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Pandemia faz crescer o número de crianças em abrigos

Com a crescente vulnerabilidade das famílias, aumenta o número de crianças em abrigos. A Justiça tenta acelerar processos de adoção

Por Gabriela Maraccini
Atualizado em 5 ago 2020, 21h11 - Publicado em 5 jun 2020, 14h00
 (Anna Cunha/CLAUDIA)
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Durante a pandemia, vem crescendo o número de crianças em abrigos em grande parte pela vulnerabilidade das famílias, reflexo da crise econômica, e pelo aumento da violência doméstica. Enquanto isso a Justiça tenta acelerar processos de adoção para oferecer a elas lares estruturados

 

Na Asa Norte, em Brasília, a menos de 10 quilômetros do Palácio do Planalto, um prédio branco e azul destaca-se das outras poucas construções ao redor. A placa na fachada desgastada anuncia a sede da Casa de Ismael, abrigo para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Fundada em 1964 como lar de crianças órfãs, a instituição é testemunha de uma triste consequência da pandemia do novo coronavírus. Desde o início da quarentena, em março, o local acolheu mais 20 novos moradores, sendo seis deles em uma única semana – algo que nunca se viu antes ali.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância, mais conhecido como Unicef, já havia publicado naquele mesmo mês um comunicado alertando para os perigos a que milhões de crianças estavam expostas durante a pandemia. Entre eles a probabilidade de aumento de casos de maus-tratos, violência de gênero, exploração e abuso sexual devido ao confinamento, medida essencial para conter a transmissão do vírus. Além disso, com o crescimento do desemprego e a crise econômica, que impactam milhões de lares, muitas famílias perderam sua única fonte de renda, tornando impossível o sustento dos pequenos. É importante lembrar que a pobreza não é fator determinante para a institucionalização de crianças, e sim a violação dos direitos delas. “Se não há auxílio do governo federal ou se ele não é eficiente – e não tem sido –, naturalmente há uma elevação do risco para as crianças, o que acarreta o aumento do número delas nos lares”, explica Iberê Dias, juiz da Vara da Infância e Juventude de Campinas (SP).

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O que ocorreu na Casa de Ismael foi consequência de uma combinação de vários dos fatores levantados pelo Unicef. “As causas dessa alta são a violência familiar e o abandono, e isso está relacionado com a questão econômica”, afirma Valdemar Martins da Silva, presidente da instituição. Para Karini Abritta, defensora pública que atua na Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal, o crescimento do número de crianças institucionalizadas na região também se deve ao acolhimento emergencial. Ele se dá quando a criança é deixada sozinha na residência e o Conselho Tutelar é acionado, encaminhando-a para uma das instituições, onde ela deve ficar por até 24 horas aguardando que algum responsável apareça e justifique o motivo do abandono. “Essa situação vem se repetindo muitas vezes na quarentena. Como os Conselhos Tutelares estão fechados, as famílias procuram a defensoria da Vara. Nesse trajeto, esgota-se o prazo de 24 horas estabelecido por lei e o abrigo não pode mais liberar a criança. Assim, uma instituição que tem apenas dez vagas, recebeu 20 pessoas, por exemplo”, explica. Resta à família, então, entrar com um processo para a recuperação da guarda da criança, provando que é capaz de prover o necessário para que ela tenha uma vida saudável e protegida.

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(Anna Cunha/CLAUDIA)

Levantamentos têm observado também uma mudança no perfil dessa situação de abandono, em que as crianças são encontradas sozinhas em casa, possivelmente provocada pelos novos comportamentos, que são desdobramentos da pandemia e do isolamento. Isso tem acontecido muitas vezes pela impossibilidade de a família poder contar com os avós – algo que antes era costumeiro. “Como os idosos não podem sair de casa durante a quarentena, por serem do grupo de risco, as crianças ficam mais suscetíveis a todo tipo de violência. Na rotina normal, os avós são elementos importantes na família, porque cuidam dos netos e têm esse olhar amoroso enquanto os pais vão trabalhar”, explica Euma Tourinho, juíza de Direito da Vara de Proteção à Infância e a Juventude de Porto Velho.

