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Do outro lado do mundo: jovens ucranianas narram a rotina da guerra

Jovens ucranianas contam o cotidiano da guerra enquanto descendentes brasileiras lutam para manter viva a cultura de seu povo e acolher os que vem para cá

Por Joana Oliveira
Atualizado em 8 abr 2022, 19h48 - Publicado em 8 abr 2022, 08h27
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Yulia Novytska, jovem ucraniana de 18 anos, retrata a paisagem do campo no sul do país onde tenta se proteger da guerra.  (|Foto: Yulia Novytskac/CLAUDIA)
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Poema

Escrevo o que não germinará nesta terra.
A terra que pertence ao meu povo e a mim,
onde soa minha língua, onde vibram meus pensamentos.
Volto com eles à terra que amo e,
sempre que penso na estepe, sou atingida pelo medo,
como o vento da primavera que ressoa
com mísseis amaldiçoados que caem ao chão.
Morte, medo e ódio.
Quando há guerra, não há vento calmo no horizonte,
não há narcisos ao redor da escola.
Em breve, as escolas podem nem mais existir.
Busco força para pensar uma nova realidade,
mas a mente alcança o que era antes, o que já não é.
As imagens fluem como areia e tudo volta
para a guerra.
Sobre o que estou escrevendo?
Aqui, o mundo está quieto e a terra é doce.
Poderei viver em paz?

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“As ruas estão devastadas, as áreas residenciais foram bombardeadas”, descreve Yulia sua cidade natal. (|Foto: Yulia Novytskac/CLAUDIA)

Nas entrelinhas líricas das palavras de Yulia Novytska, ucraniana de 18 anos, transparecem a raiva e o horror de quem viu ruir o mundo que conhecia. Na primeira semana de março, a jovem universitária teve que fugir de Kharkiv rumo ao Sul do país, depois que sua cidade natal ficou quase destruída por ataques russos. “As ruas estão devastadas, as áreas residenciais foram bombardeadas. As imagens de lá se parecem com as cidades arruinadas da Síria. É impossível caminhar lá e não chorar com o que se vê”, conta ela a CLAUDIA.

Desde que Vladimir Putin ordenou o ataque da Rússia à Ucrânia, no dia 24 de fevereiro, mais de 1100 civis foram mortos, de acordo com a ONU. Durante os primeiros bombardeios, Yulia passou alguns dias num abrigo anti-bombas. Depois, mudou-se para a casa de uns amigos, onde todos escondiam-se no grande porão quando as bombas caíam. “Ficou insustentável, todas as noites eram seguidas de explosões nos arredores”, lembra ela, que conseguiu fugir da cidade e refugiar-se em uma zona rural nos arredores de Kherson.

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Mais de 1100 civis foram mortos na Ucrânia, de acordo com a ONU. (|Foto: Yulia Novytskac/CLAUDIA)
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“Aqui, apesar de as pessoas ainda ficarem em suas casas quase todo o tempo, ainda é possível circular livremente nas ruas. Em Kharkiv, era muito alto o risco de ser apanhada em meio aos ataques”, relata a garota.

Quando ela fugiu da cidade, os trens já não funcionavam mais, não havia táxis, e encontrar um carro era uma missão quase impossível. Yulia, então, foi a pé, primeiro pelos túneis do metrô e, depois, pelos trilhos ferroviários abandonados. “No subsolo das estações de metrô há muita gente escondida para se proteger, famílias inteiras, principalmente mulheres e crianças.” Para Yulia, a guerra na Ucrânia, como todas as outras, afeta especialmente as mulheres, as principais responsáveis pela segurança dos pequenos.

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Paisagem alagada no sul da Ucrânia. (|Foto: Yulia Novytskac/CLAUDIA)

“Muitas delas estão dando a luz em condições extremas, já que os hospitais foram bombardeados. Além disso, trata-se de um grupo vulnerável que, em meio ao conflito, fica exposto ao estupro e ao tráfico de pessoas, quando ucranianas são capturadas nas fronteiras”, lamenta. O governo local acusou soldados russos do estupro de onze mulheres durante a invasão a Kharkiv.

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Apenas cinco delas sobreviveram. Mesmo com os riscos, Yulia ressalta a coragem das mulheres de seu país ao lembrar que o exército ucraniano tem 15% de mulheres e todas estão em combate. A destruição testemunhada pela universitária foi similar àquela registrada pela fotógrafa Valeria Shashenok, de 20 anos, na cidade de Chernihiv, a nordeste de Kiev, onde passou semanas vivendo num bunker com a família e começou a publicar vídeos no TikTok sobre sua rotina.

