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Vidas indígenas na mira: o aumento da violência contra povos originários

A violência teve um recrudescimento nos últimos meses. Lideranças dizem que falta empatia da sociedade civil

Por TEXTO Joana Oliveira FOTOS Claudia Andujar, cortesia da galeria Vermelho
10 jun 2022, 09h05

Uma menina Yanomami de 12 anos estuprada até a morte por garimpeiros e outra criança de 3 anos desaparecida após ser jogada num rio em Roraima. Um jovem de 18 anos assassinado ao coletar lenha na sua comunidade Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Outro, de 25 anos, da etnia Huni Kuin, morto com 37 facadas no Acre. A lista é trágica, e, infelizmente, longa. Esses são apenas alguns dos casos de violações dos direitos indígenas no último mês no Brasil. A maior pressão de grileiros, exploradores de madeira ilegal e, principalmente, o aumento de invasões de garimpeiros em territórios protegidos são as principais causas desse massacre. Com a tramitação no Congresso Nacional de projetos de lei como o 191/2020, que libera atividades de mineração, agropecuária e outros empreendimentos em terras de povos originários, antropólogos, cientistas sociais e lideranças indígenas temem que essa onda de violência aumente ainda mais.

“Sempre houve divergências entre nossa luta por direitos e os governos democráticos, mas, desta vez, lidamos com um Executivo declaradamente anti-indígena, que propaga uma violência contra nossos corpos e nossa cultura”, afirma Sonia Guajajara, coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (APIB) sobre a presidência de Jair Bolsonaro. Além de cumprir a promessa eleitoral de não demarcar “nem mais um centímetro de terra” dos povos originários, ele impulsou o desmatamento, que cresceu 56,6% no seu mandato, de acordo com dados do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).

Filme de alto-contraste, RR - da série A floresta, 1974. ©Claudia Andujar. Cortesia Galeria Vermelho
Filme de alto-contraste, RR – da série A floresta, 1974. ©Claudia Andujar. Cortesia Galeria Vermelho (Claudia Andujar/CLAUDIA)

Na última semana de maio, os filhos de Omama (criador do mundo na cosmogonia Yanomami) se reuniram no coração da Amazônia para celebrar os 30 anos de homologação da Terra Indígena Yanomami maior território originário do país, na fronteira de Roraima e Amazonas com a Venezuela, com 371 comunidades, mas havia pouco o que comemorar. Na região, o garimpo ilegal avançou 46% no ano passado em comparação com 2020, quando já havia sido registrado um salto de 30% naquele ano em relação a 2019, de acordo com o Instituto Socioambiental (ISA) e da Hutukara Associação Yanomami.

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“O ataque ao nosso povo já ocorreu na década de 1980, com a invasão de mais de 40 mil garimpeiros. Hoje, em 2022, a história se repete”, alerta Dario Kopenawa, vice-presidente da Hutukara. Os projetos desenvolvimentistas na floresta Amazônica começaram nos anos 1970 e dizimaram comunidades inteiras devido ao impacto epidemiológico do contato com os não-indígenas, como lembra a antropóloga Hanna Limulja, que estuda os Yanomami há mais de 10 anos e acaba de lançar o livro O Desejo dos Outros: Uma Etnografia dos Sonhos Yanomami (Ubu e ISA), como alerta para a necessidade de preservar a existência desse povo.

Yanomami - da série O invisível ou O reahu, 1974. ©Claudia Andujar. Cortesia Galeria Vermelho
Yanomami – da série O invisível ou O reahu, 1974. ©Claudia Andujar. Cortesia Galeria Vermelho (Claudia Andujar/CLAUDIA)

Segundo ela, uma dificuldade no combate à violência contra essa etnia é que, em sua cultura, os cadáveres são queimados. “Por isso, nos conflitos com os garimpeiros, é difícil que a Polícia Federal ou o Ministério Público encontrem evidências”, explica. Foi o que aconteceu no caso da menina de 12 anos que morreu após ser estuprada no final de abril. Depois do ocorrido, as 25 pessoas da comunidade Aracaçá desapareceram, e o protesto “Cadê os Yanomami?” tomou as redes sociais. Soube-se, posteriormente, que eles haviam se refugiado em uma aldeia vizinha.

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Os garimpeiros culpados não foram identificados e a Funai não respondeu às perguntas de CLAUDIA sobre esse e outros crimes contra povos originários. “O problema é que, depois da hashtag, as pessoas se esquecem da causa indígena. É mais fácil se comover com a guerra da Ucrânia do que com a guerra acontecendo na floresta Amazônica”, lamenta Hanna. Sonia Guajajara concorda: “Se o assassinato brutal de uma criança não gera protestos nem responsabilização, não sei até quando a sensibilidade das pessoas brancas ficará imune a toda essa violência. Infelizmente, mobilizamos primeiro a opinião internacional para depois sermos ouvidos aqui”.

