Laqueadura feminina dá autonomia às mulheres sobre seus corpos
Mudança na lei brasileira tornou a decisão pelo procedimento mais acessível no país. Entenda por que a escolha da esterilização voluntária é revolucionário
Há pouco mais de um ano, a estudante Aghata Helena Gomes de Sena, hoje com 24 anos, saiu de uma “cesárea” sem ter dado à luz um filho. O corte de 8 centímetros que ela carrega no ventre não simboliza a realização de um parto, mas sim a cicatriz da laqueadura que ela decidiu fazer assim que soube que a legislação brasileira havia reduzido de 25 para 21 anos a idade mínima para a esterilização voluntária.
Mais do que isso: a nova regra dispensou a necessidade de autorização do companheiro e autorizou a realização do procedimento durante o parto e não mais somente 60 dias depois. Um grande avanço.
Apesar da pouca idade, Aghata não tem filhos e nunca quis ter. “Desde muito nova eu já sabia que não queria ser mãe”, disse a estudante, que hoje vive na Alemanha e trabalha como babá por meio do programa Au Pair. Ela contou que ao entrar na puberdade, aos 12 anos, começou a pesquisar meios de impedir a gravidez. “Tinha pavor só de pensar em engravidar”, lembra. A primeira relação sexual aconteceu aos 15 anos e, desde então, a jovem passou a usar anticoncepcional injetável como forma de prevenção, pois sabia que somente aos 25 anos poderia optar pela laqueadura.
“Mesmo usando anticoncepcional e preservativos eu não me sentia segura. Fiz inúmeros testes de gravidez e sempre era uma tensão”, lembra Aghata, que decidiu colocar o DIU (dispositivo intrauterino) de cobre juntamente com o anticoncepcional como uma medida protetiva adicional.
“Minha médica disse que era possível, então não pensei duas vezes. Ela me alertou que eu poderia ter problemas de adaptação, mas eu quis tentar mesmo assim. Coloquei o DIU e fiquei com ele por dois anos”, conta a jovem, que decidiu tirar o dispositivo por causa do aumento do fluxo menstrual.
Nesse período, Aghata passou a participar de vários grupos nas redes sociais que tratam do direito da mulher de não ser mãe – e foi em um deles que ela soube que o Ministério da Saúde estudava flexibilizar a legislação, reduzindo a idade mínima para a laqueadura. Em setembro de 2022 as mudanças foram aprovadas e passariam a valer a partir de março do ano seguinte.
Direito de decisão
Em dezembro daquele ano, quando estava com 22 anos, Aghata deu início ao processo. Chegou no consultório munida de todas as informações e preparada para qualquer tipo de tentativa de fazê-la desistir da ideia. Ao conversar com a médica, foi além, e pediu para fazer uma salpingectomia – que é a retirada total das duas trompas e não apenas de uma pequena porção delas. A ginecologista encaminhou a jovem para atendimento com uma psicóloga e assistente social e pediu para ela retornar quando as regras estivessem em vigor.
“A consulta com a psicóloga foi tranquila, mas a assistente social quis me convencer do contrário, falando que eu poderia me arrepender e que havia riscos para minha saúde. Eu apresentei todos os argumentos e respondi que era melhor eu me arrepender de não ter filhos (e depois adotar ou fazer fertilização in vitro, por exemplo) do que me arrepender de ter filhos e não querer cuidar deles”, disse. O argumento funcionou e a cirurgia de Aghata aconteceu no dia 28 de julho de 2023. “Realizei um sonho e hoje me sinto muito mais leve.”
A gerente de loja Lorene da Silva, de 33 anos, também fez a laqueadura recentemente. Ela não teve filhos e nem nunca quis ter. “Minha irmã foi mãe solo aos 15 anos, sofreu com o abandono do pai, e vivi muito de perto todos os perrengues que ela sofreu para conseguir criar minha sobrinha. Isso mexeu comigo”, conta.
Lorene foi casada duas vezes e diz que sempre teve essa questão da “não maternidade” muito bem definida com seus parceiros. Ela conta, no entanto, que sempre foi julgada por outras pessoas quando falava da sua escolha. “O corpo é meu e ter que ficar explicando para as pessoas sobre as minhas decisões era muito ruim”, lembra. A gerente deu entrada no protocolo e conseguiu operar em menos de 60 dias.
