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Morto pela polícia, o menino negro João não é exceção no Brasil, é regra

Nos últimos 20 anos, o assassinato de jovens negros cresceu 400% no Brasil. O genocídio precisa ser discutido. Entenda o que você pode fazer

Por Isabella D'Ercole Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 2 jun 2020, 13h37 - Publicado em 2 jun 2020, 12h13
 (Lorena Baroni Bósio/CLAUDIA)
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Essa matéria foi motivada, inicialmente, pelo assassinato de João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, dentro da casa de sua tia, em São Gonçalo, Rio de Janeiro. O menino foi vítima de um ataque policial após invasão à propriedade no dia 18 de maio. Ele tomou um tiro de fuzil nas costas – foram mais de 70 disparos em sua direção.

A história de João se soma a tantas outras. No ano passado, Letícia Paiva, editora de CLAUDIA, fez uma reportagem sobre as crianças vítimas da violência no Rio de Janeiro – não só a violência de criminosos, mas a praticada pela polícia. Kauê, Kauã, Kauan, Jenifer, Ágatha e Ketellen foram todos mortos em 2019, num intervalo de 10 meses. Notícias foram dadas, houve comoção, mas nada impediu que os assassinatos continuassem.

Com a morte de João Pedro, me lembrei do livro De Bala em Prosa – Vozes da Resistência ao Genocídio Negro (Elefante), lançado em fevereiro deste ano e com download gratuito no site da editora. A coletânea de textos surgiu após o assassinato do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador de materiais recicláveis Luciano Macedo. O Exército disparou 257 tiros contra o carro de Evaldo numa avenida do Rio. 

Nas poucas horas que passei conversando com os jornalistas Vanessa Oliveira e Gabriel Rocha Gaspar, organizadores do livro, na tarde do dia 20, mais um jovem foi assassinado. João Vitor Gomes da Rocha tinha 18 anos, morava na Cidade de Deus, também no Rio. Foi morto durante uma ação conjunta da Polícia Civil com a Polícia Militar. 

Os casos citados anteriormente se passaram no Rio de Janeiro, mas o genocídio da população negra não é exclusividade da cidade – que apenas tem mais visibilidade do que as outras na mídia. Segundo um estudo da Fundação Abrinq do ano passado, baseado em dados do Ministério da Saúde, o assassinato de jovens negros cresceu 429% em 20 anos. Para efeito de comparação: entre os jovens brancos, o aumento é de 102%. Também do ano passado, o Atlas da Violência, fruto de uma parceria do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e do Fórum de Segurança Pública, revelou que 75,5% das vítimas de homicídio no país eram pessoas negras. A ONU afirma ainda que 1 negro morre a cada 23 minutos no Brasil.

Apesar dos dados alarmantes, não vemos ações de grande impacto no âmbito político para alterar esse cenário. O genocídio negro é sistêmico. Fingimos não ver, agimos pouco e nos manifestamos apenas em casos pontuais que alcançam a mídia. Esse momento que passamos exige reavaliação por parte de todos e começa com a dura admissão que somos coniventes. O que acontece no Brasil e no mundo – assistimos agora os movimentos em ação nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd por um policial – é resultado do racismo que não combatemos nem sequer no nosso dia a dia. Não pensamos em igualdade entre pessoas negras e brancas nas nossas empresas, não apoiamos iniciativas que visam romper os caminhos do racismo sistêmico. Há que se fazer mais do que postar na internet palavras de apoio.

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A conversa com Vanessa e Gabriel é elucidativa, facilita compreender como chegamos até aqui e o que é necessário para alterar a rota. O livro que eles organizaram já teve mais de 15 mil downloads, notícia relevante em meio a tantos desafios, mostra que mais pessoas estão buscando entender a realidade.

