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Pioneiros! Brasileiros descobrem tratamentos de doenças em drogas psicotrópicas

O país avança nas pesquisas sobre os efeitos terapêuticos das drogas psicodélicas – como a ayahuasca para o tratamento da depressão e do declínio cognitivo

Por Texto Pedro Nakamura e Sílvia Lisboa
Atualizado em 28 jan 2021, 13h14 - Publicado em 18 jan 2021, 11h00
Ilustração de uma estátua de mulher branca com intervenções coloridas de uma escada, um céu. Sua cabeça está cortada no topo e é possível ver seu cérebro colorido
 (Foto Pexels • Colagem Palmiro Domingues/CLAUDIA)
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Durante dois anos e meio, seguindo os mais altos padrões científicos, uma espécie de sessão terapêutica semelhante aos rituais xamânicos foi reproduzida dentro do Hospital Universitário Onofre Lopes, em Natal, no Rio Grande do Norte. Porém, no lugar de xamãs, havia cientistas.

Em vez de tambores e cantos entoados por indígenas, a música vinha de uma playlist inspirada nas composições usadas pela União do Vegetal, uma sociedade religiosa espírita fundada nos anos 1960 com objetivo de promover “a paz e o desenvolvimento espiritual de seus discípulos”.

Vinte e nove pacientes com depressão grave resistente aos antidepressivos convencionais, em tratamento no hospital, foram recrutados para o estudo. Metade tomou um chá terroso feito à base de folhas de um arbusto misturadas à casca de um cipó encontradas na Amazônia.

Conhecida como ayahuasca ou daime, a bebida provoca estados alterados de consciência, uma ação conhecida por povos indígenas na América do Sul desde tempos imemoriais, mas que até então não havia sido testada em um ensaio clínico com padrão ouro para testar a eficácia de novos fármacos.

“Foi o primeiro trabalho no mundo com um desenho experimental duplo-cego e placebo controlado a avaliar a ayahuasca para o tratamento de uma condição psiquiátrica grave”, descreve a cientista Fernanda Palhano, cujo projeto de doutorado originou o estudo. “Neste modelo, não se escolhe qual paciente tomaria o chá e qual tomaria o placebo. A seleção é aleatória”, explica.

Durante a semana que se seguiu ao experimento, Fernanda e seus colegas colheram relatos dos pacientes e uma série de marcadores bioquímicos, hormonais e inflamatórios que pudessem dar pistas da ação no organismo da infusão. Os resultados impressionaram.

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Na avaliação feita neste período, 64% do grupo que havia bebido o chá de ayahuasca real teve a diminuição dos sintomas contra 27% dos integrantes do time controle que ingeriu o chá falso. O dado mais surpreendente foi o do fim dos sintomas. Do grupo que apresentou melhora, cerca de 36% não tinham mais sinais depressivos, contra 7% do time do placebo.

Todos os pacientes, no entanto, foram informados que tomariam a ayahuasca, a infusão de gosto amargo que pode provocar vômitos. “Pedimos a eles que pensassem num desejo, numa dúvida ou problema que serviria como fio condutor da experiência”, descreve.

Ilustração de uma estátua de mulher branca com intervenções de flores e folhas
(Foto Pexels • Colagem Palmiro Domingues/CLAUDIA)

Fernanda, então doutoranda do Instituto do Cérebro (IC) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, conduziu o experimento inédito ao lado de Dráulio de Araújo, pioneiro no estudo dos psicodélicos no país. “Embora a pesquisa científica realizada no sul global tenda a ter menos visibilidade, sabemos que temos o potencial de liderar este campo do ponto de vista mundial”, anima-se a antropóloga Beatriz Labate, diretora-executiva do Instituto Chacruna, uma entidade sem fins lucrativos dedicada à pesquisa e ao conhecimento sobre medicina à base de plantas psicodélicas, sediada em San Francisco, nos Estados Unidos.

O estudo não seguiu para avaliar se o efeito do tratamento perdurou por mais tempo, mas abriu uma nova frente de pesquisa que colocou o Brasil na vanguarda do renascimento psicodélico mundial. O país se beneficia da autorização da ayahuasca para uso religioso e científico desde 1987.

“Temos uma certa posição de destaque por conta da pesquisa com a ayahuasca, mas já há projetos encaminhados a serem feitos com psilocibina (a substância presente em cogumelos), e um já feito e publicado com MDMA (o princípio ativo do ecstasy), que também está nesse rol”, explica o psiquiatra Luís Fernando Tófoli, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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Conforme ele explica, a lei de drogas determina que a Anvisa pode estabelecer a legalidade para uso experimental. Isso não reduz, no entanto, as burocracias que exigem pedidos formais de autorização à agência que regula os medicamentos nem as interferências políticas que colocaram o Brasil em desvantagem nas pesquisas com a maconha, por exemplo.

Recentemente, o Governo Bolsonaro votou contra a retirada da cannabis da lista das drogas mais perigosas, em que figurava ao lado da heroína desde 1961, uma sinalização de que não reconhece o potencial terapêutico da substância, em descompasso até mesmo com a academia americana.

“A universidade nem sequer consegue plantar, fazer suas próprias cepas de maconha. A Unicamp teve um pedido negado mês passado”, lamenta o neurocienrista Sidarta Ribeiro, também do IC de Natal. “Estamos ficando para trás na revolução do século 21.”

