Os 160 anos Júlia Lopes de Almeida e sua contribuição para a literatura
Escritora tem obra revisitada em 2022 com a republicação de seus escritos e o resgate de originais ainda inéditos
A história não é nova: uma autora à frente de seu tempo que foi ofuscada pelo sucesso de seus colegas homens. Assim como tantas outras, foi também Júlia Lopes de Almeida, carioca nascida em 1862, escritora, cronista, teatróloga, pensadora, romancista etcetera que publicou mais de 40 livros ao longo da frutífera carreira. Ao lado do companheiro, Filinto de Almeida, foi uma das idealizadoras da Academia Brasileira de Letras. Apesar disso, à época, eles decidiram seguir o modelo francês no qual permitia apenas homens no círculo intelectual da literatura brasileira. Ela, então, ficou de fora.
Conhecida por suas histórias recheadas de personagens femininas donas de suas narrativas, questionadoras do status quo, Júlia também abordava o desenvolvimento econômico do país, a violência doméstica e o divórcio. Falava de amor, de esperança e da crença de um futuro melhor para o Brasil. “Ela foi a primeira escritora profissional no final do século XIX a viver do ganho de seus livros, além de uma das mais modernas e contemporâneas da literatura brasileira. Quem lê Júlia hoje parece estar lendo uma autora do século XXI”, conta Tomaz Adour, fundador e editor-chefe da Vermelho Marinho, editora que está resgatando a obra e a relevância de Júlia Lopes de Almeida no imaginário cultural.
Em 2022, o marco dos seus 160 anos resgata a conexão de passado e presente que só os grandes autores de fato conseguem fazer: ter atemporalidade. “Ela teve uma carreira constante e profícua, mas sofreu grande injustiça. E isso precisa ser desfeito”, reforça o editor, que compartilha ainda a vontade de resgatar inéditos da escritora para publicar. “Ela é um marco. Talvez o feito mais importante tenha sido mostrar às mulheres que elas podem e devem se expressar e assumir papéis iguais aos dos homens na sociedade. Júlia nunca se intimidou pela presença dos homens e era extremamente respeitada. Ela mostrou que as mulheres escrevem tão bem e melhor que muitos homens. Não foi à toa que ela foi a autora brasileira mais vendida no início do século XX, tendo apenas Coelho Neto a seguindo de perto.”
Abolicionista e feminista, Júlia lutava pelo voto feminino e pela participação da mulher em todas as áreas, e usava a literatura ao seu favor. “Ela expunha os males da sociedade, mas também dava esperança. Alguns de seus livros e contos têm finais pesados e assustadores, mas que representavam o que realmente acontecia e os leitores se identificavam. Júlia deixou uma obra extensa e que se lida em sua totalidade faz um painel da sociedade brasileira do final do século XIX aos anos 30 do século XX”, comenta Tomaz Adour.
Para começar a ler a sua obra, vá pelo caminho de Ânsia Eterna. O livro de contos, que está no box comemorativo lançado pela Vermelho Marinho, fala da vida cotidiana de famílias de diversos contextos e configurações, e os desdobramentos afetivos a partir dessas escolhas. “Num de seus contos mais famosos, ‘Os Porcos’, o pai da jovem Umbelina ameaça jogar o bebê que ela espera, fruto da relação com o filho do patrão, aos porcos, e o conto narra sua caminhada em direção à casa do homem que a enganou. A proximidade da morte é o tema de ‘A Morte de uma Velha’, e em ‘As Três Irmãs’, as personagens discutem e comparam suas vidas como se fossem adolescentes competitivas. São histórias das classes mais baixas e de princesas, mostrando um retrato da cultura patriarcal de seu tempo, expondo feridas até hoje abertas na sociedade.”
Quais são as características mais marcantes da escrita da autora?