A apresentação de De Bala em Prosa, escrita por você e pelo Gabriel, chama “Brancos, sangrem conosco”. As manifestações nos Estados Unidos têm repetido muito sobre a necessidade dos brancos se unirem à luta antirracista urgentemente. E vê-se pessoas questionando como podem fazer isso. Eu imagino que devem ser vários os caminhos.

VANESSA O que define se você é preto é a experiência, como você é tratado. O racismo é implacável e em algum momento você vai topar com ele. Nesse momento, você entende melhor de onde vem, as situações que impactam a sua vida. É essencial que o branco assuma seu lugar na luta antirracista. Isso começa na compreensão do seu lugar, da branquitude. As pessoas encontram maneiras de se eximir das responsabilidades delas, dizem que não é seu lugar de fala. Mas dentro de uma estrutura de racismo você tem alguém que sofre e alguém que oprime. O reconhecimento disso e a tentativa de falar do tema a partir do lugar branco e privilegiado é fundamental. Eu sempre faço um paralelo com a luta feminista europeia e os discursos de maio de 1968, que pregava a exclusão dos homens. Teve esse momento de ruptura, e ele é essencial, porque você precisa se afastar do seu opressor. Mas depois tem um momento em que se você precisa de aliados do outro lado para luta ter mais alcance. É fundamental entender o que você está discutindo para poder responder a argumentos, mesmo os mais absurdos. Os homens não vão dizer determinadas coisas na nossa frente, mas podem falar entre os iguais, e aí se algum deles responder usando um argumento que absorveu com o movimento, ele terá virado um aliado na luta.

O João Pedro foi morto dentro de casa em um momento em que é pedido para as pessoas ficarem em casa, em plena quarentena. É um sinal claro de que não há lugar seguro para a população negra e pobre.

VANESSA A gente não tem direito nem à casa. O que acontece nas favelas do país é que as pessoas morrem dentro de casa, nem ali elas estão protegidas. O Rio acaba sendo uma vitrine porque está mais exposto, porque a classe média fica muito próxima e escuta os tiros na periferia, mas não é exclusividade carioca o que acontece. Que engrenagem a gente perdeu que não conseguimos recuperar? O que é preciso para que o governador suspende operações? Há o discurso construído sobre a luta contra as drogas que só vitimiza mais essa população. Mas sabemos que a droga não é inteira consumida na favela. Só que a gente vai se acostumando com essas imagens da violência, é a capacidade do ser humano de se adaptar. Nossa sensibilidade vai sendo afetada, temos dificuldade de sentir empatia. A empatia não é moral. Você não é obrigado moralmente a olhar pra mim e pensar que precisa votar em pessoas que viabilizem a minha sobrevivência. O argumento de que “poderia ser seu filho” não funciona, porque, às vezes, essa possibilidade não é real. 

Somos um país com cotas nas universidades e já tivemos alguns poucos programas sociais que facilitavam o acesso ao estudo para a população negra. Também temos projetos sociais que impactam os mais pobres que são, em maioria, negros. Entretanto, não há grande impacto. O que pode ser feito para transformar esse cenário efetivamente?

