Saiba como adotar uma dieta vegetariana saudável para o seu filho
Conheça os mitos e verdades do vegetarianismo infantil
Por décadas, o vegetarianismo infantil foi mal interpretado, acusado de causar déficits nutricionais graves em crianças. O problema não era a dieta em si, livre de proteínas de origem animal, mas erros alimentares. Hoje, cresce um movimento de crianças com dietas sem carne. Saiba como as refeições baseadas em plantas podem ser saudáveis para os pequenos – e para o planeta.
Não é exagero dizer que a alimentação nos tornou gente. O que nossos ancestrais comiam, baseado na oferta de alimentos e no domínio de técnicas para cozinhar carne e tubérculos, foi decisivo para diferenciar os hominídeos de outros primatas. Ingerimos muitas calorias, especialmente advindas de proteínas, para alimentar nosso cérebro voraz. Isso o deixou maior que o de outros animais – estima-se que ele, sozinho, exija 16 vezes mais energia do que outros tecidos do corpo. Em um sentido evolutivo, diz o antropólogo norte-americano William Leonard, somos o que comemos.
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A frase de William, especialista em desvendar o papel e as transformações da dieta na história humana, soa ainda mais atual, pois hoje sabemos como a comida impacta a saúde do planeta – no Brasil, a agropecuária é uma das principais fontes de gases do efeito estufa e grande consumidora de água. Por causa disso, tornar-se vegetariano vem se consolidando como uma decisão que começa cada vez mais cedo – e o fator principal é não fazer mal aos animais. Incentivados por pais ou por opção própria, crianças e adolescentes são a nova turma a engrossar o contingente vegetariano do Brasil.
Em 2018, o Ibope apontava que 14% dos brasileiros acima de 18 anos se declaravam vegetarianos, quase o dobro do percentual de 2012, quando eram 8%. Mas nos consultórios de nutricionistas país afora essa taxa vem aumentando a cada dia com uma geração mais consciente dos efeitos, além do prato e exposta a informações sobre vegetarianismo nas redes sociais.
Famosa no Instagram e no TikTok pelo carisma e pelas receitas com legumes e verduras variados, a pequena Antonela Cortes, 4 anos, é um exemplo desse novo estilo de vida. Há cerca de um ano, ela é a estrela do perfil @imaginavegan, criado pela mãe, Claiti Cortes, que produz conteúdo sobre maternidade e alimentação e hoje tem mais de 365 mil seguidores.
Claiti, 24 anos, começou a se interessar por esse mundo quando entrou na faculdade de nutrição, em 2016, e adotou o veganismo – quando não há consumo de qualquer derivado animal, como leite e queijo – antes mesmo da gravidez. Começou pensando na saúde, para evitar alimentos processados, mas hoje vê questões éticas e ambientais como suas maiores motivações.
Desde a gestação, compreendia que criaria Antonela priorizando uma alimentação baseada em plantas, sempre com acompanhamento pediátrico, e se surpreende com a naturalidade com que a filha abraçou a ideia. “No início, oferecemos ovos e derivados, mas ela nunca quis. Como ela via a minha alimentação assim, não achava estranho”, explica.
Apesar do aumento na popularidade, o vegetarianismo na infância ainda é visto com ressalvas. Parte do preconceito vem de décadas e está relacionado às conclusões precipitadas de estudos hoje criticados. Nos anos 1970, as primeiras pesquisas apontaram problemas de desenvolvimento em crianças vegetarianas, o que bastou para demonizar a prática.
De fato, as crianças veggies cresciam menos do que as onívoras e o que era para ser vegetarianismo virou sinônimo de desnutrição. Mas os motivos não estavam na dieta. À luz dos conhecimentos atuais, pesquisadores identificaram falhas nas pesquisas. “Os estudos que mostraram deficiência em crianças vegetarianas ocorreram apenas quando havia restrição de calorias ingeridas, por restrição alimentar, e não pelo fato da proteína utilizada ser de fonte vegetal. A dieta não era planejada ou prescrita por profissionais de saúde, proporcionando inadequações que, mesmo se houvesse produtos animais ou seus derivados, causaria deficiência”, afirma o parecer de 2020 da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB).
O desafio das dietas é prover todos os nutrientes necessários para um indivíduo se manter saudável. Isso não é garantido, como observam os especialistas da SVB, com a presença da proteína animal no prato. Mas, sem ela, o desafio aumenta, ainda mais considerando que vivemos no Brasil, país em que 20 milhões de pessoas passam fome e no qual metade da população viveu, em algum momento durante a pandemia, em insegurança alimentar. Neste caso, o acompanhamento nutricional tão necessário ao vegetarianismo saudável se torna uma miragem em termos de saúde pública.
Até mesmo um dos mais célebres pensadores da dieta, o filósofo australiano Peter Singer, deixa claro que a questão ética envolvida com comer carne só se aplica a pessoas que têm o suficiente para uma dieta saudável só de vegetais e não a populações pobres. Mas, para aqueles com condições financeiras de obter um acompanhamento nutricional especializado, algo assinalado em todas as pesquisas e pelos especialistas ouvidos por CLAUDIA (vale também para os onívoros), saiba que a ciência carimba seus benefícios.
