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Neo-rural: a nova vida no campo

O sonho de trocar a cidade por uma rotina interiorana parece impossível, mas não é. Quem fez isso compartilha suas experiências

Por Joana Oliveira
13 jan 2023, 07h08

Na zona rural de Ibicoara, na Chapada Diamantina (BA), ergue-se uma ruazinha de casas coloridas, cobertas com telhas avermelhadas, que crescem do chão igualmente vermelho. É a Terra Afefé, o sonho feito realidade da artista visual Rose Afefé, 35. A microcidade foi uma forma dela retomar o contato não apenas com a natureza, mas com a ancestralidade que dela emana. “Sou de um lugar que só virou cidade seis meses depois do meu nascimento. Cresci numa casa de adobe. Quando ia estudar no município vizinho, diziam que eu vinha da roça”, conta.

Aos 23 anos, Rose saiu do seu interior, Varzedo (BA), rumo a São Paulo. “Fui ser artista visual e virei publicitária, mas não me sentia acolhida nesse lugar de ‘sucesso’, ‘êxito’. No processo, comecei a dar valor às memórias da minha infância, me reconectei com o valor dos saberes do interior.” Ela chegou a ir para o Rio de Janeiro fazer um curso de bioarquitetura, e gostou. Queria construir uma casinha no campo. Porém, se perguntou por que tinha que aprender de um homem branco, no Sudeste, um conhecimento que sempre esteve entre os seus.

Era 2016, e o sonho-desejo da Terra Afefé começava a nascer numa folha de papel onde Rose esboçou casinhas muito parecidas com aquelas que desenhava quando criança. “Tinha R$ 2 mil na conta, mas minha mãe de santo disse que eu conseguiria comprar um terreno. E consegui. Comprei um que valia R$ 140 mil e paguei em um ano” , ri.

Hoje, sua microcidade, que nasceu, de fato, em 2018, é sede de residências artísticas e funciona graças ao trabalho da comunidade local, com quem Rose está completamente integrada. “Não quero só pagar alguém para fazer algo para mim, quero aprender com essa pessoa. Essa migração é um bom movimento, mas é preciso chegar com respeito, entender quais materiais se pode usar naquela terra, como é a forma de vida ali. Não é só sobre fazer um lugar bonito, mas resgatar técnicas tradicionais que são potentes e foram perdidas porque eram usadas para fazer ‘casa de pobre’.”

O resgate desses saberes e dessa cultura também é um dos propósitos de Bruno Brito, artista visual que criou, em 2018, com o designer gráfico Luis Matuto, o Arado, estúdio criativo que também é marca e centro de pesquisa sobre o imaginário rural brasileiro. A sede é em Queluz, cidade de 13 mil habitantes, na divisa entre São Paulo e Rio de Janeiro. “Fiquei me perguntando quais são as imagens que pairam em nossas cabeças enquanto brasileiros. Elas estão ali, mas fomos nos distanciando delas, nos urbanizando e aderindo a uma estética genérica. Queremos resgatar o modo de produzir imagens desse Brasil antigo e, ao mesmo tempo, tão atual”, relata Bruno.

Bruno Brito posa com o sócio, Luis Matuto, em frente à fachada do estúdio Arado, em Queluz (SP).
Bruno Brito posa com o sócio, Luis Matuto, em frente à fachada do estúdio Arado, em Queluz (SP). (Reprodução/Divulgação)

Durante os dois primeiros anos da pandemia de Covid-19, 30% dos brasileiros se mudaram (de acordo com uma pesquisa feita pela corretora Loft), muitos deles para o campo. Rose e Bruno acreditam que a crise sanitária global trouxe a urgência de acessar um modo de vida mais gentil, se comparado à vivência cara e apressada das grandes cidades.

“Acho que foi também uma busca de um reencontro interior, de uma maior conexão com a natureza e outras manifestações culturais e formas de lazer”, diz Bruno. Ele, que cresceu no Vale do Parnaíba, faz do trabalho no Arado uma espécie de retomada do orgulho caipira. Uma palavra com a qual, aliás, os centros urbanos sempre tiveram uma relação perversa, mas que vem do tupi-guarani e significa “morador do mato”. Bruno conta que os serviços prestados pelo estúdio, os produtos desenvolvidos e a pesquisa, que é vinculada à Unesp, são processos intuitivos, conectados ao modo de vida que se poderia chamar de neo rural. “Embora tenhamos nos tornado um negócio, estamos sempre viajando, visitando comunidades tradicionais, conhecendo realidades caipiras variadas. Há uma infinidade de coisas para aprender com pescadores, agricultores e outros produtores rurais”, diz.