As histórias de Aghata e de Lorene não são exceção – elas são somente duas entre milhares de mulheres que optam por fazer a esterilização voluntária cada vez mais jovens, já tendo filhos ou não. Segundo o Ministério da Saúde, em 2022 foram realizadas 106.505 cirurgias de laqueaduras, e em 2023 foram 197.306 – um salto de 85%. Nos primeiros cinco meses de 2024 foram feitas 109.296 cirurgias, praticamente a mesma quantidade que em 2022 inteiro.
“Muitas mulheres aqui no Brasil, entre 21 e 25 anos, já tem uma prole constituída com três ou mais filhos por questões variadas, entre elas porque engravidou na adolescência. A limitação da idade era um problema para essas mulheres e reduzir a idade mínima para a laqueadura beneficiou especialmente aquelas com nível socioeconômico menor e com menos acesso ao sistema de saúde para uso de métodos anticoncepcionais não definitivos, como a pílula ou a colocação do DIU”, comentou a ginecologista e obstetra Maria Rita Sanchez, do Hospital Israelita Albert Einstein.
Para o ginecologista e obstetra Carlos Alberto Politano, membro da Comissão Anticoncepção da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), a flexibilização na lei reflete o aumento da liberdade de escolha dessas mulheres.
“Antigamente as mulheres se arrependiam muito. Mas hoje em dia o entendimento é de que a mulher tem o controle sobre a sua vida reprodutiva e pode escolher o que é melhor para o corpo dela. Em geral, essas mulheres têm convicção plena de que não pretendem ter mais filhos. E, se por acaso se arrependerem, sabem que podem se submeter à fertilização in vitro”, comentou.
Cirurgia definitiva
A laqueadura nada mais é do que uma interrupção do trajeto das trompas, impedindo que os espermatozoides depositados da vagina da mulher encontrem o óvulo para que ocorra a fecundação. “É como estar numa estrada e cair a ponte. Você não consegue atravessar para o outro lado”, resumiu Politano.
A cirurgia é relativamente simples: a técnica mais usada atualmente corta um pedacinho da trompa para descontinuar o canal que levaria os gametas masculinos e deixa os dois lados da trompa distantes. Em seguida, os cotos são amarrados e cauterizados. “A cauterização vai cicatrizar as pontas como uma fibrose e aquele canudinho vai fechar, impedindo que haja contato dos espermatozoides com o óvulo”, explicou Ilza Maria Urbano Monteiro, presidente da Comissão de Anticoncepção da Febrasgo.
Existe ainda a técnica em que se retira a porção final das trompas (onde estão localizadas as fibras, que estão em contato com os ovários) e a salpingectomia, que é a retirada de toda a trompa, como aconteceu com Aghata.
“Alguns estudos têm demonstrado que a salpingectomia está associada à redução nos índices de câncer de ovário. Então, além de esterilizar a paciente, essa técnica seria uma forma de prevenir esse tipo de câncer, que é raro, mas agressivo”, disse Politano.
É importante ressaltar que, independentemente da técnica utilizada, a laqueadura é uma esterilização definitiva e não é interessante que a mulher que opte pelo procedimento conte com a cirurgia de reversão. Essa possibilidade até existe, mas as taxas de sucesso giram em torno de 25%, ou seja, na maioria das vezes não funciona. “Quando a mulher opta pela laqueadura, ela precisa estar consciente de que as trompas não vão se refazer sozinhas”, alertou Ilza Maria.
Sem riscos para a saúde
Desde que seja feita adequadamente, a laqueadura não interfere na função ovariana e não altera o ciclo menstrual. A suposta irregularidade na menstruação após o procedimento nunca foi comprovada cientificamente – o que costuma acontecer é um pequeno aumento do fluxo, pois essas mulheres deixam de usar a pílula contraceptiva, que auxiliam na regulação do ciclo. Também é mito que a laqueadura leve à menopausa precoce – esse é outro conceito que as pessoas acabam reproduzindo falsamente na internet.
Em resumo, a laqueadura é um procedimento extremamente seguro e um método de esterilização altamente eficaz. A principal orientação dos especialistas é que a mulher não tome a decisão pela laqueadura em um momento delicado da vida, como quando ela está se separando do companheiro, por exemplo.
“Toda decisão definitiva precisa ser tomada quando a mulher estiver emocionalmente segura e com a vida estável para não se arrepender anos depois. É comum vermos casos em que a mulher fez a laqueadura e o desejo da gestação voltou quando trocou de parceiro. Isso é um complicador”, finalizou Maria Rita.
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