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“A mulher negra não é vista como um sujeito para ser amado”

Para a ativista do Feminismo Negro, Stephanie Ribeiro, 52,52% (dado do IBGE) da população feminina negra vive, hoje no Brasil, em "celibato definitivo".

Por Débora Stevaux Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 30 nov 2016, 14h26 - Publicado em 24 nov 2016, 22h13
 (Carolina Horita/MdeMulher)
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No dia 20 de novembro é celebrado o Dia da Consciência Negra. Para reforçar a importância dessa data, neste mês, CLAUDIA procurou mulheres negras formadoras de opinião e militantes da causa para discutir temas como apropriação cultural, racismo e representatividade. Como resultado, lançamos uma série de entrevistas sobre a importância de se debater cada vez mais as questões raciais no Brasil.

Clara, reta e completamente preta, rara, sem você/Solto quase morto/Corpo, o meu corpo/Caminha, na minha sombra“, os versos integram a música “Solto” entoada por Elza Soares, uma mulher, negra e periférica. A 10ª faixa do disco A Mulher do Fim do Mundo, laureado com o Grammy Latino, como melhor álbum de MPB, é o plano perfeito para a discussão de um tema crucial. A solidão da mulher negra foi abordada academicamente, pela primeira vez, com a tese da pesquisadora Claudete Alves, que posteriormente se tornou o livro Virou Regra?.

Realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o último Censo datado de 2010 divulgou que 52,52% das mulheres negras que participaram do levantamento não viviam numa reunião estável. Ou seja, segundo as palavras da estudante de Arquitetura & Urbanismo e ativista do Feminismo Negro, Stephanie Ribeiro, mais da metade da população feminina de pele preta vive, hoje no Brasil, em “celibato definitivo”, e não por escolha própria: “A mulher negra não é vista com um sujeito para ser amado.”

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CLAUDIA: De que maneira você acredita que a solidão da mulher negra têm como um de seus principais pilares o racismo?
Stephanie Ribeiro: Eu comecei a falar sobre este assunto depois que tive contato com o último Censo realizado pelo IBGE, em 2010, que comprovou: 70% dos dos brasileiros se casam com parceiros de mesma cor, isto é, pessoas brancas se casam com pessoas brancas. Mas 52,52% das mulheres negras, principalmente aquelas de pele mais escura, ficavam sozinhas, como se fosse uma espécie de celibato definitivo. E para mim, isso não reflete uma escolha própria, mas sim, uma consequência de várias outras questões. Foi então que, neste momento, passei a ler sobre a afetividade da mulher negra. Meu primeiro contato mais profundo ocorreu através do livro Virou Regra? da Claudete Alves, que aponta que esta não é uma discussão sobre você estar ou não num relacionamento, mas sobre você estar e não se sentir amada, não se sentir respeitada, não poder contar com o companheirismo do seu parceiro. Acredito que a principal justificativa para a solidão a dois gira em torno do fato de que a mulher negra não é vista com um sujeito para ser amado. Depois passei a ler a obra da escritora norte-americana Bell Hooks, Vivendo de Amor, que também versa sobre o papel afetivo e a construção da identidade da mulher negra.

Leia mais: “Como não existe racismo no Brasil?”

Gosto é uma construção social? Como se aplica neste caso?
Desde que você nasce, é inserido nessa sociedade, há várias construções sociais que vão recair sobre você, invariavelmente, mesmo que você não queira. A ideia do lugar social que você ocupa depende de toda a construção social que imaginam ser “ideal” para uma mulher bonita ou para um homem bonito, o padrão estético. Muita gente se refere a este conceito como algo que surgiu do nada, mas não, ele foi baseado na ideia de supremacia branca – de que o branco sempre foi e sempre será o mais bonito. E o que muita gente não enxerga é que esse pensamento serviu como justificativa para várias crueldades praticadas na nossa sociedade.

