode ser o que vai orientar a relação”, diz.
De acordo com suas observações e pesquisas, é nesse último ponto que reside o desequilíbrio entre o que queremos e o que o outro almeja. Frequentemente, construímos os nossos vínculos para que eles sejam mantidos, não vividos. Sendo assim, reprimimos desejos e impomos vontades para evitar tudo o que represente uma ameaça à “instituição casal”.
Em uma relação saudável, a troca é a manutenção das individualidades. Que possamos ser duas pessoas que caminham juntas
Bárbara Menêses, psicóloga, sexóloga e palestrante
Em uma relação saudável, a troca é justamente a manutenção das individualidades. Que possamos ser duas pessoas que caminham juntas. Devemos somar as nossas particularidades, não misturá-las”, diz Bárbara. Ela conclui afirmando que, ao esperarmos (e exigirmos) que o outro supra as nossas necessidades e carências, tendemos a cair em padrões que, inevitavelmente, nos colocam em dinâmicas tóxicas. Para refletir.