Gabriela Prioli: “Anulei sonhos porque ensinam que mulher não pode ter ambição”
Gabriela Prioli ganhou visibilidade e fama falando sobre política, mas ela expande cada vez mais seus horizontes ao se mostrar múltipla
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uma terça-feira qualquer, Gabriela Prioli, 35 anos, encontraria um ex-presidente e um governador para gravar vídeos para seu canal no YouTube. À tarde, resolveria detalhes para a estreia de seu novo programa na CNN Brasil, A Prioli.
Depois, veria detalhes do material do Clube do Livro que lançou em 2020 e que compartilha este ano com o historiador Leandro Karnal. Por fim, jantaria com um ministro do STF. Não é uma agenda fácil nem comum, mas é a vida que a advogada criminalista, apresentadora e autora do recém-lançado Política É Para Todos (Companhia das Letras) leva – e com a qual sonhou por muito tempo.
Gabriela cresceu na Vila Mangalot, bairro da Zona Norte de São Paulo onde famílias de classe média e classe média baixa convivem. Mudou-se para um apartamento de pouco mais de 50 metros quadrados com sua mãe, Marta, e o irmão, Rafael, depois da morte do pai num acidente de carro, quando ela tinha apenas 6 anos.
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Seu sonho, desde a infância, é ser ouvida por muitas pessoas – e essa plateia só cresce desde que ela deixou o escritório de advocacia em que era sócia para seguir carreira como comunicadora. Apesar da trajetória explosiva – há pouco mais de um ano, ela estreava na CNN Brasil como comentarista política – Gabriela é centrada. Aliás, mais do que isso, ela é genuína – uma lufada de ar fresco na era das influenciadoras digitais. Parafraseando Paulo Leminski, isso de ser exatamente o que ela é ainda vai levá-la além.
“Estou submetida à avaliação constante de milhões de pessoas. Preciso ser racional e não enxergar o feedback de maneira irrealista. Será que estou dando mais atenção a um comentário negativo do que aos 100 positivos?”
Nessa virada surpreendente – e com muito brilho, paetê e ótimo gosto para moda –, a paulista não se contenta com pouco e detesta que predeterminem seu espaço de existência. É que Gabriela é grande demais para isso.
Em partes, sua originalidade é contaminada pela vivência enérgica e, ao mesmo tempo, pacífica da mãe – uma feminista à frente do seu tempo, que ofereceu conselhos valiosos. Também tem o apoio incondicional do marido, o DJ e empresário Thiago Mansur, da dupla Jetlag, e a companhia do fofo cachorro do par, Bolt.
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Exige muita bravura continuar fiel a si mesma sob os holofotes – sem abrir mão dos valores, sonhos e amores, sem se dobrar diante da crueldade do tribunal da internet ou da polarização política que está cada dia mais acirrada.
É preciso ter muita certeza de si. E Gabriela tem. Talvez, sem desconsiderar suas aulas sobre política, liberdade, feminismo e igualdade, seja essa a grande lição que ela pode trazer às mulheres nas próximas páginas.
Seu objetivo de carreira sempre foi chegar onde você está hoje?
Pensando nos meus desejos quando criança, sim. Minha mãe sempre foi uma pessoa que praticou a visualização. Quando ela me perguntava: ‘O que faria você feliz, qual seu sonho?’, eu respondia: ‘Falar com muita gente’. Eu me via no centro das atenções, com todos me ouvindo. Mas, de alguma forma, o mundo se impôs sobre mim e eu passei a achar que o sucesso público não era algo que eu poderia almejar. Seria vaidade. A gente aprende que mulher não pode ter ambição.
Fui anulando esse sonho e escondi isso dentro de mim. Eu me realizei de outras formas na advocacia. Fiz mestrado, fui dar aulas na universidade onde me formei, me tornei sócia de um grande escritório. Mas ali dentro ainda existia o sonho de ocupar o palco. Quando olho para minha carreira hoje, fico satisfeita, porque ocupo um lugar que não existia antes, eu o construí para mim. Sinto que legitimei uma existência que foi apagada por tanto tempo.