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“Se não há auxílio do governo federal ou se ele não é eficiente – e não tem sido –, há uma elevação do risco para as crianças, o que acarreta o aumento do número delas nos lares”

Iberê Dias, juiz

Já em Fortaleza, o desafio tem sido quanto à absorção dessas crianças pelo sistema. Segundo Alda Maria Holanda Leite, juíza de direito titular da 3ª Vara da Infância e Juventude da Comarca de Fortaleza, houve um aumento de 14% de adolescentes em lares em março e abril em comparação com janeiro e fevereiro. “Muitos não se adaptam ao acolhimento institucional e, às vezes, por vivência de rua ou por não seguirem as regras da casa, deixam o abrigo. Mas, quando surgem dificuldades provenientes da situação de exposição e vulnerabilidade, pedem para voltar e são aceitos”, afirma. Isso causa uma interrupção no desenvolvimento do jovem, que inclui não só casa e comida, mas também apoio psíquico. “É preciso afeto para uma criança crescer de forma saudável. Quando ela é institucionalizada muito cedo, a falta dele ocasiona problemas de aprendizagem. Além disso, ela pode se tornar mais agressiva e apresentar dificuldades de formar laços afetivos duráveis”, explica a psicóloga Tatiany Schiavinato, especialista em adoção. No período da pandemia, a preocupação é ainda maior. “Com a quarentena, uma criança que apresenta um déficit cognitivo ou motor e que necessita de tratamento não terá estrutura adequada para fazer atendimento online nem vai conseguir acompanhar uma aula à distância”, opina.

Outra preocupação é a aglomeração de crianças em abrigos, que pode aumentar os riscos de elas contraírem a Covid-19. Em São Paulo, a Lalec vive uma condição peculiar. Das oito crianças que moram no abrigo, quatro estavam hospitalizadas com outras doenças em março, portanto, mais expostas à contaminação pelo novo coronavírus nesses espaços. O lar recebeu dois bebês no início do isolamento, mas depois recusou a chegada de crianças para proteger as que já estavam lá e evitar a superlotação. Atenta a essa situação, a Justiça vem tentando acelerar processos de adoção para que crianças vulneráveis possam conviver em um ambiente familiar estruturado e encontrar mais estabilidade. Em abril, o Conselho Nacional de Justiça divulgou uma série de diretrizes para que os tribunais priorizem medidas que permitam às crianças e aos adolescentes deixarem os abrigos, desde que as famílias adotantes tenham o aval técnico e autorização judicial.

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Era o caso de Maria* e seu marido que, depois de passarem muitos anos pesquisando sobre adoção, tomaram coragem para entrar com o processo em outubro de 2019. “Como terminamos tudo bem perto da quarentena, imaginávamos que só fôssemos conhecer nosso filho depois da pandemia”, conta. Para surpresa deles, receberam a notícia de que seriam pais de três irmãos, de 10, 13 e 14 anos, em abril. “Não dá para mensurar o que sentimos, foi como se faltasse força nas pernas. Eles estavam ali, eles eram reais.”

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(Anna Cunha/CLAUDIA)

O analista de sistemas Henrique Vieira Winnikes e a tosadora de animais Cristiana Aparecida Vieira Winnikes, que moram em Ponta Grossa (PR), esperaram cinco anos até conseguir, durante a pandemia, segurar a filha no colo. Cristiana tem endometriose, o que a impediu de engravidar, mas o casal não abandonou o sonho de ter um filho e, em abril de 2015, entrou para a fila de adoção. “Nesse meio tempo, pensamos em desistir. Fomos perdendo as esperanças”, conta Henrique. No entanto, no dia 26 de março, chegou a vez deles. Com a guarda provisória, que pode durar meses, ele sente que o isolamento ajudou a estreitar os laços com a filha, de 9 meses. “Como fiquei em home office, pude estar direto com ela. Hoje ela nos reconhece, se vê algo estranho pede colo, está bem adaptada.”

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Apesar da tentativa da Justiça de acelerar os processos, ainda há muitas pessoas na fila de espera. A funcionária pública Adriana Cunha e o marido vinham tentando ter um filho desde 2015. Submeteram-se a sete tratamentos de fertilização, sem sucesso. “É muito desgastante emocional, física e financeiramente. Então resolvemos adotar”, conta. Em fevereiro de 2017 entraram no sistema nacional de adoção. Estão ainda no aguardo da chegada do filho (ou de mais de um, já que aceitaram acolher irmãos), mas, para conter a ansiedade, não montaram o quarto nem compraram roupas. “As datas que mais pegam são Natal, Ano-Novo e Dia das Mães. Este último foi muito doloroso para mim”, desabafa Adriana. “Mas tento levar da melhor forma, com leveza, pensando que vou poder dar uma condição de vida um pouco melhor para uma criança que já está no mundo e que vai me trazer muito aprendizado.”

 

*Nome trocado a pedido da entrevistada

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