Baixa libido: viver sem ou com pouco sexo, sem pressão
Mulheres com libido considerada baixa para os padrões sociais reivindicam liberdade para viver, inclusive, sem sexo
Júlia* foi casada por 11 anos, mas viu o relacionamento ruir, em parte, por uma diferença de expectativas sexuais. “Não é algo em que coloco muito tempo e energia. Sexo me dá um pouco de preguiça, tenho dificuldade de me abrir”, conta ela, aos 32 anos. Depois do término, passou quatro meses sozinha até engatar em um romance que durou dois anos, dividindo o mesmo teto e tudo. Apesar do histórico de relacionamentos longos, a intimidade sexual nunca foi prioridade para ela.
Hury Ahmadi, comunicadora e multiartista de 29 anos, teve sua primeira paixonite no início da adolescência, por um amigo próximo, e depois demorou bastante para sentir atração por outra pessoa. Aos 15 anos, enquanto suas amigas adoravam paquerar e beijar muitas bocas, ela não sentia interesse por terceiros. “Foram várias as vezes que fiquei com meninos só por pressão das amigas que me achavam nerd, estranha… Ainda mais que sempre fui introspectiva”, lembra ela, que, hoje, se entende como uma mulher bissexual e demissexual. Isso quer dizer que ela sente atração por alguém a partir de uma conexão emocional, mas não necessariamente romântica, seja conhecendo a pessoa num único dia ou há anos.
É comum que mulheres como elas sejam confrontadas com olhares estranhos e palavras de incompreensão de pessoas próximas. “Quando eu vou para a balada com as minhas amigas, é quase como se transar fosse o objetivo principal. O pano de fundo é que tem algum problema comigo, que eu devo ir na psicóloga, checar meus hormônios, buscar explicações ou resoluções. Mas estou bem assim”, afirma Júlia. Ela chegou a fazer uma série de exames e, sim, seu corpo funciona perfeitamente, obrigada.
“Tive uma criação de muita escuta e troca com minha mãe e aprendi a respeitar meu tempo, nunca quis seguir a manada. Mas não me masturbava na adolescência, comecei a me conectar com minha libido e meu corpo no começo dos meus 20 anos”, conta Hury. Ela lembra que, na fase da adolescência, em que os hormônios parecem estar em ebulição, sua energia estava centrada na prática de atividades físicas.
De acordo com a sexóloga Bárbara Bastos, isso faz todo o sentido. “Libido significa pulsão de vida. É prazer de viver. E esse prazer pode estar no trabalho, no esporte, num hobby…”, diz. Ela avalia que, se na época das nossas avós o socialmente aceitável eram mulheres sem libido, hoje, se espera que a mulher tenha vontade e esteja pronta para o sexo a qualquer hora. “Há uma pressão enorme para transar e chegar ao orgasmo, mas não somos máquinas”, diz a especialista.
O tabu da frigidez é mais um que ainda recai sobre nós, mulheres, e, por isso, a própria Organização Mundial da Saúde retira a palavra da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde da sua mais recente edição (CID11). “A palavra tem uma conotação de ataque ao feminino e não deve estigmatizar mais uma condição, uma situação. É uma palavra que coloca a mulher no lugar de ‘não é boa o suficiente de cama’, e afasta, inclusive, do acesso a tratamento mulheres que realmente necessitem de um”, argumenta Alessandra Diehl, psiquiatra especialista em sexualidade.
Não é o caso de Júlia e Hury. Todas as médicas e demais especialistas ouvidas por CLAUDIA explicam que uma libido mais baixa do que o padrão social só é um problema de saúde se gerar algum incômodo na pessoa em questão. E, como destaca Lorena Lima Amato, endocrinologista e autora do livro Onde Está Minha Libido? (Autografia), sequer existe um consenso médico sobre o que é uma mulher com libido padrão. Afinal, cada pessoa tem uma frequência sexual. “As mulheres falam que têm libido baixa por comparação. Somos um povo que fala muito de sexo, o que gera expectativas irreais”, comenta. Lorena acrescenta que não é coincidência que o público feminino seja maioria em seu consultório com queixas relacionadas ao tema. “Se a mulher tem muita libido, é um problema. Se tem pouca, também.”
Para a ginecologista Nathalie Raibolt, isso é um reflexo de como somos socializadas. Enquanto os homens aprendem o sexo como sucesso, as mulheres aprendem sobre os riscos dele: o risco de ser violentada, o risco de pegar alguma doença ou o risco de engravidar. “O prazer é algo construído, e sexo e masturbação sempre foram temas proibidos para as mulheres”, lembra.
A psiquiatra Alessandra Diehl entende que pessoas com frequências sexuais consideradas mais baixas podem inserir-se no espectro da assexualidade, mas ela mesma ressalta que esse ainda é um conceito em construção. “Não querer relação sexual não significa que não querem uma relação romântico-afetiva. Não se trata de uma doença. O desconforto é muito mais da sociedade sexo-normativa do que interno, da mulher em questão”, afirma.
Alessandra destaca que “o cérebro é o maior órgão sexual” e que a comunidade científica precisa “ampliar a pesquisa e treinar os profissionais de saúde” para que o modus operandi não seja apenas prescrever reposições hormonais para quem não necessariamente precisa delas. “A sexualidade é um marcador de qualidade de vida, mas as pessoas pensam que a sexualidade é só o ato sexual. Não. Posso exercer minha sexualidade sem sexo, posso usar essa energia sexual para outras coisas que dão gratificação na vida”, explica.
Hoje, Hury se sente cada vez mais à vontade em sua demissexualidade (termo que descobriu investigando e lendo sobre diferentes conceitos, em 2013) e vai testando os próprios limites e prazeres. “Tenho percebido que esse processo de entender minha libido não é necessariamente cíclico. Eu achava, por exemplo, que relações casuais não eram para mim, mas estou me abrindo a isso”, conta. Ela também tem encontrado mais pessoas com frequências afetivas e sexuais parecidas com as suas. Cita, como exemplo, um casal de amigos que estão juntos há anos, mas não transam. “Eu sigo meu corpo e o que ele pede”, diz. E é o que todas devemos fazer.
* Nome fictício.