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Isso vai soar familiar para a maioria das mulheres, a gente se anula muitas vezes por imposições da sociedade…
Temos que nos justificar sempre e também justificar o nosso sucesso. Pesquisas mostram que as características atribuídas ao feminino são as relacionais. A mulher faz pelo outro e o homem, para si. Não acho que não temos que pensar nas outras pessoas, mas precisamos poder nos satisfazer pessoalmente, desejar sucesso, dinheiro. Para que eu pudesse fazer o que fiz, foi essencial ter uma rede de apoio. Quando estava pensando em sair do escritório, demorei para tomar coragem.
Uma noite, sonhei com um louva-a-deus. Fui pesquisar o significado daquilo e falava que era sobre tomar uma decisão. Contei para minha mãe e ela, que já estava acompanhando todo meu processo, falou: ‘Vai logo! O que você está esperando, um móvel da sua casa começar a falar e dizer o que você tem que fazer?’. E meu marido foi meu principal incentivador. Eu tinha um dinheiro guardado, mas o Thiago segurou as pontas, principalmente emocionalmente.
Eu fiquei dois anos tentando me recolocar até assinar o contrato com a CNN. Foi muito tempo patinando. Imagina a insegurança que bateu. Nesse meio tempo, trabalhei com o Thiago, escrevi roteiro de clipe do Jetlag, música. Muita gente me questionou se eu tinha abandonado o que construí para viver em função dele. Mas era uma escolha minha.
As pessoas têm isso de querer impor para você a existência que elas desejam. Enquanto isso, o Thiago me ajudava a pensar em estratégias. Ele foi extremamente presente. Quando eu decolei, a carreira dele parou. Pensa na vida de um DJ na pandemia. E eu aconteci. Se estivesse em relacionamentos anteriores, não teria dado certo. A relação não teria sobrevivido à vaidade ferida de uma masculinidade frágil. Mas ele foi impecável. E isso fortalece a nossa parceria.
“Qual o problema da mulher querer aparecer? Por que eu não posso gostar de chamar a atenção? Para mim, ser mulher é poder escolher. Como eu vou querer opinar sobre a aparência de outra pessoa?”
Você teve uma ascensão muito rápida na sua carreira como comunicadora, nesse lugar de pessoa pública, e hoje fala com quase 4 milhões de pessoas na internet, fora o público da TV. É uma exposição imensa. Como isso reverbera em você?
Ainda não tenho uma noção exata, mas também não penso muito nisso em termos de número. Só procuro manter a mesma responsabilidade que sempre tive em tudo que fiz. Num primeiro momento, ver as expectativas que os outros tinham sobre mim me deixou um pouco desesperada, mas entendi que o meu discurso sobre ter liberdade, ser múltipla, satisfazer nossos próprios conceitos sobre a nossa vida incomoda, porque ele toca as pessoas num ponto muito pessoal.
Se eu cobro que o outro viva de acordo com aquilo que eu acho, automaticamente a minha lógica é de me submeter à expectativa alheia. Eu alimento e reproduzo o que me faz vítima. Mas eu tenho absoluta tranquilidade em impor meus limites, porque respeito os dos outros. Eu cheguei na internet mais velha, com 34 anos, já tinha tido chance de amadurecer e aceitar quem eu era e quem eu não era. Não daria para tentar agradar todo mundo.
Nesse momento de desespero, como lidou com a insegurança?
Eu estudava muito, horas, pesquisava para ter certeza do que estava falando. Ainda assim, podia errar. Mas erraria sabendo que fiz meu máximo. Não tenho a ilusão de que serei perfeita e acho que isso evita que eu me sinta tão vulnerável com as minhas inseguranças.
Quanto à imagem, comecei a notar algumas coisas que nunca tinha percebido, afinal, tem uma câmera na sua cara, tem o HD. Vi uma pinta alta no queixo, que meu nariz tem a ponta para baixo. A orelha, que é meio de abano, já me incomodava um pouco antes. Mas resolvi esperar e ver o que permaneceria dos incômodos, para não sair por aí numa piração de mudar tudo em mim.
