True crime: existe ficção após tragédia?
Série da Netflix sobre caso da Boate Kiss levanta discussão sobre o gênero
Podcasts, séries e vídeos nas redes sociais detalhando crimes – os chamados true crime – têm caído cada vez mais nas graças do público. No Brasil, não seria diferente: a recente produção da Netflix sobre o caso da Boate Kiss já é um sucesso absoluto. Todo dia a mesma noite, entretanto, ascendeu na internet um debate sobre o dilema entre manter uma história viva e a exploração de uma tragédia. Mais do que isso, o por quê de nos interessarmos por esse tipo de conteúdo e se existem benefícios para a sociedade.
True crime: o que é?
O true crime é qualquer exposição detalhada de um crime real para fins de entretenimento, seja como podcast, gênero literário ou audiovisual, de acordo com a escritora de terror Paula Febbe. “Ele existe desde a primeira quebra de lei, porque é impossível imaginar que os crimes não gerassem grande curiosidade e não fossem contados a pessoas que não estivessem envolvidas nele.”
Prova disso, segundo a especialista, é que no século XVII existiam sermões de pastores antes das execuções de criminosos que viravam livros. De lá para cá, o fenômeno se tornou gênero com nome próprio, ganhou fãs, indústria e segue fazendo sucesso.
A problemática
A diferença entre true crime e o jornalismo responsável é que, ao invés de expor os acontecimentos de maneira objetiva, o primeiro transforma os fatos em uma história, o que leva os espectadores a se conectarem emocionalmente com a narrativa. Isso não necessariamente é ruim, como lembra a profissional, pois, de certa forma, traz visibilidade para os casos, cria debates na sociedade e mostra a importância de denunciar a violência.
Inclusive, na época de maior popularização do podcast A Mulher da Casa Abandonada, uma áudio-serie documental de true crime que ficou famosa em 2022, o número de denúncias de suspeitos de trabalhos domésticos análogos à escravidão feitas ao Ministério Público do trabalho (MPT) cresceu 67%, segundo o jornalista que criou o programa, Chico Felitti.
Após o podcast A Mulher da Casa Abandonada ir ao ar, o número de denúncias de suspeita de trabalho doméstico análogo à escravidão feitas ao MPT cresceu em 67%. Na região de SP, esse número triplicou +
Continua após a publicidade— Chico Felitti (@chicofelitti) July 26, 2022
“O gênero pode fazer com que você preste atenção em comportamentos que antes não prestava. Além disso, não ficar tão vulnerável quanto estaria se nunca tivesse tido acesso a esse tipo de material”, pontua a escritora.
O problema surge, no entanto, quando os criminosos recebem muito espaço nas narrativas, sem dar a devida atenção às vítimas ou mostrar as consequências dos crimes cometidos, defende Paula. Isso não só dá margem para o sensacionalismo, como também para a criação de fã clubes para os criminosos.
Ted Bundy, um dos mais famosos assassinos e estupradores, por exemplo, teve espaço na mídia tradicional, mas também conta com muitos filmes e séries dedicados a sua história. Em algum momento, o criminoso passou a colecionar fãs por ser considerado bonito por elas, que até mesmo acreditavam que ele não merecia aquele tratamento ou que elas seriam as responsáveis por curá-lo.
Além destas questões, os próprios familiares, quando não autorizam a produção, podem sentir que a tragédia está sendo dissecada, o que os obriga a reviver momentos traumáticos do passado. Parentes das vítimas da Boate Kiss exemplificam bem isso: parte deles queria processar a Netflix por não solicitar desenvolver a série lançada em janeiro deste ano.
O inegável interesse do público pela temática também traz questões sobre ser ético ou não lucrar com mortes, estupros e outros crimes. O true crime alcança uma grande quantidade de pessoas e, como consequência, gera dinheiro para quem o produz, outro fator que torna o consentimento da família necessário.
Mas por que as pessoas se interessam tanto por crimes reais?
O documentário sobre o assassinato de Daniella Perez é a série mais assistida da história da HBO MAX. Dahmer, da Netflix, teve 196,2 milhões de horas vistas em sua primeira semana e se tornou a série mais consumida do streaming em pelo menos 60 países. Os dados levantam a questão: por que gostamos tanto de true crime?
O interesse do ser humano por crimes e violência existe desde a antiguidade, quando as pessoas se reuniam em praça pública, por exemplo, para ver a punição de criminoso. Mas, para além da curiosidade, existe a sensação de alívio que o espectador tem ao consumir esse tipo de conteúdo.
“A ideia de que podemos pegar quem cometeu o crime ou nos proteger caso alguém parecido cruze o nosso caminho nos alivia. Além da pessoa que se imagina fazendo tal ato, mas não tem coragem de colocar a vontade em prática, ficar satisfeita em apenas assistir.” Ter acesso aos acontecimentos em um espaço seguro é mais uma causa desse sentimento.
O termo “sublimação”, de Freud, segundo a especialista, também se relaciona com o interesse das pessoas. Ele pode ser definido como como colocar os desejos mais intrínsecos para fora, de uma maneira aceitável na sociedade. Nesse caso, seria consumir conteúdos sobre crime.
“Elizabeth Roudinesco diz que todos nós temos um lado perverso que não pode ser exposto a todos. Ao acessar este tipo de conteúdo, torcemos para que a vítima se livre, mas também há um fascínio por quem cometeu o crime, seja pela inteligência ou pela transgressão ao cometer atos inimagináveis”, completa a escritora.
Devo parar de consumir true crime?
Assim como o true crime possui problemas, também tem pontos positivos para a sociedade, como a própria função de alertar as pessoas sobre os crimes. Isso significa que não necessariamente você deva abolir eles da sua vida. Algumas pessoas se dão melhor com ele do que outras, como lembra a especialista, basta entender a qual desses grupos você pertence.