Em sua obra de mais de 40 volumes, destacam-se os romances e as crônicas. Júlia tinha um olhar aguçado sobre as relações da sociedade. Podia tanto escrever sobre escravos como sobre a elite financeira e intelectual, da qual ela fazia parte. A caraterística mais marcante de sua obra é a lapidação final do texto. Júlia não era prolixa. Seu texto é rico, sem ser pedante ou enfadonha. É um texto ágil e impactante. Quem pega um livro de Júlia, não larga. Ela tem o talento dos grandes folhetinistas, como Alexandre Dumas, mas com a realidade brasileira. Não são livros de aventura. São histórias da sociedade de sua época, onde os acontecimentos vão num crescendo até o final marcante. Esse talento para a escrita é o grão de ouro para qualquer autor atingir o sucesso. E Júlia era mestra nisso, com seus livros sendo esperados pelos leitores ansiosamente.
A partir desse resgate, o que podemos linkar de sua atuação no passado com o Brasil de hoje?
Apesar de todas as conquistas das mulheres nas últimas décadas, ainda temos muita estrada a percorrer. O Brasil é um país bastante conservador e machista, com as pessoas ainda acreditando que o lugar da mulher é cuidar da casa. Júlia defendia a abolição da escravatura, mas os pretos hoje continuam sendo discriminados. Júlia defendia o direito da mulher se separar do marido, e hoje vemos mulheres sendo assassinadas por ex-companheiros. Júlia defendia que se um homem podia ter amantes, a mulher também poderia. Até 2005, o adultério era considerado crime no Brasil. Júlia advogava que o casamento deveria ser como um contrato comercial. Se desse certo, renovava o contrato. E apesar de retrógrado, até hoje muitos pais escolhem com quem a filha deve casar. Júlia também critica a urbanização descontrolada da cidade e, mais importante, a violência policial nas zonas periféricas do Rio de Janeiro, que hoje parece um Estado em guerra.
Apesar do título “Machado de Assis de saia”, Júlia Lopes de Almeida não foi tão difundida na educação brasileira de língua portuguesa/literatura. Por que isso aconteceu/acontece?
Júlia era uma autora popular entre os leitores de sua época e ficou quase 80 anos no ostracismo. Isto em parte é um reflexo do movimento modernista, que em 1922 propôs uma mudança radical nas artes brasileiras e em especial na literatura, tornando-a uma exposição maior das raízes naturais do Brasil, seu povo formador e originário. Os autores que faziam sucesso até então, como a Júlia, foram acusados de seguir um modelo francês de literatura, falando só da sociedade e suas mazelas, de ricos e do sonho da ascensão social, da tragédia, da perda de posição e da riqueza. Com a morte de Júlia, esse novo grupo passou a tomar conta do que era publicado e que precisava ser lido. Livros como “Macunaíma”, de Mário de Andrade, passaram a ser o novo modelo a ser buscado. E tudo o que veio antes deixou de ter valor.
Mas não podemos esquecer que Júlia, junto com sua irmã Adelina Lopes Vieira, publicou o livro “Contos Infantis” em 1886, sendo adotado pelas escolas até 1927. A partir da década de 30, a literatura infantil passa a ser representada por Monteiro Lobato com Reinações de Narizinho e o Sítio do Pica-pau amarelo, num tom mais regionalista e com as lendas brasileiras, como o saci, a cuca e a mula sem cabeça.
Passados 100 anos desse movimento modernista, Júlia está sendo redescoberta. Seus livros, como “A Falência” e “Ânsia Eterna” passaram a ser leituras obrigatórias para o vestibular. Sem desmerecer os demais, agora Júlia anda lado a lado com Machado de Assis, o autor mais lido do Brasil, que tem um estilo próprio, que agrada também aos leitores de Júlia. Nos próximos anos, Júlia deve ser cada vez mais adotada e deve se lida junto com Machado, pois além da semelhança de estilo em algumas obras, a bibliografia dos dois é o reflexo de uma época importante na formação do Brasil Grande, depois da virada do século XX.
