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Como vão mudar os nossos hábitos de consumo pós-pandemia

A pandemia desencadeou uma crise com contornos singulares. Uma mudança tão abrupta anuncia recessão e uma revolução no comportamento de consumo

Por Isabella Marinelli Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 7 Maio 2020, 15h11 - Publicado em 2 Maio 2020, 14h00

Zeitgeist é um termo da filosofia que pode ser traduzido como o espírito dos tempos. Ele se refere à combinação única de cultura, aspectos sociais e conhecimento de uma determinada época. Segundo os pensadores que o cunharam, é o que faz com que sejamos o que somos diante do contexto em que estamos inseridos. O conceito soa até poético, mas ajuda a explicar por que é tão difícil pensar em como vamos nos comportar após uma crise de características inéditas.

Nem mesmo a história, que costuma nos guiar mostrando erros e acertos do passado, dá conta sozinha de facilitar esse caminho. A questão é que a pandemia do novo coronavírus ganhou contornos dramáticos em poucos meses. Avançou da Ásia para a Europa, chegou às Américas e atingiu o Brasil. Até o fechamento desta reportagem, já eram mais de 46 mil contaminados e 2,9 mil mortos – com a suspeita grave de subnotificação de casos. O duelo entre os interesses da saúde e da economia colocou o país numa corda bamba de prioridades. Contrariando o discurso presidencial pelo fim do isolamento social, considerada a melhor medida de contenção do contágio pela Organização Mundial da Saúde (OMS), os governadores prolongaram a quarentena em todo o país. Isso significou portas fechadas de shoppings e centros comerciais, restaurantes e bares operando apenas via delivery e livre acesso apenas aos supermercados e farmácias, considerados serviços essenciais. Boa parte das grandes empresas aderiu ao home office na marra, instalando os softwares necessários em tempo recorde para mandar os funcionários para casa. O Google liberou de graça seus recursos para reuniões online e aulas à distância. O Zoom, ferramenta de videoconferência antes reservada aos encontros corporativos, passou a ser cenário digital de festas entre amigos – e até dates, por que não? Em um parágrafo e poucos dias, couberam grandes transformações de ordem social que mexeram com as estruturas não só do Brasil mas de vários países. Quem tinha medo da mudança viu-se engolido por uma onda que não deixou escolhas. Diferentemente de outras crises econômicas e pandemias, a atual associou fatores muito particulares, como a globalização e o fácil trânsito entre fronteiras, o alto grau de contágio e a ausência, até então, de medicamento ou vacina efetiva.

Os livros provam que toda crise é responsável por impulsionar grandes movimentos na humanidade – alguns são disruptivos; outros já engatinhavam e se aproveitam do catalisador. “Desta vez, de uma hora para outra, o comércio se viu sem nenhum fluxo de caixa”, explica a economista Isabela Tavares, da consultoria Tendências, de São Paulo. No Brasil, as taxas de desemprego e a queda brusca de renda já afetam muitos, consequência não só de grandes cortes de postos de trabalho em empresas parrudas mas também da falência de micro e pequenos empreendimentos que não têm capital para aguentar um tranco desses. “As medidas governamentais, como auxílio de renda e de crédito, ajudam na liquidez do sistema e são positivas tanto para evitar que as empresas demitam quanto para benefício imediato das famílias. Entretanto, não são suficientes para brecar a recessão. Muitos vão quebrar”, diz ela.

Mesmo os que mantiverem o emprego deverão se sentir inseguros e segurar os gastos. “Desde 2015, o consumo no Brasil já vinha mudando. Depois de uma crise, há certa demora para que o mercado se aqueça de novo. Com um cenário assim, bens de primeira necessidade, como alimentação e farmácia, passam na frente. Já bens duráveis ou de segunda necessidade são postergados. Ganha força a conscientização sobre o que é realmente necessário diante das novas prioridades”, afirma Isabela.

“Em um cenário de crise, ganha força a conscientização sobre as compras que são realmente necessárias diante das novas prioridades”

Izabela Tavares, economista
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(Débora Islas/CLAUDIA)

Revisão de valores

Soa até contraditória a notícia de que a loja da grife Hermés na cidade de Guangzhou, na China, vendeu 2,7 milhões de dólares no dia da reabertura do comércio local. A cena tem influência cultural e não é esperado que se repita em nenhum outro lugar. “Na década de 1980, logo quando a China se abriu para o mundo, houve um movimento chamado revenge buying (compra de vingança, em tradução livre). Ele expressava o comportamento de pessoas que não tiveram acesso aos itens de luxo com prestígio ocidental por anos e quiseram tirar o atraso. A postura tem um perfil asiático – que, diferentemente de outras regiões, vinha num ritmo econômico muito acelerado. Os europeus, em razão da cultura de escassez dos períodos pós-guerra, devem entrar numa fase de austeridade. Os Estados Unidos, que já tiveram crises financeiras importantes, como as de 1929 e 2008, provavelmente seguirão pelo mesmo caminho”, explica Carlos Ferreirinha, fundador da MCF Consultoria, especializada em mercado de luxo.