Yanomami - da série O invisível ou O reahu, 1974. ©Claudia Andujar. Cortesia Galeria Vermelho
Yanomami – da série O invisível ou O reahu, 1974. ©Claudia Andujar. Cortesia Galeria Vermelho (Claudia Andujar/CLAUDIA)

No ano passado, a APIB denunciou Bolsonaro por crimes contra a humanidade e genocídio no Tribunal Penal Internacional de Haia, e mais de 5 mil indígenas de 117 povos acamparam em Brasília para reivindicar seu direito à vida, com pouco ou nenhum apoio popular.

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Não se trata só do corte de árvores, são nossos corpos que estão sendo ceifados. Somos guardiões da floresta, mas também sujeitos de direito

Sonia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros

Para Sonia, isso acontece porque a sociedade brasileira não reconhece os povos originários como parte dela. “Nem o sistema educacional se atualizou para falar dos indígenas, somos vistos como povos do passado. Nos imaginam como exclusivamente amazônicos, silvícolas, vivendo distante, com quem ninguém tem nada a ver”, diz. “As pessoas se indignam muito mais ao ver um indígena com um smartphone do que quando uma criança indígena é assassinada”, acrescenta a antropóloga Célia Xakriabá, que carrega seu povo no nome. Ela lembra que essa violência e racismo são estruturais: as legislações ambientais foram feitas sem consultar os povos originários, e, invariavelmente, os territórios só foram demarcados após o assassinato de alguma liderança. “Só em 2019, 135 líderes indígenas foram assassinados. São crimes que sempre acontecem e quase não há notoriedade para eles. Além disso, 70% das crianças Yanomami estão contaminadas por mercúrio do garimpo. São crianças que estão vivas, mas com uma sentença de morte”, denuncia.

Yanomami - da série O invisível ou O reahu, 1974. ©Claudia Andujar. Cortesia Galeria Vermelho
Yanomami – da série O invisível ou O reahu, 1974. ©Claudia Andujar. Cortesia Galeria Vermelho (Claudia Andujar/CLAUDIA)

Célia lembra de Alessandra Munduruku, que foi ameaçada após expor a realidade indígena no Brasil na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26), tendo a casa invadida pelo menos duas vezes, e do xamã Yanomami Davi Kopenawa que, apesar de internacionalmente reconhecido, vive sob constante ameaça de morte. No livro A Queda do Céu (Companhia das Letras), ele faz um libelo contra a destruição amazônica e denuncia o cortejo de epidemias, violência que os não-indígenas levaram ao seu povo.

Sem título - da série A casa, 1974 ©Claudia Andujar. Cortesia Galeria Vermelho
Sem título – da série A casa, 1974 ©Claudia Andujar. Cortesia Galeria Vermelho (Claudia Andujar/CLAUDIA)

Sonia e Célia afirmam que a preocupação social só desponta quando vêm à tona os crescentes números de desmatamento a Amazônia registrou recorde de destruição em abril (foram 1.012,5 quilômetros quadrados desmatados nesse mês, um aumento de 74,5% em relação a 2021), de acordo com o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). “Não se trata só do corte de árvores, são nossos próprios corpos que estão sendo ceifados”, diz Sonia, enquanto Célia lembra que os povos indígenas do planeta representam 5% da população mundial e protegem 80% da biodiversidade global. E aí, as duas explicitam uma armadilha narrativa: ou as ONGs e a sociedade tratam o meio ambiente como algo separado da sobrevivência dos povos originários, ou caem no discurso de defender esses povos apenas porque eles cuidam da natureza. “Sim, somos os guardiões da floresta, mas também somos sujeitos de direito”, reivindica Sonia.

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Para Hanna Limulja, esse “discurso conservacionista” revela uma perspectiva romântica e colonizadora sobre o que é a natureza. “Vemos esse meio ambiente como algo inerte, sem enxergar as pessoas que habitam nele e suas individualidades”, diz. É justamente esse caráter de indivíduo que é negado a esses povos, como conta Célia, uma mulher indígena que trilha uma vida acadêmica: “Se estamos em nossos territórios, nos atacam e dizem que não queremos nos integrar à sociedade. Quando vamos para a universidade, questionam se estamos deixando de ser indígenas, se queremos abandonar nossa cultura.”

As três mulheres ouvidas por CLAUDIA consideram que falta empatia do mundo não-indígena em função das formas radicalmente opostas de encarar o mundo. Enquanto os povos originários reconhecem outras formas de vida e entendem que todos importam (humanos, plantas e animais igualmente), o restante da sociedade vive uma concepção individualista da própria existência e importância. “Vivemos num meio no qual uma aliança de ouro é o maior símbolo de amor, mas ninguém sabe de onde veio esse minério. Ele pode muito bem vir de uma reserva Yanomami”, exemplifica Hanna. 

Não é demais lembrar que se não protegermos essas vidas humanas, não haverá preservação, de nenhum tipo. “Ainda não caiu a ficha de que nós só estamos aqui porque eles literalmente estão mantendo as florestas de pé”, exalta Hanna. E já passou da hora de todos nós ajudarmos a segurar o céu.

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