Cresce número de mulheres diagnosticadas com autismo depois dos 30 anos
A pressão social para se encaixar em padrões faz garotas camuflarem comportamentos típicos do transtorno e muitas só descobrem a condição já adultas
A paulista Joana Scheer, 34 anos, é casada, tem três filhos, trabalha com webdesign e não consegue pegar um ônibus sozinha. “Eu me perco”, confessa. A exigência de prestar atenção ao nome e número da linha – sem contar a necessidade de esticar o braço para sinalizar ao motorista que deseja subir no veículo – causa uma espécie de curto-circuito cerebral. “E mesmo que eu consiga fazer tudo isso e entrar, é ainda mais difícil compreender onde tenho que parar”, diz.
Outro ato banal na vida da maioria das pessoas também se torna um suplício para ela: as festas de aniversário. “Não é que eu não goste que cantem parabéns para mim. Eu não tolero. Choro que nem criança, vou me esconder no banheiro, passo vergonha.”
Por décadas, mulheres como Joana foram tachadas de esquisitas ou extremamente tímidas. Hoje, a paulista sabe que tem Transtorno do Espectro Autista (TEA). O motivo pelo qual este diagnóstico seria praticamente descartado anos atrás – e talvez tenha demorado a chegar a Joana – é o consenso, que agora começa a ser colocado à prova, de que o autismo é muito mais comum em meninos do que em meninas.
Joana foi diagnosticada aos 31 anos, quando o sofrimento por ser diferente se tornou grande demais e ela procurou uma neuropsicóloga. “Eu não aguentava mais, não queria viver. Eu via as outras mães desempenhando seus papéis muito melhores do que eu; cuidando da casa e trabalhando fora, enquanto eu nunca consegui ter um emprego formal”, conta.
Na mesma época, procurou também uma neuropediatra para seu filho mais velho, hoje com oito anos, depois de um alerta da escola sobre comportamentos repetitivos do menino. Ela e ele receberam o diagnóstico quase ao mesmo tempo.
Depois, foi a vez do filho mais novo, de 5 anos, que também tem TEA. Apesar de não ser o único, o componente genético é um dos principais fatores por trás da condição. “Isso acontece bastante. Tenho muitas amigas autistas que foram diagnosticadas através do exame do filho”, explica a programadora, que é dona de um site e da página “Ela é Autista”, no Facebook, onde compartilha vivências e informações sobre o assunto.
Desde muito pequena, Joana desenvolveu uma habilidade extraordinária de disfarçar as características associadas ao transtorno. “Em um determinado momento, comecei a perceber que eu era diferente das meninas da minha idade, então eu as imitava. Copiava desde a caligrafia até a roupa”, conta.
Laura Carta, 22, também desenvolveu estratégias para disfarçar seus traços autistas, como a dificuldade de fazer contato visual. “Se você conversa comigo, pensa que está tudo sob controle. Mas, se eu precisar dizer a cor dos seus olhos, não vou saber, porque não olhei diretamente para eles”, fala.
Moradora de Curitiba, ela foi diagnosticada aos 18 anos, após passar a infância e a adolescência penando para se encaixar no que a sociedade impunha como normal e recebendo diferentes diagnósticos psiquiátricos equivocados.
De acordo com estudos recentes, essa capacidade de camuflagem é uma das principais barreiras ao diagnóstico do TEA no sexo feminino. Somam-se a isso estruturas sociais que fazem as meninas entenderem, desde cedo, que precisam se adaptar ao que se espera delas.
“As mulheres são condicionadas ainda pequenas a serem mais sociais, complacentes, a se esforçarem para se adaptar. Já os homens normalmente são incentivados a fazer o que querem. Por terem essa liberdade, eles exibem mais livremente seus traços autistas enquanto as meninas tendem a suprimi-los”, explica Abby Sesterka, pesquisadora do AutismMQ, um grupo que investiga a condição na Macquarie University, em Sydney, na Austrália. Ela própria foi diagnosticada com TEA.
Segundo um estudo publicado no ano passado no Journal of Autism and Developmental Disorders, a proporção entre meninos e meninas autistas pode ser de 1,8 para 1 – bem abaixo do que se pensava, de que havia três vezes mais meninos autistas do que meninas.