60% dos consumidores dos Estados Unidos relataram que serão mais cautelosos com os gastos depois da pandemia

É indiscutível que a moda é um retrato de seu tempo, e não seria agora que fugiria à regra. “Na Primeira Guerra Mundial, as mulheres precisaram ocupar os postos de trabalho dos homens que haviam ido para o front e começaram a usar peças masculinas. Na década de 1920, elas celebraram a liberdade encurtando a saia. Aí veio a Segunda Guerra, com a retomada da praticidade e looks com duas peças, que rendiam mais combinações. Nos anos 1950, a Dior resgatou a feminilidade com o New Look. Em meados de 1964, os jovens americanos não queriam ir para a Guerra do Vietnã, e o movimento hippie foi estabelecido. Como não havia emprego, houve uma profusão do que poderia ser feito à mão em casa. Eles moravam em repúblicas onde meninos e meninas trocavam as peças de roupa, estabelecendo o unissex. Mais para a frente, com a reunificação das Alemanhas nos anos 1990, entrou em cena o jeans, como código de liberdade e contravenção”, relembra João Braga, professor de história da moda da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), em São Paulo. Agora, o movimento da ostentação segue em queda livre. As pessoas estão há dias encarando e repensando o próprio armário. “Historicamente, toda época de excessos precede uma crise. Creio que veremos uma retomada do purismo em tecidos e linhas. No Brasil, há a chance de valorizar o melhor do nosso artesanato e da nossa regionalidade, mas com o glamour e o design que a moda pede”, diz João. Outra tendência que promete se consolidar é a venda, o aluguel e a troca de peças de segunda mão, como forma de reaproveitar o que está parado e evitar compras de peças novas. O conceito oferecido em brechós, que já é bastante popular fora do Brasil e ainda não emplacou por aqui, deve ganhar força.
Um dos valores que orientam o caminho é a sustentabilidade, tanto em termos de redução de excessos quanto de responsabilidade social em relação à cadeia de produção, à origem das matérias-primas e ao impacto na comunidade. Especialmente para os consumidores mais jovens, perdem pontos as marcas que não se envolveram de alguma maneira no combate à Covid-19 – houve as que mexeram nas operações de fábrica para produzir álcool em gel, dispensaram funcionários sem demiti-los ou aderiram à quarentena voluntária. “O valor da solidariedade é notável. Existe uma postura de humildade imposta pela crise, porque as coisas mudam de perspectiva quando há a consciência de que a pessoa ao seu lado pode morrer”, argumenta João.

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“Existe uma postura de humildade imposta pela crise, porque as coisas mudam de perspectiva quando há consciência de que a pessoa ao seu lado pode morrer ”

João Braga, professor de História da Moda

Outro pilar comercial que recebe um grande impulso é o digital. Dados da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico dão conta de que houve um aumento de 40% no número de pessoas que fizeram compras online em março deste ano quando comparado ao ano passado. Pesquisas indicam ainda que parte delas deve seguir com o comportamento mesmo após a normalização. Embora o mercado já contasse com as etiquetas que vendem direto para o consumidor sem loja física e com e-commerces eficientes, foi um chamado dos novos tempos para muitas grifes, especialmente as de luxo. “Para as grandes marcas, a loja é um templo e a experiência lá dentro carrega uma conotação quase sacra. A maioria delas não vende online em loja própria nem sequer traduz o site para mais de um idioma. A crise mostra a elas a importância da comunidade local e de buscar alternativas no ambiente digital”, explica Carlos Ferreirinha.

(Débora Islas/CLAUDIA)

Lar doce lar

A possibilidade de receber tudo na porta com apenas alguns cliques foi uma mão na roda para a adaptação às medidas de isolamento social. Para as famílias que tiveram o privilégio de poder ficar em casa, dar um pulo até a calçada virou evento social e o lar foi ressignificado de muitas maneiras. Em primeiro lugar, as mais práticas eram: onde a criança vai sentar para ter aula à distância, qual o melhor ambiente para instalar o computador do trabalho, como será possível transformar a dinâmica para que todos possam cumprir os compromissos pessoais e profissionais sem tornar a convivência intensificada difícil.