Sempre em todas as revistas e propagandas, o branco é colocado como o mais bonito. E é muito dolorido ver que mesmo que as pessoas não se encaixem nesse padrão, vão olhar para o ideário de beleza e tentar se encaixar, custe o que custar. Qualquer indivíduo que não é branco vai tentar se encaixar, até mesmo os brancos que não fazem parte do padrão vão se esforçar para isso. Porque não é qualquer tipo estético que pode ser considerado belo, não há nenhuma pluralidade. E é dentro dessa padronização que você vai construindo, século por século, o que é bonito, bom, aceitável, legal. Aí você vai reforçando que a pessoa branca é o ideal em todas as situações – por que na construção afetiva seria diferente?

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A mulher negra sempre foi a subalterna, hipersexualizada, ou seja, não é para você construir uma relação. O homem negro também tem um lugar estigmatizado negativamente: o bandido, malandro, ou o ‘negão gostoso’, também hipersexualizado. Por isso, não consigo pensar que nenhum indivíduo é educado socialmente para ver pessoas negras como sujeitos, como dignas, múltiplas em suas qualidades e sentimentos. E a gente também tem muito internalizado essa ideia de relacionamento de amor à primeira vista: conheço um estranho e imediatamente me apaixono por ele, como num conto de fadas. Então, se você não enxerga os negros como pessoas, não tem como dar a eles a possibilidade de construir qualquer tipo de relação com eles. Não é simplesmente achar alguém atraente, é não dar a oportunidade de ver essa pessoa como alguém como você, que também tem histórias, vontades, gostos, habilidades, ou seja, similar a você em toda a sua complexidade humana.

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Como o patriarcado estrutura a solidão da mulher negra?
A solidão da mulher negra não é apenas uma consequência da estrutura social que coloca os brancos como superiores, mas também os homens como tal. É extremamente comum as pessoas acharem que todas as iniciativas para engatar um relacionamento devem partir dos homens – são eles que escolhem. Por isso muitas mulheres acreditam que afetividade é somente sobre as decisões masculinas, isto é, mesmo com todas as exceções, eles precisam se ver como os protagonistas do relacionamento. Se você está namorando um homem, você não é vista como sujeito, mas sempre como subalterna ao poder de decisão do seu parceiro.

Esse tipo de opressão não acontece nas relações homossexuais, apenas nas heterossexuais. Mas mesmo assim, por exemplo, um casal de dois homens gays – um negro e um branco – certamente, aquele com maior poder simbólico, vai poder tomar as decisões e fazer as escolhas.

Mas as opressões são estruturadas de modo que as mulheres negras são a base de uma pirâmide de classe que perde todas as possibilidades de fazer escolhas, mesmo que sejam as mais individuais, como as que dizem respeito a sua própria afetividade. Por isso, a solidão da mulher negra um complexo problema que envolve questões de gênero e raça. E isso, muitas das vezes, acarreta embates dentro do próprio movimento negro – existe (e muito) machismo dentro dos grupos que estão lutando contra o racismo.

Por mais vulnerável que seja a situação do povo negro no Brasil, a gente tem que entender que as mulheres negras também são negras e precisam lutar pelos seus direitos, precisam ter voz. E o que a gente vê por parte de muitos negros militantes são histórias que vão desde o completo abandono, até um relacionamento extremamente abusivo, com episódios explícitos de violência. Vejo que algumas mulheres cobram diferentes os parceiros quando são negros. Por exemplo, se ela apanhou dele, certamente, ela vai pensar duas vezes antes de denunciá-lo porque os negros já são encarcerados em massa.

O Estado, por si só, já é racista, já promove o genocídio do povo negro, e você, sabendo de tudo isso, de todas essas dificuldades, vai fazer um Boletim de Ocorrência contra um homem negro? E infelizmente, muitas mulheres negras vivem neste triste dilema. Eu, por exemplo, já ouvi várias vezes nós [mulheres negras] deveríamos nos calar porque ‘essa pauta não era muito importante’ ou ‘por não atingir a totalidade do movimento’. Então, os homens negros esquecem que nós também temos o direito de viver plenamente nessa sociedade, e para isso também acontecer, precisamos pautar o machismo dentro desses espaços coletivos, isto é, na sociedade como um todo, inclusive no próprio movimento negro.