Em 2018, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), da qual Sidarta é um dos diretores, se posicionou a favor da legalização e regulamentação de todas as drogas no país. A moção, aprovada por unanimidade e encaminhada às autoridades brasileiras, defende uma política de drogas “progressista e não proibicionista, orientada pelas melhores evidências científicas disponíveis nacional e internacionalmente, e livre de dogmatismos e preconceitos”.

“O que a gente precisa para um uso responsável e não abusivo é regulamentação, bula, posologia, controle de qualidade, acompanhamento psicoterapêutico capacitado. A ideia de que a proibição protege é um equívoco. Pessoas que nem usam podem tomar tiro por causa disso”, observa Sidarta, referindo-se às mortes de jovens e crianças nas favelas brasileiras causadas pela guerra às drogas. A posição de uma das maiores entidades de ciência no país não parece ter sensibilizado o governo atual.

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Não se sabe exatamente o que causa o efeito antidepressivo da ayahuasca: se é uma mudança na bioquímica cerebral, a experiência mística ou ambos. Uma das hipóteses tem a ver com o aumento da disponibilidade de serotonina, neurotransmissor que regula o humor e o bem-estar.

Fernanda explica que psicodélicos clássicos, como o famoso LSD; a psilocibina, dos cogumelos; a mescalina extraída do cactus peiote; e a DMT, a substância presente na ayahuasca, atuam nos mesmos receptores cerebrais que os da serotonina, causando efeitos semelhantes aos de alguns antidepressivos, sem os indesejáveis efeitos colaterais ou a demora para surtir resultados, um problema sério no tratamento convencional da depressão.

Mas o impacto pode ser ainda mais profundo. Um estudo conduzido também no IC, por Sidarta, em parceria com Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostrou que os psicodélicos atuam na formação de novos neurônios e sinapses cerebrais. Sidarta e Rehen investigaram o efeito do LSD no cérebro de roedores e constataram que a substância é um potencial estimulante cognitivo.

Sob o efeito do ácido lisérgico, os animais de diferentes idades obtiveram uma melhora do desempenho nas tarefas. A proteção contra o declínio mental abriu uma nova frente de pesquisa no Brasil. “São sete artigos no mundo todo que mostram o efeito dos psicodélicos no aumento da produção de neurônios ou sinapses. Quatro deles são brasileiros”, afirma o neurocientista.

Cientistas como Fernanda e Sidarta estão particularmente interessados nas experiências psicológicas provocadas pelas substâncias e não apenas nos seus efeitos neuroquímicos. Não raro, após as sessões, os pacientes descrevem terem sido arrebatados por imagens e vivências intensas que os fazem rever crenças – indígenas e caboclos classificam esses transes como uma cura espiritual. Os psicodélicos afetam um conjunto de pontos cerebrais, conhecidas como áreas de funcionamento-padrão, que mexem com a percepção do “eu” e memórias autobiográficas.

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Segundo Tófoli, há estudos com psilocibina mostrando que pessoas com experiências místicas intensas tiveram mais chances de se manter abstinentes do cigarro. “Os psicodélicos quebram a barreira entre você e o mundo. Em doses mais altas, surge a percepção que você se misturou com o universo”, descreve o psiquiatra.

Ilustração de uma estátua de mulher branca com intervenções coloridas de flores e folhas
(Foto Pexels • Colagem Palmiro Domingues/CLAUDIA)

Outra substância promissora é a ibogaína, o princípio ativo de um arbusto encontrado na flora africana. A planta foi testada com sucesso para tratamento da dependência química pelo psiquiatra Dartiu Silveira, professor da Unifesp. Um ano após o tratamento, 7o% dos 75 pacientes estavam livres da dependência.

Já o MDMA, princípio ativo do ecstasy, é visto como uma das maiores promessas para o tratamento de estresse pós-traumático – vários países cogitam usá-lo para tratar veteranos de guerra. “São efeitos incríveis já em fase três de estudo nos Estados Unidos, e o provável primeiro comprador é o Pentágono porque há milhares de ex-combatentes traumatizados, desajustados e em sofrimento”, afirma Sidarta.

A expectativa é que o uso do medicamento possa ser liberado a partir de 2022. Já a psilocibina é estudada em terapias paliativas com pacientes terminais. Eles relatam ter uma prazerosa sensação de dissolução do ego, que promove paz nos momentos finais da vida.

Apesar da má-fama injustamente imputada pelos anos de demonização feita por autoridades policiais e reproduzidas na imprensa, as substâncias psicodélicas não causam dependência. É o que demonstra a revisão feita pelo cientista norte-americano David Nichols, em 2016, ainda hoje a mais completa sobre os efeitos delas. Isso não significa que usuários estejam livre de riscos.

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Pessoas com psicoses, diagnosticadas com esquizofrenia ou transtorno bipolar não devem tomá-las. Tófoli também guarda cautela quanto à panaceia atribuída às plantas alucinógenas. “Apesar do entusiasmo, há um certo hype de dizer que psicodélico é mais poderoso que os antidepressivos. Não é bem assim, não. São recursos terapêuticos como quaisquer outros. Precisamos definir com maior clareza as indicações, contra-indicações e limites”, diz.

A pandemia freou os estudos na área no último ano, e o Brasil pode perder a liderança na virada psicodélica mundial. Mas a antropóloga Beatriz Labate observa que ainda estamos em vantagem graças ao conhecimento ancestral acumulado pelos povos indígenas. “Existe aqui uma forte tradição cultural de uso destas substâncias, o que permite um ambiente mais holístico para entender o significado e o impacto destas práticas na vida das pessoas”, acredita.

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