“Há uma crescente preocupação de que autistas do sexo feminino não estão sendo diagnosticadas ou que isso esteja acontecendo muito tarde e ainda que tenham recebido diagnósticos equivocados anteriores”, alertam as pesquisadoras da Universidade de Londres e do King’s College.
É possível que esse subdiagnóstico tenha contribuído à ideia distorcida de que a condição seria prevalente nos homens. A Organização Pan-americana da Saúde estima que uma em cada 160 crianças tenha TEA, causado por uma combinação de fatores genéticos, neurobiológicos e ambientais.
Como os estudos sempre focaram em meninos, aquilo que a medicina entende como autismo pode ser, na verdade, a forma como o autismo se manifesta no sexo masculino. “O que a gente tem se perguntado é: ‘Será que não ficamos chovendo no molhado sem prestar atenção às manifestações das meninas?’ Dessa forma, eu descrevo o transtorno em meninos, identifico neles e continuo recrutando-os para as pesquisas”, reflete a psiquiatra Ana Soledade Graeff-Martins, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
“Se eu tivesse recebido o diagnóstico mais cedo, acho que eu teria crescido gostando muito mais
Joana Scheer, programadora
de quem eu sou, e isso para mim é a coisa mais importante do mundo”
A bióloga e geneticista Ana Cristina Girardi, pesquisadora do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco, da Universidade de São Paulo (USP), acredita que os testes padronizados, aplicados na hora do diagnóstico, precisam ser aprimorados para considerar diferenças do autismo feminino – hoje, eles são baseados nas manifestações observadas no sexo masculino.
“Quanto mais cedo é feito o diagnóstico, melhor o prognóstico de levar uma vida plena. O esforço de disfarçar comportamentos e interesses restritos é exaustivo e causa sofrimento”, afirma Ana Cristina. A USP abriga o Progene, que oferece atendimento multidisciplinar a preços acessíveis voltado para o diagnóstico clínico e genético do TEA, em São Paulo.
As duas faces do diagnóstico
Até 2013, a medicina entendia o autismo sob duas perspectivas bastante limitadas: a do “autismo clássico”, cujas restrições são severas; e a da Síndrome de Asperger, na qual os traços estão presentes de forma mais sutil, não impedindo que o indivíduo tenha uma vida afetiva e profissional.
Em 2013, a Síndrome de Asperger foi excluída do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais norte-americano – o mais conceituado na área da saúde mental – e passou a ser incluída sob um conceito mais amplo, o Transtorno do Espectro Autista. “Em vez de eu dizer que a pessoa tem autismo, eu atribuo diferentes níveis de comprometimento. Por isso o nome espectro”, explica Ana Soledade.
Em comum, há algumas características que podem aparecer com maior ou menor intensidade, como dificuldade de socialização e de comunicação, movimentos repetitivos (gritantes, como balançar a cabeça sem parar, ou sutis, como girar um anel no dedo), interesses restritos (se interessar apenas por dinossauros, por exemplo) e o excesso ou falta de sensibilidade à luz, aos sons, ao tato ou ao paladar.
Para fechar o diagnóstico, é preciso haver comprometimento em mais de um aspecto relacionado à interação social e em mais de um fator relacionado às repetições, interesses restritos e dificuldades sensoriais.
Apesar desse diagnóstico mais inclusivo, muitas mulheres só chegam aos consultórios psiquiátricos quando apresentam casos muito graves de TEA ou se têm outros sintomas associados ao autismo e, por fim, através dos filhos.
“Conforme vai ficando sem diagnóstico, o autista começa a apresentar ansiedade, depressão, entre outras doenças. Isso vai se acumulando. Quando o paciente chega no consultório, devemos primeiro tratar essas comorbidades”, explica a psicóloga Lúcia Andréia da Silva. Moradora de São Bernardo do Campo, no interior de São Paulo, ela tem um projeto junto a mulheres autistas chamado “Vozes do Autismo”, que promove palestras de esclarecimento sobre o TEA.
Para muitas mulheres, receber o diagnóstico é um alívio. Finalmente, é possível dar um nome àquela sensação angustiante de que “há algo de errado comigo” e dá para aprender a tirar proveito dessa forma diferente de experimentar o mundo. “Com o diagnóstico, me permiti me culpar menos, não me sentir tão mal sobre as coisas com as quais eu tenho dificuldade e, ao mesmo tempo, entender meus pontos fortes e me sentir orgulhosa das minhas conquistas”, explica Abby.