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A solidão da mulher negra está ligada somente às suas relações afetivas?
Muita gente acha que sim, mas eu discordo. As mulheres negras têm seríssimos problemas afetivos, porque desde pequenas já não encontram bonecas, maquiagem da sua cor – é inevitável que essa ideia de que nunca seremos ideais, nunca faremos parte do que é socialmente aceito como belo, acarrete uma queda brusca na nossa auto-estima, e é claro que o nosso psicológico também.

Quando nós falamos do genocídio da população negra, a gente está falando que uma mãe que, muitas vezes foi abandonada pelo pai da criança, cria aquele filho com o maior cuidado do mundo e, de 23 em 23 minutos, ele pode simplesmente aparecer morto. Como você acha que estarão as condições emocionais e psicológicas desta mulher que já foi deixada de lado inúmeras vezes na vida? É praticamente inevitável que ela se torne muito depressiva e solitária.

Muitos acadêmicos defendem que raça e gênero não são questões que estão interligadas e podem ser debatidas juntas num mesmo recorte. Um exemplo disso é que homicídio de mulheres negras cresceu 54% em uma década, segundo o Mapa da Violência de 2015; enquanto o de brancas diminuiu consideravelmente. Ser mulher e negra pesa muito, e isso mata.

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A solidão da mulher negra remonta às nossas heranças escravocratas?
Com certeza. O impacto da escravidão não recai somente sobre os lugares que podemos ocupar ou não, sobre as oportunidades que temos ou não, mas também nas nossas famílias e na nossa afetividade – ter ou não namorado, ter ou não um relacionamento estável. Eu conheço meninas de 17 anos que já vivem numa solidão afetiva, que já têm a certeza de que em toda a sua vida poderão contar somente com elas mesmas.

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Há uma porcentagem gigantesca de mulheres encarceradas, por motivos que, muitas das vezes, não estão sequer ligados a elas. Essa solidão também existe: as mulheres são praticamente abandonadas atrás das grades, pela família, pelo marido, pelos filhos. Até mesmo no encarceramento, elas são definitivamente apagadas, como se não fossem minimamente importantes para ninguém.

E quanto mais você vai vivendo socialmente, mais essa solidão vai se tornando mais presente e a certeza que você não é vista como sujeito, como ideal. E mesmo mulheres negras que se encaixam em alguns padrões estéticos, de pele mais clara e traços mais finos, por exemplo, ainda encontram imensas barreiras porque sempre são enquadradas no papel de objetos sexuais, a ‘mulata’, a exótica.  

A mulher negra era tida na época da escravidão como um objeto reprodutivo, que existia exclusivamente para gerar mais objetos para trabalhar – sem qualquer vínculo familiar ou afetivo, porque eram frutos de uma violência. E hoje, a mulher negra é vista como alguém que precisa ser sempre forte, mantenedora da casa, ou objeto sexual, e essa imagem, reafirmada na mídia, tem um grande impacto na nossa construção afetiva, na nossa vida real. Não somos vistas como dignas de amor, porque as personagens negras são solitárias até mesmo no ativismo. Já ouvi de muitas mulheres negras que é melhor estar sozinha do que numa relação destrutiva, mas por que será que um relacionamento só pode ser abusivo ou violento para nós? Porque não nos veem como pessoas.

Quando você carrega muito estigma pelo que você é, seja ele duplo ou triplo, isto é, de raça e classe, você vai se esvaindo aos poucos da dignidade aos olhos dos outros, que amam e merecem ser amadas, que merecem ser respeitadas. Então, para mim, é muito claro que vivemos uma relação de causa e consequência quando abordo este assunto. Muita gente diz que a escravidão aconteceu há muito tempo, que já superamos isso, mas não é verdade, ainda é muito recente. Por isso, as relações de uma sociedade escravocrata determina a maneira como os indivíduos negros se relacionam afetivamente. As famílias negras acham que as demonstrações de afeto não são primordiais, porque você precisa, antes de tudo, ser forte para sobreviver, para combater, porque você precisa sair de casa e não levar um tiro. Mas a gente também precisa de afeto.

