Nise, a antítese do Brasil insensível
Gloria Pires não conhecia a nossa maior psiquiatra e se impressionou ao ler a biografia para fazer Nise – O Coração da Loucura. Se for ao cinema, o Brasil também vai se apaixonar por ela
A primeira cena de Nise – O Coração da Loucura, resume bem a personagem. A médica alagoana bate no portão de ferro. Não atendem. Passa à toques mais forte. Nada. Então, esmurra, incansavelmente, até que a deixam entrar. É Nise da Silveira (papel de Gloria Pires) chegando para revolucionar o Hospício Pedro II, no bairro carioca de Engenho de Dentro. Voltava de um afastamento compulsório, que se seguiu à prisão de 18 meses, denunciada como comunista que se opunha à Ditadura Vargas. Dividiu as grades com Graciliano Ramos, que a descreveu em Memórias do Cárcere assim: “Lamentei ver a minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus queridos loucos. Sabia-se culta e boa. Rachel de Queiroz me afirmara a grandeza moral daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a escusar-se a tomar espaço”.
Pode ter sido uma mulher retraída no sentido da vaidade e do exibicionismo, mas – para ficar numa palavra muito em voga na orgia do momento – RECATADA Nise não foi. Pelo contrário, encarnou a peste. Quando esquizofrênicos e outros psicóticos eram tratadas com eletrochoque, isolamento, castigo, camisa de força ou acabavam na lobotomia, ela inventou um setor de terapia ocupacional pautado na arte e no afeto. Um diálogo do filme demonstra isso. “Meu instrumento é o pincel. O seu, o picador de gelo”, diz Nise para demolir seu colega, um psiquiatra que adotava a truculência, a cirurgia no cérebro e descarga elétrica para domar os pacientes. Já ela analisava as mandalas, os desenhos, as esculturas produzidos por seus clientes, que eram também estimulados a interagir com gatos e cães. Uma metodologia ridicularizada por todo o corpo clínico e a direção do manicômio.
Pouco afeita ao discurso, contundente na prática, Nise viveu o que se chama hoje feminismo intersecional. Para ela, tudo junto e misturado era melhor. Quis um país democrático e distante do autoritarismo, defendeu a liberdade da mulher (foi a única estudante de medicina em uma turma de 157 homens), se preocupou com os destratados pelo serviço público de saúde e difundiu a ideia de que o homem não pode ser visto sem a sua loucura. Nise dizia que um insano tem direito de amar, trabalhar, ir, vir, ser cuidado (para além dos medicamentos) a partir da expressão do seu inconsciente. Anteviu o que o filósofo francês Foucault só escreveu nos anos 1970: as relações de poder tomaram a loucura como objeto, a transformaram em categoria social, depois em doença. E o aparato manicomial servia (ainda serve) para reprimir e normalizar.
O filme comovente de Roberto Berliner não fala diretamente da política e do feminismo, mas as entrelinhas dão conta de retratar os dois. Com a mão firme de documentarista, Roberto fez uma ficção fiel à psiquiatra. Ele a conheceu nos anos 1980, no Circo Voador, no Rio de Janeiro, onde Nise reunia amigas, em um chá, para falar de Carl Jung (psiquiatra suíço com quem estudou e trocou cartas), de gatos, da vida, de desigualdade de gênero. Articulava gênero com loucura porque ambos são moldados sob padrões históricos e culturais, submetidos à mesma lógica da normalidade. Mulher e louco são postos de lado, sem voz, sem vez, sem crédito. E são também os histéricos e coléricos.
Roberto filmou no hospício onde ela trabalhou. Às vezes era interrompido por auxiliares da psiquiatra que vinham contar detalhes e lembranças dos internos que viraram personagens do filme. Aí, o roteiro era alterado. A aura de Nise ainda se mantém nas enfermarias e pátios, no Museu de Imagens do Inconsciente – que guarda milhares de obras dos clientes – e isso se imprimiu no filme.
A alagoana morreu aos 94 anos, em 1999, e suas ideias inspiram o tratamento psiquiátrico atual. Mas não em todo canto do país, onde – pasmem! – ainda tem eletrochoque e desqualificação do doente mental. Só há pouco mais de 30 anos começou uma luta antimanicomial e uma reforma psiquiátrica para definir políticas que garantam os direitos dos usuários dos serviços de saúde mental e de combate a álcool e drogas. Muito batalha ainda está aí para vencermos.
Por isso, o ator Fabrício Boliveira, que interpreta o paciente Fernando Diniz, disse que Nise “é uma heroína nacional e popular, que a história não mostrou pra gente”. No ambiente dela, Fabrício aprendeu que “ser louco é não ter preconceito, é estar aberto ao outro, não seguir o que está proposto para você”.
A atriz Roberta Rodrigues faz a enfermeira Ivone, primeira a seguir Nise. O filme não conta, mas essa personagem é a sambista Dona Ivone Lara, que se dividia entre o hospital e a ala dos compositores da Escola de Samba Império Serrano. Roberta aprendeu nas filmagens a manter-se louca: “Não tem porquê ser normal. A vida ficaria engessada”
Gloria Pires, que não conhecia a importância de Nise até fazer o filme, contou que guardará a imagem da psiquiatra esmurrando as portas e também esta declaração dela: “Eu sou uma servidora pública. Estou a serviço do povo brasileiro. Preciso ajudar esse povo com o melhor que eu tenho dentro de mim”. Já o diretor repetiu outro dito da doutora Nise, que é sensacional:
“Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata.”
Vou deixar aqui algumas outras frases dela para serem lidas quando a vida ficar chata demais:
– “Não sou muito do passado. Sou do futuro. Quem olha demais para trás, fica.”
– “Um diálogo é estimulante. A solidão também.”
– “Estou cada vez menos doutora, cada vez mais Nise.”
– “Não me atrevo a definir a loucura.”
– “A palavra que mais gosto é liberdade. Gosto do som dessa palavra.”
– “O que melhora o atendimento é o contato afetivo de uma pessoa com a outra. O que cura é a alegria, o que cura é a falta de preconceito.”