VANESSA A primeira coisa que a gente tem que ter em mente é que a transformação não vai acontecer a curto prazo. São mais de 500 anos de genocídio indígena, negro, escravização, deterioração física, intelectual, psicológica gigantesca sobre essa população. São muitas gerações que exploraram essas pessoas, que fizeram fortuna em cima dos cadáveres e que têm plena consciência de que existe uma hierarquia entre raças. Esse processo de subjugação, de afastamento do povo negro das universidades e dos espaços decisórios teve um respiro de 2002 a 2016, com uma ruptura bruta após o golpe. Mas essa educação ainda foi muito pouco expressiva dentro da elite branca. As políticas afirmativas são incríveis e eu ser entrevistada hoje é graças a esse processo. Permite que a gente tenha um diálogo. Mas é uma situação facilmente deteriorável. Em dois anos de governo, um dos territórios mais negros de São Paulo, a Brasilândia, já mostra vulnerabilidade: tem altas taxas de morte em meio à pandemia. O auxílio emergencial foi pedido por 46 milhões de pessoas. A linha da extrema pobreza é tênue e qualquer decisão pode colocar muita gente pra baixo dela. A nossa programação tem que ser para curto, médio e longo prazo. E temos que saber que essas etapas vão existir, estar programado para elas é essencial. A desumanização foi feita à longo prazo, e você não corrige cinco séculos com cota. É preciso ter uma compreensão geral da existência do outro. É o aluno da escola de classe média alta perceber que não tem negros ali e buscar um motivo para isso. É o eleitor negro perceber que é importante votar no negro. O racismo tem uma engenharia tão precisa que o próprio preto não necessariamente vota no preto. Ele quer votar em alguém que vai dar algo melhor para ele e não enxerga isso em outro negro. Há exceções, claro. Um exemplo é a deputada estadual Erica Malunguinho, eleita em 2018 por São Paulo. Você vê a diferença que faz ter uma pessoa como ela num espaço de poder. Só que ela sozinha não consegue superar a burocracia legalista. Há muito tempo o movimento tenta pautar vozes negras, mostrar a questão da favela para quem não está em contato com o território. As instituições democráticas são burguesas, um instrumento de manutenção do status quo.

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GABRIEL Acho que primeiro a gente precisa começar a rever nosso léxico. Temos um vocabulário impregnado de ideologia que não nos favorece. A gente fala em crise na segurança pública, mas esse conceito não serve para o povo negro e periférico. Segurança vem de segurar. Segurar quem? Do que? Em que lugar? Se é público, não pode ser segurança. Temos que falar em termos de proteção popular. Se a gente muda nossa maneira de falar, altera também a de agir. A saída dessa crise é intelectual e não emocional, porque essa última tende a não gerar frutos políticos. Só que é difícil fazer isso num contexto de genocídio. Nós, os negros, estamos o tempo todo sentindo, é como viver num cemitério. O racismo não dá descanso porque não é uma atitude, é uma constituição social. E não só no Brasil. Quando vemos como escravidão é ensinada nas escolas, existe uma essencialização, como se o povo negro tivesse nascido para ser escravizado, como se fosse necessário para a exploração de recursos. Mas é uma questão conjuntural, a estrutura do Brasil era sustentada pela escravidão. O que compensava não era o mercado de açúcar, mas o de escravos, 80% do que valia um engenho era de acordo com o trabalho escravo que tinha. E assim Portugal tinha poder para controlar um país do tamanho do nosso, era necessário que a Coroa oferecesse suas atividades diplomáticas e de gestão para coordenar esse enorme mercado de escravos. Muito pouco mudou desde então, esse fluxo de escravismo, o racismo continua. A gente acreditou que tinha democracia e há 4 anos vimos como ela é frágil e suscetível. Não é à toa, mas não temos substância democrática na nossa cultura. Nosso problema é grave e difícil de ser resolvido.

Nas redes sociais, vimos amigos do João Pedro postando frases como: “Ele era um bom moço, não estava envolvido em crimes, ia para a igreja”. Como se ele não merecesse isso, mas a verdade é que não existe esse critério. Mesmo que ele fosse criminoso, a Constituição garante a ele direito ao julgamento e não temos pena de morte no Brasil.

VANESSA Esse discurso das crianças é uma grande prova da potência do aparelho ideológico que é o racismo. Quem está ali, um corpo idêntico ao do menino, que pode ser o próximo, reproduz o discurso do Witzel (Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro) que bandido tem que morrer. Você introjeta porque ouviu muito, passa a achar que a pessoa merece ser tratada assim, que é bandido porque quer. É a validação da pena de morte independentemente de plebiscito ou lei. A polícia tem o monopólio da força e vai exercê-lo como achar melhor. A quebrada de certa forma elegeu o Bolsonaro muito enganada pela retórica de que a morte é para quem não é trabalhador. Mas quem está em cima não vê trabalhador, justificam qualquer morte como consequência de ser bandido. Tenta invadir uma casa em Higienópolis, Jardins e atirar em alguém. Não entra sem mandado de prisão, busca, apreensão. Vai esperar o dono ligar para o advogado. Na favela é pé na porta, é a desumanização do território e das pessoas. Você é um ser desprovido de direitos e está cada vez mais longe de conquistar.

