“Mãe, precisamos de você”
Nossa colunista Mônica Martelli relembra: "Ela se empenhava em deixar claro que ser era mais importante que ter"
Ela tinha apenas 37 anos quando se tornou a primeira mulher eleita vereadora na região da nossa cidade, Macaé, no interior do Rio. Era a única na Câmara Municipal, e, pelo jeito, achavam que nunca haveria nenhuma, já que ali não existia banheiro feminino. Ela precisava atravessar a rua para fazer xixi no hotel que havia em frente. Indignada, começou a participar das sessões da Câmara com um pinico sobre a mesa como protesto, para reivindicar um toalete para mulheres. Ele foi construído, mas pouco usado – raras mulheres passaram por lá. Hoje não tem nenhuma. Feminista da primeira geração, teve que endurecer para ser ouvida. Divorciada, precisou ser muito macho para enfrentar a política numa cidade do interior. Sempre com seus brincos de argola e colares comprados de algum artesão local.
“Uma das coisas mais importantes é a independência financeira. Nunca dependa de homem. O que move a nossa vida é o trabalho”, ela dizia. Eu ouvia isso como um mantra. Fui criada praticamente para não casar. Para ela, ficar em casa só cuidando de criança era a derrota. (Hoje não é mais tão radical, mas graças às que pensavam assim estamos aqui hoje trabalhando, reivindicando, nos apaixonando, casando, amamentando, passando batom, fazendo cabelo, depilando e sendo presidente de empresas.)
Foi só há pouco tempo que ela me contou que minha avó viajou para Paris sozinha em plenos anos 1960! Para uma moça do interior, era uma atitude revolucionária naquela época. Reclamei que isso nunca tinha sido enaltecido lá em casa e nem pude tirar onda na cidade de que era neta de uma mulher muito moderna. “Foi, sim, só que voltou de navio vomitando de lá até aqui.” Minha mãe fazia questão de tirar o glamour das situações. Acho que isso me salvou.
Ela também se preocupava em passar para os três filhos os valores de uma vida simples. Uma vez cheguei em casa e falei: “Vou tomar uma ducha!” E ela: “Ducha? E você lá tem ducha? Vai tomar é um banho de chuveiro elétrico. Dê graças a Deus se cair água!” Ela se empenhava em deixar claro que ser era mais importante que ter e quanto eu e meus irmãos éramos privilegiados diante de tamanha desigualdade social no país.
Minha irmã matriculou meus sobrinhos em um colégio onde os funcionários trabalham de roupa preta, avental de renda branco e meia-calça branca (para as mulheres): “Você vai criar os seus filhos numa escola onde os funcionários andam fantasiados de mordomo inglês, minha filha? Que mundo você quer mostrar pra eles?” Eu passei um ano na dúvida sobre qual escola escolheria para minha filha, Julia, de 6 anos: construtivista, tradicional ou bilíngue? Fiquei com a última. Outro dia, ao buscá-la, me deparei com babás vestidas de branco saindo de carros blindados com motorista. Pensei: “Mãe, precisamos de você!”
O que mais me toca até hoje é que ela sempre nos incentivou a seguir os nossos desejos e sonhos. Doze anos atrás, eu estava desanimada, sem trabalho. Ela ficou um tempo me observando e disse: “Querida, até quando você vai esperar que alguém tenha olhos pra você? Vá pra rua, suba num caixote e mostre o seu texto pro mundo”. Foi o que fiz. Escrevi uma peça de teatro e o meu caixote foi o palco. Minha mãe foi a ponte que me possibilitou fazer a travessia para chegar aonde eu cheguei.