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Katiúscia Ribeiro viu suas aulas de filosofia africana lotarem na pandemia

A mestra Katiúscia Ribeiro explica como os ensinamentos ancestrais podem reconectar a sociedade atual com sua essência e os benefícios disso

Por Ana Carolina Pinheiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 15 ago 2020, 09h44 - Publicado em 14 ago 2020, 13h00

Pequenas doses de água umedecem a terra de um vaso com planta. Enquanto a filósofa Katiúscia Ribeiro faz a rega, escuta palavras como justiça, libertação, paz e sabedoria, que vêm de seu computador. São conceitos usados por pessoas do outro lado da tela para explicar a busca por seus ancestrais. “Essas palavras vão nos acompanhar nessa travessia”, diz Katiúscia ao público da aula online, que se tornou uma prática corriqueira no isolamento. A rega tem um propósito. Faz parte do ritual de libação, em que se derrama um líquido em oferecimento a uma figura sagrada. A cerimônia originária do Kemet, ou Egito Antigo, dá início ao curso de introdução à filosofia africana, ministrado pela pesquisadora em sua produtora, Ajeun Filosófico (katiusciaribeiro.com). A proposta das aulas é fazer refletir sobre as relações sociais e a cultura com base no conhecimento africano, que nasceu às margens do Rio Nilo por volta do século 27 antes da Era Comum.

Infelizmente, poucas pessoas conhecem a vertente africana da filosofia. Até mesmo para Katiúscia, essa ciência apareceu de forma inesperada, definida por ela como uma escolha ancestral. “Passei no vestibular para economia, mas fiquei doente e precisei adiar os planos. Depois, pelas vagas remanescentes, entrei no curso de filosofia, disciplina com a qual não havia tido contato nem na escola. Minha primeira impressão foi negativa e quase desisti. Porém, lendo estudos do filósofo Molefi Kete Asante sobre o continente africano, voltei minha formação para essa área”, diz ela, que produziu a primeira monografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro exclusivamente com referências de autores africanos. “Tive que provar para a academia que a filosofia africana existe”, aponta.

Com planejamento ou não, o encontro de indivíduos com a história e cultura do povo que os originou é uma forma de compreensão não só do passado mas também do presente. Até para quem continua na mesma rotina de trabalho, é praticamente impossível escapar do clima de reflexão instaurado pela crise sanitária e socioeconômica. O eco do vazio de uma parte silenciada e mutilada da própria raiz ficou ainda mais sensível para quem busca aquelas palavras entoadas no ritual de libação. Para Katiúscia, esses conhecimentos também nos inspiram a sonhar e a construir uma sociedade mais linear e de acolhimento.

(Karla Brights//CLAUDIA)

Como a filosofia africana pode nos ajudar neste momento de crise?

O papel das filosofias é pensar o ser e o sujeito. Nós vivemos inseridos em uma cultura ocidental, com limitações e dogmas morais, e esse modelo vertical não dá mais conta de nenhum sujeito. Ele foi feito para colapsar. Já a filosofia africana é uma experiência coletiva, ancestral e pluriversal. É um respiro, um fôlego para entender que esse processo singular não comporta as relações do mundo; nós somos seres plurais. Por exemplo, nós duas somos mulheres negras, mas temos formas de compreensão do mundo distintas. Não posso chegar e cravar que ser mulher é tal coisa; afinal, existem tantas definições possíveis. Os conhecimentos do continente africano acolhem essa pluralidade.

O silenciamento da produção intelectual africana pelo Ocidente é também uma das formas de manutenção do racismo através dos séculos?

Os pensamentos do continente africano sofreram com o epistemicídio, que é a morte de todos os conhecimentos, sejam eles acadêmicos ou culturais, de tudo aquilo que não foi produzido em território europeu. O Ocidente criou um modelo de sociedade com modos de comportamento, sendo um deles a binariedade, que molda o ser, as relações e até as famílias, mostrando o que é ou não aceitável. Se você é excluído, sua humanidade também. Por exemplo: para quem não é homem, alto, cristão, provedor, monogâmico, o que sobra? Esse processo de desumanização leva a uma animalização dos corpos negros, o que explica o genocídio dessa população. A filosofia tem uma participação direta na forma como se estrutura a sociedade, já que ela assina o contrato e garante que esse modelo seja mantido.

E como esse contrato pode ser rompido?