GABRIEL A gente se divide entre os que merecem e os que não merecem viver, aqueles que diretamente (pela cor da pele) ou indiretamente (pela classe social) não merecem viver. A ideologia dominante é aquela que prega que a gente não tem um problema estrutural, mas moral. Só que é isso que mantém as estruturas opressivas. A pobreza, o desemprego, o alcoolismo viram culpa da pessoa. Essa é uma estratégia neoliberal de manter a opressão, é um discurso histórico. Desconsidera de onde a gente vem. Por que a Paris Hilton nasce herdeira de um fundo de investimento de 1 trilhão de dólares enquanto uma criança africana não herda nada além da Aids? Existe mérito em simplesmente nascer Paris Hilton? A gente relativiza a morte simbólica ou física. Basta olhar a população carcerária. A população negra é desproporcionalmente representada no sistema carcerário, é uma remanescência da escravidão. O que se convencionou é que quem está sofrendo uma batida policial é criminoso, mesmo que nós saibamos que o enquadro tem como alvo a população negra. Seu filho toma num dia. No dia seguinte, é o filho da vizinha e você acha que ele é bandido. O racismo se engendra. Você não precisa ser branco para ser racista, afeta a população indistintamente. Como dizia o Malcolm X, o racismo é o crime perfeito.

O termo “necropolítica” foi usado com muita frequência nos últimos dias. O que significa?

GABRIEL Esse é um termo popularizado pelo africano Achille Mbembe. É sobre como um Estado, num lugar que tem um grande número de pessoas, faz a administração da morte. O Estado busca o domínio total sobre os corpos, sobre os próprios fluxos da vida. Não só trabalho, mas os afetos. Estamos num momento do capitalismo em que há um alto grau de automação e alienação da produção. As grandes empresas produtoras entenderam que lucram mais no mercado financeiro do que na indústria em si, então elas deslocam sua atividade central. As grandes empresas brasileiras viraram grandes empresas de capital financeiro. Antes, a necessidade de produzir e de consumir os bens de segunda mão seguravam esse trabalhador. Com a necessidade da produção desaparecendo e o mercado consumidor se suprindo automaticamente, a população trabalhadora que era essencial para girar as engrenagens do capitalismo passa a ser descartável. E aí tem fenômenos que derivam disso, como o acirramento das políticas de morte. A infraestrutura do Estado e do capital já percebeu que uma parte da população vai ter que morrer, quer que eles desapareçam. E genocídio negro não é só a morte física do corpo. Está também nessa morte gradual, na inacessibilidade, na desvalorização constante do direito de ter história, na desvalorização constante da cultura, da religião. Chega um momento em que você não se enxerga ser humano, você não tem as características básicas, como senso de comunidade, sensação de pertencimento, de contribuição social. Isso é retirado de você até você acreditar no que estão te dizendo. Todo negro que tem noção do que está acontecendo já se sente meio morto, já é um estado de depressão. A flor de mudança precisa de adubo, ela não nasce em terra seca. Quando você está passando fome, não pensa na mudança de estrutura da sociedade. Nisso, os Panteras Negras foram inteligentes, porque alimentava a população mais pobre enquanto fazia a movimentação. Foram chamados de assistencialistas pela esquerda branca, mas o estado de precariedade extrema não permite mudança. A gente precisa de um mínimo de estabilidade. Não foi por acaso que depois de alguns anos em que a favela teve acesso à linha branca de consumo surgiram tantos movimentos feministas negros, por exemplo. 