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Num segundo momento, vieram as novas necessidades. “Foi quando as pessoas começaram a redescobrir o próprio lar e identificar partes da casa que não são funcionais ou quais são as mais agradáveis. Quem comia fora e passou a cozinhar reparou na falta de determinados utensílios. De modo geral, as pessoas começaram a dar novos usos a esses ambientes para atender a hábitos que até então não estavam associados a esse espaço”, explica Gabriel Milanez, vice-presidente da consultoria de tendências Box1824. Para ilustrar, o Google Trends sinaliza que as buscas por receitas de pão e exercícios em casa quintuplicaram em março deste ano. Na Inglaterra, por exemplo, as vendas de acessórios fitness simples, como tapetes para ioga, cresceram vertiginosamente. São compras que respondem à necessidade de tornar cômodos diminutos em cenários úteis e ricos em atividades, mas também de se sentir saudável e melhorar as condições do corpo num momento em que só se fala em saúde, resistência e sobrevivência.

“A crise mostra às marcas a importância de cultivar uma comunidade local e de pensar alternativas digitais”

Carlos Ferreirinha, fundador da MCF

Até por isso, quem também vive seu momento de glória são os aplicativos de ginástica e de bem-estar. De acordo com a plataforma App Annie, que rastreia downloads de aplicativos, o app Breathe (de meditação guiada) subiu 31 posições no ranking de saúde e fitness na última semana, enquanto o BetterMe, de treinos e alimentação equilibrada, saltou 70 pontos. Já o Headspace, um dos apps de mindfulness mais famosos do mundo, registrou um maior número de exercícios concluídos e um aumento de 14 vezes na sessão de controle de ansiedade. Aqueles que se adaptam ao formato não pensam em abandoná-lo tão cedo – mesmo com o fim do isolamento.

(Débora Islas/CLAUDIA)

#Selfcare máximo

O mercado de wellness digital já era considerado uma grande aposta de 2020 antes mesmo de a OMS declarar a pandemia. Outro tópico que agora ganhou ainda mais notoriedade também já era apontado: os cuidados de beleza feitos em casa. Atire a primeira tesoura quem não pensou em fazer alguma mudança estética durante o confinamento. Enquanto algumas bradaram liberdade abandonando de vez a cobertura de fios brancos com tinta ou raspando a cabeça, outras sentiram necessidade de aprender sozinhas o que antes era tarefa de profissionais. Fazer as próprias unhas, resolver questões capilares e até drenagens entraram para as atividades cotidianas. É mais uma oportunidade de criar um pequeno ritual. Entre as dez tendências de consumo para 2020 previstas pelo Euromonitor antes do novo coronavírus, estão os momentos de spa em casa, que ficam ainda mais interessantes agora se observados também pela ótica do relaxamento. Para oferecer esse tão necessário refúgio, os produtos mais desejados serão aqueles que aliam funcionalidade com propósito. Pense em xampus e condicionadores que combinam o tratamento dos fios aos princípios da aromaterapia, por exemplo. Ou os cremes e óleos que, além de hidratar a pele, combatem os efeitos do stress e do uso excessivo de telas. Cada vez mais, o que aplicamos no corpo carregará valores holísticos e terapêuticos, além da finalidade estética.

75% dos compradores nos EUA e na Europa acreditam que a situação financeira seguirá ruim por mais de dois meses, segundo levantamento da McKinsey & Company

Se falamos em contenção financeira e compras mais acertadas, não podemos esquecer que esses artigos estão dentro do guarda-chuva de higiene e cuidados pessoais. Um levantamento da Envison Horizons, braço publicitário da Amazon, apontou que, em março, as categorias de beleza e cuidados pessoais registraram aumento de 70% em comparação ao mês anterior. Os números sinalizam que a procura e a exigência em relação aos básicos seguem uma tendência forte para os próximos anos. Um artigo do site Business of Fashion, autoridade em relatórios de comportamento de moda e beleza, coloca desodorante e pasta de dentes como os mais importantes itens do momento para a indústria. Já a Mintel, agência de pesquisa de tendências, indica que o mercado de cuidados pessoais deve movimentar 93 bilhões em 2020. Para essa seara também vale a busca por alternativas limpas, com ingredientes menos agressivos e naturais. É a sustentabilidade batendo na porta mais uma vez.
Os valores de transparência e de apelo emocional guiarão as compras daqui em diante. Saem na frente as empresas que conseguem dialogar com seu público diretamente por meio de comunicação digital estratégica. O destaque vai para uma categoria chamada “masstige” (a junção de massa com prestígio em inglês), que cumpre os requisitos e promete ser a bola da vez. Desde o ano passado, estudiosos da área já chamavam a atenção para o potencial das marcas que mimetizam a aparência e os conceitos dos produtos caros, mas praticam preços acessíveis. Eles se posicionam entre a drogaria e a loja especializada (e cara) de beleza, mas oferecem a sensação de adquirir um item de luxo. O grande trunfo? Um trabalho de marketing esperto para despertar desejo associado a bons resultados, fórmula do sucesso das já estabelecidas Glossier e The Ordinary. A experiência que alia “o melhor dos dois mundos” não poderia ser mais inteligente para laçar os compradores de amanhã.

 

Em tempos de isolamento, não se cobre tanto a ser produtiva

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