Ainda que tenha sido uma decisão racional, não dá para dizer que minha relação com a aparência não seja contaminada pelas expectativas sociais. E não quero ser julgada pelas minhas decisões. Por exemplo, quero poder escolher operar a minha orelha ou colar um adesivo atrás dela para disfarçar, como fiz para as fotos de CLAUDIA, sem ter que ouvir críticas.
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Mas imagino que você deva receber cobranças sobre sua imagem. Lembro que logo que você começou na TV, tinha muito comentário machista questionando sua aparência, porque você era comentarista política. Falavam até dos seus brincos grandes.
Eu tenho as minhas estratégias para lidar com isso. Gosto de hackear o sistema. Quando comecei, não usava brincos enormes, mas entrei na dança e só depois me reposicionei. O brinco grande não muda minha capacidade cognitiva.
Não tenho que corresponder ao que esperam que eu seja. Eu me permito ser quem eu sou a despeito das expectativas dos outros. Ao me autorizar isso, estimulo que outros façam o mesmo. Quando eu era criança, minha mãe fez uma saia de tule para mim. Era uma fantasia, mas eu amei, queria usar com tudo, com tênis, camiseta.
As crianças do prédio faziam piada, riam de mim, falavam que eu queria aparecer. Mas qual o problema da mulher querer aparecer? Por que eu não posso gostar de chamar a atenção? Para mim, ser mulher é poder escolher. A minha mãe não pinta os cabelos, não faz as unhas e usa maquiagem raramente. É direito dela. Como eu vou querer opinar sobre a aparência de outra pessoa?
Sua posição é madura, racional e resultado de muita reflexão, mas é bastante diferente do que vemos na internet. Você consegue ter essa calma e clareza diante dos ataques que sofre?
Por mais que a gente diga que não dá para agradar o mundo, temos a tendência de querer ser aceita. Junto a isso, existe um fator evolutivo que nos faz propícios a dar mais atenção para o lado negativo. É o mecanismo de proteção: se eu tenho medo e fico ligado a um risco em potencial, eu não morro. Precisamos ter cuidado para não construirmos nossa existência a partir de um viés de negatividade.
Estou submetida à avaliação constante de milhões de pessoas. Preciso trazer para a racionalidade a minha análise e conseguir aprender a partir das críticas, mas não enxergar o feedback de maneira irrealista. Será que estou dando mais atenção ao comentário negativo do que aos 100 positivos?
Quando sou cancelada no Twitter, são os meus seguidores ou um público que não é meu e que usa aquele lugar para me atacar? É importante ter esse distanciamento para não entrar numa espiral do sentimento de rejeição e ficar tentando se adequar. Aí você perde o que fez as pessoas gostarem de você em primeiro lugar, que é ser quem você é.
Eu sou superemocional. Vivo encolhida no colo da minha mãe, choro muito, gosto de ficar agarrada no Thiago. Acredito que sentir é uma das forças mais poderosas do mundo. Mas ela pode levar você para inércia ou para a ação. Eu tive sentimentos violentos na minha vida. Atribuo a minha existência como ela é hoje a um dos maiores sofrimentos que tive, a perda do meu pai.
Percebi que ou criava algo a partir daquilo ou não ia aguentar. Passei a reinterpretar as situações, olhar por outro ângulo. Claro que, dependendo da crítica, se é um movimento orquestrado, eu tenho meus momentos de tristeza, de me fechar, chorar. Mas quando renasço, estou mais forte do que se eu não tivesse passado pela provação.
Beleza Angélica Moraes • Styling Ana Parisi • Concepção visual Lorena Baroni Bósio • Assistentes de fotografia Raphael Jacomini, Sthe Capelos • Produção de moda Tiago Guarnieri • Tratamento de imagem Marcela Dini • Agradecimentos à Galeria Kogan Amaro