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VANESSA Está muito ligado com o termo do Foucault do controle dos corpos, a biopolítica. É acadêmico, mas é interessante que se vulgarize. Entretanto, acho que só falar o termo não é suficiente. Ele se refere a todos os mecanismos dentro da nossa sociedade que se perpetuam e que garantem a morte objetiva ou simbólica de uma determinada população. Exemplos: Bolsonaro fazendo campanha e pressão por uma reforma que tira direitos das pessoas ou a negligência dele com a pandemia. Ele tem a consciência de que existe uma parcela da população mais vulnerável, mas promove um aprofundamento da político que permite a morte dela. Termos como esses vão sendo difundidos, mas a gente esquece na hora das eleições temos que sair do campo militante e acadêmico e precisamos explicar da forma mais didática possível para as pessoas o que está acontecendo. As pessoas negam as coisas porque não entendem. E nem sempre isso é consciente. O policial da ponta, por exemplo, cumpre ordens. É o que chamamos de banalidade do mal. Ele age sem pensar, tem alguém mandando. Esse indivíduo precarizado vem do mesmo lugar de quem virou bandido e morreu. Como ele conseguiu sair, entra num discurso meritocrático que reproduz. Mas a origem dos dois é a mesma e mesmo assim não há esse tipo de conscientização pessoal. Isso vai se deteriorando porque se as pessoas entendem que o voto delas resulta na bala de fuzil que matou o João Pedro, a Ágatha, os jovens em Paraisópolis, fica muito pesado. Elas vão compartimentando isso num processo psicológico para não sentirem culpa pelo o que que está acontecendo.

Não houve muita mobilização de políticos diante da morte do João Pedro, mas diante das declarações recentes do Governador Witzel ou do Presidente Bolsonaro acho que isso nem era esperado. 

VANESSA Eu acho que a gente virou uma chave, é a desclassificação dos direitos humanos. A gente está num momento de exceção em que os governantes falam absurdos abertamente. Antes, em outros governos, o discurso era de que a polícia subia o morro para proteger a população, de que a corporação não deveria ser violenta, funcionar dessa forma, mas que havia algumas laranjas podres. Nos últimos tempos, nos governos Witzel, Bolsonaro, Dória o discurso virou: esse é o efeito colateral do combate às drogas, da busca pela segurança pública. A polícia tem permissão para matar porque se o assassinado não era um criminoso, poderia vir a ser. Eles foram eleitos com base nessas falas. O Witzel se solidariza com a família, individualizando o episódio, mas não trata como um problema estrutural. A polícia é mal paga, não tem estrutura, é ruim de tática, tem uma precarização de trabalhadores. O número de suicídios entre policiais é gigantesco. São duas unidades de sofrimento que vêm do mesmo lugar, mas que você separa em grupos. A comunidade fica de um lado e a segurança pública fica de outro. Também tem a importância da gente repensar as forças policiais. São Paulo tem um número alto de furtos de celulares. A esquerda branca vai para as manifestações pedir o fim da polícia militar, mas se some o celular, ela liga para a polícia. É uma hipocrisia no punitivismo, na crença do que é se sentir segura. A omissão das pessoas também é uma forma de validar essas mortes. É importante exigir da imprensa que se evite palavras como tragédia, como se fosse uma chuva que inundou a cidade. Dá a ideia de um acaso, mas não existe isso quando um crime desses acontece. O João Pedro foi assassinado. O jornalismo tem a tendência a amenizar para não incriminar, mas isso nunca acontece quando a vítima é branca. As manchetes vão dar a entender que o menino estava enrolado com alguma coisa errada, que o policial estava despreparado. Isso que o Witzel fala das mortes acontecerem quando você tá combatendo o mal não faz sentido. Ninguém combate a corrupção e a milícia dessa forma, atirando. Num genocídio como o que acontece no Brasil a gente tem como responsabilidade social prevista no código de ética dar nome correto aos bois.