O que na vida de Julia influenciava nas suas histórias?
Júlia sempre afirmou que suas obras eram totalmente fictícias. Apesar de muitos tentarem ligar seus personagens a pessoas que ela conheceu, ela dizia que nunca se baseava especificamente em ninguém para escrever suas obras. É claro que algumas características são indiscutivelmente ligadas ao grupo que ela frequentava e com quem convivia, mas Júlia criava livremente, sem se prender a estereótipos. Talvez por isso seus personagens sejam tão fortes. Ninguém era perfeito, e o leitor se identifica com as falhas dos personagens criados por ela. Mas é inegável que sua vida pessoal era um retrato de suas personagens fortes. Júlia era uma mulher ativa, independente, forte, com ideias e posicionamentos bem marcados. As mulheres em seus livros retratam essa força. Elas querem, elas podem e elas fazem. E as leitoras se identificam com isso.
Como era a relação dela com Filinto e como eles trabalharam em conjunto?
Júlia e Filinto eram o casal 20 da literatura brasileira. Casados por quase 50 anos, tinham uma vida muito feliz em conjunto, de total apoio e amor. Formaram uma família sólida e ajudaram grande parte dos escritores contemporâneos. Em sua casa de Santa Tereza, o salão verde recebeu algumas das maiores personalidades da literatura brasileira da época, muitos dos quais fundadores da Academia Brasileira de Letras, como Júlia e Filinto. Os saraus eram frequentados por Coelho Neto, os irmãos Aluízio e Arthur Azevedo, Lúcio de Mendonça, Machado de Assis, Olavo Bilac, Valentim Magalhães.
Filinto foi um importante diretor de jornais, alguns como a Província de São Paulo, hoje o Estadão. Entre suas viagens e atribuições, escreveu alguns livros de poemas, peças e o romance “A Casa Verde”, a quatro mãos com Júlia. Este é o livro favorito dela. Em depoimento à João do Rio, quando este visitou a famosa casa de Santa Tereza, Júlia diz que prefere “A Casa Verde” porque reflete um período de muita felicidade em sua vida e porque foi escrito a quatro mãos com Filinto. Júlia era metódica. Escrevia seu capítulo e ficava cobrando de Filinto o dele, pois eles tinham prazo para entregar para o jornal. Nesta mesma entrevista, Filinto diz que Júlia deveria ter entrado para a Academia Brasileira de Letras, e não ele. E a interpretação desse comentário foi totalmente errônea. Muitos passaram a considerar que Filinto entrou como prêmio de consolação, porque os acadêmicos fundadores, principalmente Machado de Assis, não queriam que mulheres entrassem. Mas quem conhece o casal e sabe de sua história percebe que o comentário de Filinto era para marcar a injustiça feita com a mulher, e elegante como ele era, não admitia que ele tivesse entrado sem ela. Essa injustiça deveria ser corrigida e os dois deveriam ter sido membros fundadores da ABL.
Quais outras autoras se relacionam com a obra dela?
É uma questão muito pessoal. Falando em obras primeiro, três romances foram publicados muito próximos, e vejo semelhanças marcantes entre os livros Família Medeiros (1891), de Júlia Lopes de Almeida, Encarnação (1877) de José de Alencar, e Ressurreição (1872), de Machado de Assis. São três histórias românticas onde as personagens femininas são muito parecidas.
Entre as autoras, Júlia tem um estilo único. São mais de 50 autoras que poderia citar, mas as três Júlias são um bom começo para quem quiser descobrir as grandes escritoras brasileiras: Francisca Júlia (1874-1920), principalmente seus livros de poesia Mármores e Esfinges; e Júlia Cortines (1868-1948), com seus Versos – Vibrações. Para citar outras que precisam ser redescobertas, me perdoando por alguma falha, sugiro Narcisa Amália, Carmen Dolores, Nísia Floresta, Emília de Freitas, Maria Firmina dos Reis, Ana Luísa de Azevedo Castro.