Rose Afefé alerta, no entanto, que é preciso ter cuidado para que esse aprendizado com a natureza não seja a partir de um mero olhar holístico, mas prático. “A ação do homem levou o planeta a um ponto de não retorno, mas é preciso pensar no que ainda podemos fazer para viver bem aqui e lembrar que toda cidade já foi um campo, um lugar mais vivo, antes de ser asfaltado”, diz ela. A artista também sente certa preguiça de uma idealização romântica sobre a vida afastada dos grandes centros urbanos e de quem acha que tudo é necessariamente fácil ou maravilhoso. “É importante não pensar que, porque estou no campo, sou uma pessoa melhor que os outros. Durante o confinamento, por exemplo, eu não tinha ninguém com quem conversar.” Hoje, Rose vive entre a Terra Afefé e o Rio de Janeiro, onde realiza parte do seu trabalho artístico.

Ana Siepierski trocou o escritório de advocacia pelo cultivo de cogumelos.
Ana Siepierski trocou o escritório de advocacia pelo cultivo de cogumelos. (Arquivo pessoal/Reprodução)

O que a terra dá

A chef Paola Carosella diz que a “comida do futuro é a comida do passado”, referindo-se à necessidade de comer mais orgânicos, alimentos vindos da terra, de pequenos produtores. Uma proposta de vida mais saudável e até considerada sofisticada que os caipiras praticam desde sempre. Foi em busca disso que a advogada pernambucana Ana Siepierski, 29, trocou o salto alto, o computador e o ar condicionado para cultivar cogumelos na propriedade familiar em Jacutinga, entre Minas Gerais e São Paulo. Ela chegou a trabalhar na capital paulista, mas entendeu que não era a vida que queria. “O sítio era uma espécie de casa de férias e, com a pandemia, eu e minha família fomos para lá. Percebi que só ali me sentia em casa.”

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A chef Rafita Soldan.
A chef Rafita Soldan. (Arquivo pessoal/Reprodução)

Ana tinha passado por uma transição alimentar, deixando de comer carne, e tentava cultivar cogumelos em casa, como alternativa barata e nutritiva. Descobriu, no entanto, que o processo era mais complexo do que pensava. No campo, viu a possibilidade de mudar de vida de vez e criou, então, a Santana Cogumelos. “Agora, tenho que usar galocha todo dia e pego carrapato toda semana, mas me encontrei nesse universo”, gargalha. São só ela e o caseiro que cuidam da produção —e cada bandejinha de shitake envolve pelo menos 12 meses de cultivo. Para garantir a solvência do negócio, Ana também aposta no ecoturismo: um rio corta a propriedade (onde sua família segue com o plantio do café) e ela recebe grupos para passeios diários pelo terreno composto de metade de mata preservada e 10% de mata ciliar.

Quem fez uma escolha similar foi a chef Rafita Soldan, 34. Natural de Santos (SP), onde viveu até os 18 anos, ela chegou a morar na Alemanha, mas ficou mais tempo na capital paulista — ali, estagiou num restaurante renomado e, depois, assumiu a cozinha de outro, igualmente famoso. “Nunca tinha tido vontade de morar lá, justamente por ser uma cidade grande, com uma energia caótica”, conta. Ela chegou a abrir o próprio negócio, o duLocal, delivery de comida orgânica feita por cozinheiras de Paraisópolis, mas a rotina não mudou. “Vivia na dinâmica de trabalho, trânsito, estresse… Nem conseguia aproveitar o maior atrativo da cidade, que é a oferta cultural.” Até que, em fevereiro de 2022, Rafita e o companheiro, que também é chef, se mudaram para a Fazenda Malabar, no interior paulista, onde tocam um restaurante homônimo. O negócio fica numa estrada de terra que é rota de cicloturismo, o que garante a clientela, principalmente aos finais de semana. “A cozinha consome muito do nosso corpo e da nossa mente, mas aqui não é assim. Fazemos o serviço de quinta a domingo, algo impossível num centro urbano e, por mais que isso ainda envolva várias horas de pé, tenho um janelão com uma vista linda para onde olho enquanto cozinho”, diz ela, que ainda se surpreende com a beleza do lugar.

Quem troca a vida urbana pelo pé no chão e a rotina menos acelerada não se liberta do imperativo do trabalho, mas encontra compensações. “Claro que, como em todo ofício, faço coisas que não gosto e, além disso, não tenho uma rede de apoio afetiva aqui”, reconhece Ana. “Mas, quando vou pela vizinhança, todo mundo se olha no olho, se cumprimenta, você tem nome e as pessoas conhecem ele. É praticamente um universo paralelo, que a gente acha impossível de conquistar, mas não é”, garante, com convicção. Assim fica difícil não querer provar o sonho neo rural.

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