Entidades como a Academia Americana de Pediatria e a Associação Dietética Americana atestam ser uma dieta segura na infância. “É um padrão alimentar considerado muito saudável, porque tem grande concentração de fibras e baixo teor de gordura. Vemos enorme benefício para o controle de peso, glicemia, colesterol e triglicerídeos”, corrobora a nutróloga Vanessa Sinnott, do Hospital Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
A principal mudança para aqueles que não comem carne é a dificuldade de obter a vitamina B12, aliada importante do sistema nervoso central e das células sanguíneas, cuja falta pode causar anemia e, em casos graves, até danos irreversíveis no sistema nervoso. “Na infância, período em que a criança está com crescimento e desenvolvimento acelerado, precisamos estar atentos e suplementar a B12. Mas algumas suplementações, como ferro e vitamina D, são obrigatórias para crianças até dois anos, independentemente da dieta”, explica o pediatra Bruno Shoiti Maehara, neonatologista do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, e especialista em dietas vegetarianas e veganas.
A suplementação é feita por meio de cápsulas ou injeção, com frequência definida pelo médico conforme o perfil e o nível de deficiência de cada paciente. Além disso, é preciso tomar cuidado com a ingestão correta de proteínas: mesmo em uma dieta vegetariana, que inclui os derivados de animais, elas vêm principalmente de cereais integrais e leguminosas, e não de ovos e laticínios.
Dentro de casa
Em geral, o controle cuidadoso da dieta é mais fácil quando os pais já fazem as refeições sem carne há algum tempo, como no caso de Claiti e Antonela. Também foi assim com o pediatra Bruno, que não come carne há 12 anos e hoje é vegano como a esposa, a também pediatra Agnes Midori Miyahara.
O casal sempre soube que criaria as filhas no mesmo estilo de vida. Irina, de 4 anos, e as gêmeas Isabela e Gabriela, de 2, logo se converteram nas “três veganinhas da família”. A introdução alimentar foi exclusivamente à base de plantas. “A gente sabe que a carne traz risco maior para algumas doenças e também dos malefícios para o meio ambiente, então como conseguir oferecer carne para o seu filho tendo esse conhecimento?”, questiona Bruno.
Em 2015, um levantamento da Agência Internacional para Pesquisa sobre Câncer (Iarc, na sigla em inglês) revisou mais de 800 estudos epidemiológicos sobre a correlação entre o consumo de carne e o desenvolvimento de tumores. O câncer mais comum era o colorretal: em média, detectou-se um aumento de 17% de chances de desenvolvê-lo a cada 100 gramas de carne vermelha consumida por dia e um aumento de 18% no risco a cada 50 gramas de carne processada (linguiças, salsichas, presunto, patês, carnes enlatadas, entre outros). As outras evidências que sugerem possíveis relações entre o consumo de carne e tumores são limitadas.
Para seguir na dieta, o casal de médicos se preocupa em trazer diversidade ao prato das crianças. A variação garante a presença de todos os nutrientes necessários para o desenvolvimento e crescimento – sem que a proteína de origem animal faça falta. “Nos primeiros dois anos de vida, a atenção à alimentação é imprescindível. É quando o corpo entende a forma como nosso metabolismo vai funcionar durante a vida”, explica Bruno. As plantas ajudam a programar o aparelho digestivo a ter facilidade na absorção de nutrientes.
O indicado é pensar o “prato ideal” dividido em três partes. A primeira deve ser ocupada por leguminosas (feijão, lentilha, grão-de-bico, ervilha), principal fonte de proteína da alimentação vegetariana. As crianças precisam de quantidades maiores do que adultos para assegurar uma formação adequada da musculatura.
Outra parte são as verduras e saladas com folhas verdes para repor fibras e vitaminas, como as do complexo B e cálcio. Por fim, entram os cereais, como arroz, trigo, milho, aveia; e raízes, como batatas e mandioca, que formam uma dupla com as leguminosas para a formação dos aminoácidos. A Sociedade Vegetariana Brasileira orienta também que seja adicionado uma fonte de ômega-3, como linhaça ou chia, e em alguns casos, azeite de oliva. Frutas, responsáveis por suprir as necessidades de fibras, vitaminas e antioxidantes, aparecem nos lanches.
Na infância, é especialmente importante evitar os alimentos processados. “Uma dieta baseada em alimentos que nós descascamos e não desembalamos previne uma série de problemas de saúde”, afirma Bruno. A nutróloga Vanessa Sinnott reforça que o mais importante é entender o que não pode faltar em cada terço, para que os nutrientes estejam sempre presentes, e a própria criança vá desenvolvendo autonomia para montar o prato conforme cresce.
Claiti incentiva a filha a participar de todas as etapas na cozinha, da escolha dos ingredientes ao preparo, buscando construir uma relação mais afetiva com a comida. “Mesmo se no futuro ela decidir não ser mais vegana, a alimentação variada vai fazer parte da vida dela para sempre”, comemora a mãe.
Claiti está certa em se orgulhar desse legado. Nestes milhões de anos de evolução, do tempo das cavernas até o fast-food, nossa alimentação mudou muito, mas um aspecto permaneceu: a extraordinária variedade do que comemos. “Fomos capazes de prosperar em quase todos os ecossistemas sobre a Terra, consumindo desde alimentos de origem animal, entre as populações do Ártico, até basicamente tubérculos e cereais entre as populações dos Andes”, escreveu o antropólogo William Leonard. O desafio agora, diz o pesquisador, seria um balanço entre o que ingerimos e o que gastamos, que envolve também as necessárias preocupações sobre a origem da comida e seu impacto na saúde do planeta, da qual a nossa depende.