A afrocentricidade, conceito de Molefi Kete Asante, é uma questão de localização que nos ensina a pensar a realidade de mundo pela perspectiva africana. Nós não vamos entender o que somos por definições de outros seres. Por mais que os levantamentos de Simone de Beauvoir sejam muito importantes, eles não contemplam as mulheres negras. Por exemplo, para a pesquisadora nigeriana Oyeronke Oyewumi, a ideia do que é ser mulher e a criação do próprio termo, como foram pensados pelo Ocidente, não existiam para a população africana. Não é desvalidar uma ideia ou outra, mas compreender que há várias. Entrando em contato com as premissas do nosso povo, é possível uma descolonização mental, já que olhamos outras referências e criamos esse alicerce que nos foi tirado. Hoje, nós só conhecemos o que nos contam, e a filosofia africana nos permite esse encontro com a raiz.

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Por que a ancestralidade e a espiritualidade são tão referenciadas na filosofia africana?

Para o continente africano, você não é um ser estático e sozinho, ou seja, há referências de pessoas que passaram pela sua vida. Sou nascida e criada dentro de um quilombo. A minha tia-avó, meus avós fazem parte da minha construção, e isso é fundamental na filosofia africana e indígena. Não existe o eu – “eu penso, eu existo” –, mas, sim, uma realidade de nós – “nós somos, sentimos”. Esse movimento também está presente nas religiões de matrizes afro, levando à presença da espiritualidade na filosofia; tudo está conectado.

(Karla Brights//CLAUDIA)

Qual é a importância da arte para a disseminação desse conhecimento?

A afrocentricidade aparece na música Black Parade, da Beyoncé. Ela começa dizendo: “Vamos voltar ao Sul, sentar no baobá, pegar uma Ankh (símbolo da vida eterna, segundo a hieroglífica egípcia) e sentir a energia de Oxum”. Pensando na realidade brasileira, nós fomos para a escola e só aprendemos epistemologias ocidentais. Isso é desesperador. Na aula de matemática, por exemplo, temos só teoremas ocidentais. A Beyoncé, sambas-enredo e a cultura nos chamam para ver outra proposta de mundo. Desse lugar, criamos uma agência, uma rede de informação, já que Molefi Kete Asante, idealizador do conceito, sinaliza que vivemos em uma grande desagência.

A Lei nº 11.645/2008 garante o ensino da história africana nas escolas; só que nem todas cumprem na prática. Quais são os riscos disso para a sociedade?

Se você possibilita que crianças negras conheçam essa história, você dá a elas pertencimento cultural e fortalecimento da autoestima, além de permitir que as crianças brancas sejam mais refratárias ao racismo. É fundamental em todas as matérias ter estudo africano, assim como indígena. Nós somos uma nação atravessada por todas as culturas. Então você não pode renegar essas experiências nos currículos. Como o Brasil é um país extremamente racista, intencionalmente não proporciona o investimento na educação; é um projeto político de manutenção do status quo do racismo no país. Existe uma lei federal, mas não tem cobrança para ser efetivada. É uma violência muito grande. Como você elimina o racismo se a única história do mundo é branca? Qual é o lugar das pessoas negras na história? O da subalternidade, do chicote, da violência? Nossa história não começa no século 15, mas nas primeiras civilizações, às margens do Rio Nilo. Imagine se todas as crianças tivessem acesso desde pequenas aos estudos que temos agora.

Se o trabalho e a graduação são vistos como importantes meios de mobilidade social para os negros, a filosofia africana seria a nossa alforria mental?

Total! Na verdade, você precisa mudar a noção de sujeito para entender o todo. O filósofo Frantz Fanon fala em um texto de “peles negras, máscaras brancas”, fazendo referência a corpos pretos inseridos em um projeto de humanidade branca. A filosofia africana permite que a pessoa se entenda como sujeito humano com outra experiência cultural e narrativa de ser e estar no mundo. De que adianta ter dinheiro se você ainda vive em uma estrutura desigual e que a fere de outras formas? A filosofia africana ubuntu nos ensina a coletividade, que eu sou porque nós somos. É a mesma ideia transmitida nos quilombos, nos terreiros, nas irmandades, nos blocos afro, nas aldeias, nas favelas, nas escolas de samba, nas rodas de samba, na capoeira. Tudo é coletivo e circular, proporcionando sempre a compreensão do outro. Não dá para um ter milhões e o outro comer lixo.

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(Karla Brights//CLAUDIA)

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