Páginas da Vida: “Não teve filhos. Mas angariou infinitas amizades.”
A leitora Edna Perroti homenageia sua amiga Nely Cavali, que, após passar 20 anos lutando contra diversos tipo de câncer, faleceu no último domingo (14).
“Agosto 2016.
Perseverança, garra, determinação, confiança. Certeza de que obterá mais uma vitória, para se juntar a outras dos últimos 20 anos. Vibração com cada uma das pequenas conquistas. Todos torcem, embora desconfiem que, desta vez, a superação parece ser pouco provável. O corpo requer cuidados e observação. Pesagem diária. Dieta especial. Nutricionista, equipe médica, fisioterapeuta. Exercícios respiratórios.
Dia a dia de um atleta? Não. Rotina de uma paciente que luta bravamente pela vida num Hospital de São Paulo. O câncer com que vem lutando há mais de 20 anos, e que a levou a se submeter a mais de uma dezena de cirurgias, em diferentes partes do corpo, voltou implacável. O estômago está comprometido. As dores na coluna indicam metástase. O mau funcionamento do intestino exige uma bolsa para coletar os resíduos. A alimentação natural é cortada. Agora só a parenteral. E as sessões quinzenais de quimioterapia.
Vaidosa, Nely Cavali se orgulha de ainda não ter perdido os cabelos. Apesar de ralos e finos, eles vão resistir, ela me diz. Sonha com o dia em que sairá do hospital e fará uma grande festa em sua cidade natal, para os parentes e os amigos, comemorando sua recuperação. Quer alugar uma van, mas não será suficiente. Talvez um ônibus. E prepara-se para o grande acontecimento. Champagne combina com carneiro? Se não combina, fica para tomar com o bolo.
Enquanto isso, vibra com as pequenas conquistas, como a satisfação das necessidades fisiológicas, tão naturais para os que estão saudáveis. Depois de 20 dias, finalmente consegue ir ao banheiro. Uma festa! Desta vez não precisou da sonda. Toda a enfermagem a cumprimenta. Cada visita que entra no quarto é recebida com um largo sorriso, o punho levantado e agitado e o brado do feito de que se orgulha: – Hoje eu consegui!
Com dificuldade para respirar, atende à fisioterapeuta e vai andar no corredor. Ampara-se no suporte de frascos de onde recebe os medicamentos. E vai em frente. Diz que quanto mais se exercitar, mais cedo se recuperará. São 18 horas de um domingo do mês de julho. A lua cheia está linda. Pode ser vista por inteira pelos vidros. Nely reverencia o presente que a natureza lhe dá. Sente-se privilegiada. ‘Parece que ela está aí só para mim. Se os vidros estivessem abertos, eu poderia tocá-la’.
Gosta de poesias. Como a visão também está ficando comprometida, pede que leia algumas para ela. Eu leio, ela interpreta. E procura decorar os versos de cada haicai. Emociona-se com as linhas e as entrelinhas. “Como é bom desfrutar desse prazer da leitura!”
Carismática, o quarto está sempre cheios de amigos. Recebe um que vem do Rio especialmente para visitá-la. Tenor, ele lhe presenteia com a Ave-Maria, cantada em tom mais baixo para não incomodar os outros pacientes. Seus olhos profundamente azuis ficam marejados. E ela se sente, mais uma vez, privilegiada. Faz uma reverência em agradecimento.
Passam-se alguns dias. O quadro piora. Ela não reclama uma vez sequer. Sonha com a alta. Afinal, desde abril está vivendo entre quatro paredes. Quer viajar, passear. Mas, ao mesmo tempo, manifesta a vontade de doar o apartamento para uma instituição de caridade. Intui que terá pouco tempo de vida? Fica a incógnita.
Semana fria do início de agosto. O quadro piora. A respiração se torna ofegante. Começam as aplicações de morfina. Ela ainda resiste. Não quer partir. Passa uma noite extremamente difícil, rodeada dos amigos queridos que lhe fizeram companhia durante todos esses meses no hospital. Não teve filhos. Mas angariou infinitas amizades.
No amanhecer do Dia dos Pais, um pastor de almas lhe faz uma linda oração. E o tênue fio da vida vai se rompendo, devagarinho, deixando saudades e o exemplo de superação, de resignação, de celebração à vida, mesmo com as diferentes manifestações do câncer que foram dilacerando seu corpo franzino.”