GABRIEL O que a gente vê agora é o pensamento elitista mais retrógrado do Brasil desnudo. Saiu o verniz. A elite brasileira representada pelo Bolsonaro é saudosa da escravidão. O projeto genocida sempre esteve ali, mas ficava escondido. De um jeito simplista, mas o pensamento da elite é mais ou menos: “Se o João Pedro merecesse viver, ele não moraria onde mora”. É uma população tão à margem que não tem história. Pensa nas novelas. As empregadas nunca têm família, elas não são parte da sociedade. Se mudar a atriz no meio da novela, talvez nem seja percebido. Se você não tem história, serve para que a não ser para servir? E se não tá servindo, qual é a sua utilidade? É um pensamento escravocrata arraigado na sociedade. Nosso projeto de civilidade fracassou. Não é que não conseguimos fazer uma democracia, não conseguimos nem uma sociedade. Você não cria fascismo em cativeiro, ele acontece quando o ódio vira paixão política. Só que é descontrolado, não se escolhe o bode expiatório.

É muito forte nos Estados Unidos o movimento Black Lives Matter. Eles conseguiram fazer grandes organizações em diversos momentos da história para se manifestar contra o racismo, contra o genocídio negro que também acontece lá. Qual a relevância de ter um movimento assim e por que isso não ocorre no Brasil?

GABRIEL Os Estados Unidos têm essa tradição do movimento negro antiguerra, dos Panteras Negras. O movimento Black Lives Matter tem seu impacto e importância, mas, como qualquer slogan, ele se esvazia com rapidez. Slogans têm impacto inicial que nem sempre precisa ser sustentado por uma ideologia. Não é o caso aqui. Esse é um grito de desespero. É a simples afirmação que a gente cansou de morrer à toa, como o Evaldo, a Ágatha. Do ponto de vista psicológico, é a revolta do luto. Mas a questão não é por que é desse jeito nos Estados Unidos e de outro jeito no Brasil. O que é importante entender é que nenhuma revolta – seja ela o incendiar prédios públicos ou a destruição de patrimônio –, nenhuma reação popular pode ser criminalizada. A partir do momento em que o Estado se torna uma entidade assassina e que mata sem motivo, com o nível de violência que foi, não há resposta a altura. E o Brasil não é passivo. Tem que lembrar que o primeiro Estado independente das Américas foi a União dos Palmares, que foi uma confederação construída por escravos fugidos e libertos no Brasil. A gente teve Canudos, a revolta da Chibata, em que marinheiros negros apontaram as armas da marinha contra a capital do país na época, o Rio de Janeiro. Todas essas revoltas foram recebidas com violência extrema pelas forças do Estado. O Brasil não é um país que se silencia diante da violência. Mas a questão é que seja voltar as armas contra a capital do país ou destruir patrimônio público, não tem reação à altura da violência do Estado. Qualquer reação popular tem que ser compreendida pela mídia como uma reação digna e justa. O Estado não tem o direito de matar as pessoas, ainda mais de forma sumária, sem julgamento. Quando ele faz isso, tem que estar preparado para qualquer reação, porque é legítima. A reação de queimar Minneapolis é legítima como seria qualquer outro tipo de revolta. O fato dos brasileiros se revoltarem de outras formas tem a ver também com a história da constituição do nosso Estado, com a nossa cultura. Os Estados Unidos passaram por uma guerra civil de cunho revolucionário. Eles tiveram uma independência revolucionária. A história acaba determinando comportamentos. E também tem o fato de, apesar deles também sofrerem com o genocídio da população negra, o nosso ser infinitamente mais intenso. A ponto de não ter tempo de reagir. A gente está enterrando um e já tem outro sendo assassinado. A gente não consegue guardar o nome de todo mundo que é morto pela polícia.

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Todas as mulheres podem (e devem) assumir postura antirracista

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