Quando saía para comprar mantimentos, exibia os destroços do local após os ataques, como as ruínas de um cinema que havia sobrevivido à Segunda Guerra Mundial. Chamada pela imprensa internacional de “Anne Frank da Ucrânia”, Valeria conseguiu mais de 30 milhões de visualizações do seu conteúdo, nos quais mantém toques de humor que caracterizam a plataforma mais usada pela Geração Z. “Uma refugiada usando Louis Vuitton”, diz ela enquanto faz carão com óculos escuros da marca francesa no trem que a levou até a Polônia no dia 15 de março.

“O TikTok é uma poderosa ferramenta de comunicação, principalmente na era das fake news. Vi nas redes que muitos jovens russos não acreditavam que seu país estava atacando o meu e tornei minha missão mostrar que a guerra é, sim, real”, diz ela, que admite usar a ironia como refúgio. “Estou atravessando um trauma, perdi minha cidade, minha vida mudou completamente, então sinto que esse sarcasmo é um pouco do que me resta”, acrescenta Valeria dias depois, já morando com uma família de acolhida na Itália.

Ela chegou ali após uma jornada de outros deslocamentos frustrados por falta de documentos. Seu passaporte ficou na casa abandonada em Chernihiv, que ela já não sabe se continua de pé.

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Estou atravessando um trauma, perdi minha cidade, minha vida mudou completamente.

Valéria Shashenok, Fotógrafa

Apesar de já estar segura em outro país, onde continua exibindo sua rotina nas redes, Valeria tem a Ucrânia em mente, como não poderia deixar de ser, a todos os momentos. Primeiramente, porque seus pais continuam vivendo em um bunker lá e, depois, porque quer reunir recursos e doações para ajudar a reconstruir pelo menos parte da vida de seus conterrâneos.

Já Yulia, por outro lado, ainda não pensa em sair da Ucrânia. “Fugirei do país caso a situação se agrave ainda mais e os russos venham para a região onde estou. Mas ainda espero que o Ocidente faça tudo ao seu alcance para boicotar a Rússia em todos os sentidos, principalmente econômicos, que proteste e mostre unidade contra esse agressor”, pede.

Do lado de cá

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Yulia busca na escrita e na fotografia um refúgio emocional da guerra. (Foto: Yulia Novytskac/CLAUDIA)
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A mais de 11000 quilômetros de distância, as notícias da invasão russa na Ucrânia angustiaram Solange Melnyk Oresten como se os ataques fossem em sua casa. Seus pais imigraram para o Brasil em 1930 para fugir da fome no Leste Europeu e se estabeleceram no Paraná, onde vive a maior comunidade de ucranianos no país (cerca de 500 000 descendentes).

“Estamos vivendo em meio à tristeza e angústia. Muitos temos familiares e amigos lá, receio que alguns deles estejam na linha de frente da guerra. Está cada vez mais difícil receber notícias diretas dessas pessoas, mas já soubemos das mortes de entes queridos”, conta ela, que é diretora do Folclore Barvínok da Sociedade Ucraniana do Brasil.

Com tristeza, Solange lembra da viagem que fez com seu grupo, em 2019, para conhecer o país de origem e comemorar os 90 anos do Barvínok. “Vejo as fotos que tiramos em Lviv e Lutsk e percebo que hoje são cidades destruídas…” Ela ressalta que, mesmo antes de tornar-se um país livre da antiga União Soviética, o povo ucraniano sempre preservou seu idioma, suas tradições populares e sua cultura.

“Talvez Putin tenha achado que seria muito fácil, mas, historicamente, o povo ucraniano luta pela sua terra e manutenção de sua cultura. As pessoas estão lutando pelo lugar onde vivem, por isso temos tantas notícias de famílias que se recusam a sair. Sabemos que essa é uma situação muito violenta e triste, mas temos esperança”, comenta Larissa Malhovano Sánchez, descendente de ucranianos no Paraná. Seus bisavós migraram entre as duas Guerras Mundiais e sua avó, que chegou ainda criança, ensinou aos filhos e netos o idioma, a culinária, a dança e o artesanato do país de origem.

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“É muito triste que um país que conquistou a independência [da Rússia] há tão pouco tempo [em 1991], esteja passando por isso novamente”, lamenta Larissa, que fala uma vez por semana com os primos localizados perto da Polônia. “Estão bem, mas preparados para o que possa acontecer.” Mãe de uma criança de quatro meses, ela tinha planos de visitar a Ucrânia neste ano. “Queria apresentá-la à família de lá. Espero poder fazer isso com o país livre novamente.”

Larissa e Solange fazem parte de um grupo de mulheres que criou a iniciativa Humanitas, para recolher doações e se preparar para a possível vinda de mais imigrantes. O principal objetivo é identificar famílias de acolhida e ajudar os que cheguem. Esse espírito de solidariedade, dizem, é um dos traços de seu povo. “Independentemente de como termine esta guerra, a Ucrânia sempre vai existir, ainda que seja apenas em nossos corações”, garante Solange.

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Campo florido visto da janela de onde Yulia se refugia, no sul da Ucrânia. (|Foto: Yulia Novytskac/CLAUDIA)

 

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