Alguns autistas conseguem, por exemplo, usar o seu hiperfoco – o interesse restrito em um assunto – para se tornar expoentes em uma área. É o caso da colorista Marina Amaral, de 26 anos, cuja obsessão por pintar fotos antigas a transformou em uma das coloristas mais requisitadas do mundo.
“Quanto mais cedo é feito o diagnóstico, melhor o prognóstico de levar uma vida plena. O esforço
Ana Cristina Girardi, pesquisadora
de disfarçar comportamentos e interesses restritos é exaustivo e causa sofrimento”
Joana aprendeu a linguagem de programação sozinha, após passar noites em claro na frente do computador. Hoje, ela entende que aquela obsessão tem a ver com o TEA, assim como várias outras características que os outros viam como esquisitices, como a fixação por desenhos infantis (ela é tão fã do jovem ninja Naruto quanto seus filhos) e a dificuldade de atravessar fora da faixa de pedestres (sua noção de distância é prejudicada, o que torna esta uma operação perigosa).
“Eu passei 31 anos sem saber quem eu era, como me portar. Não sabia me vestir. Agora, uso o que gosto e pronto”, diverte-se. “Inspiro-me em uma grande mistura de personagens que eu também fui imitando ao longo da minha infância e adolescência, como Edward Mãos de Tesoura, a Bela, de Crepúsculo, Beetlejuice, Alice no País das Maravilhas. Se eu tivesse recebido o diagnóstico mais cedo, acho que eu teria crescido gostando muito mais de quem eu sou, e isso para mim é a coisa mais importante do mundo”, diz.
O autoconhecimento também revolucionou tarefas simples, como ir ao supermercado. Como vários autistas, Joana tem hipersensibilidade a luzes e sons. “Hoje, vou de óculos escuros e fone de ouvido tocando a música que eu gosto”, conta.
Porém, o diagnóstico que para uns serve de estímulo, para outros vira uma prisão. “Algumas pessoas enxergam como uma limitação e deixam de tentar fazer coisas que elas poderiam conseguir. O TEA faz parte de você, mas você não é só o TEA”, explica Laura, que administra o grupo de Facebook “Mulheres Autistas BR”.
Manter a estratégia de disfarçar o autismo é uma faca de dois gumes. Funciona como uma espécie de treino de habilidades sociais, algo que é feito nas terapias para ajudar os autistas a ter uma vida menos limitada, mas gera exaustão e sofrimento. “Todos nós ajustamos nosso comportamento em diferentes situações, assumindo papéis e máscaras sociais. Mas isso ocorre de forma natural. Para os autistas, exige um esforço muito maior”, observa Ana Cristina.
Outro problema é a banalização de um diagnóstico complexo, que só pode ser feito por profissionais capacitados – o TEA aparece muitas vezes sobreposto a outros transtornos, como ansiedade, depressão e déficit de atenção. “Sempre alerto as pessoas para que tomem muito cuidado com isso, porque um diagnóstico é para a vida inteira”, diz Joana.
Para Abby, no entanto, o mais importante é que a sociedade aprenda a acolher as pessoas com TEA. Há um movimento, batizado de neurodiversidade, que considera o autismo não uma deficiência, mas uma diferença na forma de se relacionar com o mundo. Apesar das implicações éticas e legais dessa escolha – se não for considerado um transtorno, o autismo pode não ser contemplado por políticas públicas que amparam os pacientes –, o debate chama atenção para a necessidade de a sociedade acolher e respeitar quem diverge do tão nocivo padrão.
“Se as pessoas são forçadas a situações onde não podem exercer sua autenticidade, não podem ser elas mesmas, a vida se torna difícil. Autistas têm cerca de 70 vezes mais chances de cometer suicídio. Há muitos problemas de saúde mental que estão relacionados ao fato de se tentar viver uma vida que não é adequada para você. São questões que precisamos enfrentar, porque do contrário teremos pessoas saudáveis sendo incapacitadas pelos ambientes em que vivem”, avisa Abby.
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