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O que você acha do termo “palmitagem”?
Uma das coisas que eu acho mais interessantes nas mulheres negras de diferentes países e contextos sociais é que, mesmo que os termos sejam diferentes, são usados para expressar exatamente a mesma coisa. Por exemplo, quando a Beyoncé em ‘Becky do cabelo bom‘, é uma expressão norte-americana para as mulheres negras designarem as brancas escolhidas por seus maridos para traí-las.

Essas gírias pertencem às comunidades negras e são usadas para criticar – mesmo que com peso diferente – o machismo dos homens negros heterossexuais, principalmente aqueles que estão no meio ativista ou que se tornaram famosos. No caso dos ativistas que pregam um discurso igualitário, mas quando você vai ver, têm vergonha de ter algum tipo de relação afetiva com mulheres negras. As francesas negras também possuem um termo análogo, e todos falam sobre o machismo dentro do movimento negro.

Já vi vários casos de homens negros que fazem parte da comunidade, assumem uma postura combativa mas quando se envolvem com uma mulher negra, sempre é na surdina; ou traem suas companheiras com uma mulher negra e não assumem um relacionamento com uma mulher negra, publicamente, porque têm vergonha. Mas quando namoram ou se casam com uma mulher branca, a primeira coisa que fazem é postar uma foto para todos verem. Isso acontece muito, o homem negro se envolve com uma mulher negra e a trata extremamente mal, até destruir sua auto-estima quando a troca por uma branca – que é exatamente o que significa o termo ‘palmitagem.

Muita gente diz que amor não tem cor, mas acho a expressão muito importante, porque versa sobre a misoginia do homem negro que deixa um lastro de destruição e enfatiza toda essa agressividade quando somente assume uma relação com uma mulher branca. Porque já somos vistas como um corpo subalterna, que em nenhum momento é admirado, em nenhum momento é exposta como a mulher que você faz planos para a vida inteira. Por isso, é importante ver na mídia casais como a Taís Araújo e Lázaro Ramos: mulheres que estão felizes e que são apoiadas pelos parceiros negros.

Acredito que esse machismo do homem negro é muito mais direcionado à mulher negra, porque é diferente você estar sofrendo agressão de um amigo ou ser preterida por alguém que você queria só ficar. Agora, sentir que seu parceiro tem vergonha da sua existência e é extremamente agressivo com você por não te enxergar como sujeito dói muito mais. Eles precisavam nos escutar, tentar entender porque essa meninas estão tão bravas, fazendo música apontando tudo isso, porque é muito mais nocivo para elas do que você pode supor. Tanto é que a Claudete diz que essas mulheres estão solitárias a dois – não conseguem sentir no companheiro a troca de afeto.

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Várias meninas que conheço ficariam extremamente felizes se seus companheiros não tivessem vergonha delas ou se não as vissem somente como ‘a outra’. É muito difícil, sabe? E as pessoas não entendem os porquês dos traumas e das tristezas da mulher negra. Imagina só ver seu parceiro te traindo com uma mulher branca – isso tem duplo peso e te atinge em dupla direção. Mas há uma naturalização de situações como esta, porque a mulher negra não é vista como bonita, sequer digna de algo. E o homem negro, apenas por ser homem, tem muito mais oportunidade de fazer uma escolha, e não nos enxerga como uma das possibilidades de escolha, ou pior, optam por nós e não assumem.

Leia mais: Michele, personagem de Taís Araújo em “Mister Brau”, dá aula sobre feminismo negro.

De que forma você acredita que a solidão da mulher negra está associada ao apagamento da figura num contexto macro social?
Da forma que nos resumem a apenas três estereótipos: mulher que só serve para o sexo, ou seja, que é objeto sexual; mulher negra de pele escura que adora brigar, barraqueira; ou aquelas que só servem para amparar nos momentos difíceis, as mãezonas. E quando você não se encaixa, principalmente, neste último caso, é sempre cobrada, porque você tem que ser forte. Mas não nos veem como seres pensantes, intelectuais, cheias de questões e sentimentos, como qualquer um. Por isso, ser preterida não é só sobre não ser sinônimo de um padrão estético bonito numa capa de revista, é sobre como as pessoas te veem e como vão de tratar: sempre inferior e mal, sequer capaz de ser sujeito.

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