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Claudia Piñeiro: “A sociedade é sempre um personagem nas minhas histórias”

Em uma entrevista exclusiva, autora comenta sobre temas como literatura, direito das mulheres e expectativas para evento literário em São Paulo

Por Pâmela Carbonari
Atualizado em 15 jun 2024, 18h33 - Publicado em 15 jun 2024, 08h35
Entrevista com Claudia Piñeiro: “a sociedade é sempre um personagem nas minhas histórias”
Autora, roteirista e dramaturga argentina, Claudia Piñeiro, comenta sobre questões feministas abordadas em suas obras, dentre elas, Catedrais, lançado em 2020 (Alejandra López/CLAUDIA)
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Há 6 anos, a escritora, roteirista e dramaturga argentina Claudia Piñeiro discutia sobre decisão no Congresso que resultou, anos mais tarde, na aprovação e descriminalização do aborto em todo o território argentino.

“Estou aqui porque sou mulher, sou mãe e porque sou escritora. Não posso permitir que vocês, senhores deputados, ministros e até o Presidente, pequem por ingenuidade ao dizer ‘não estou de acordo com o projeto, porque sou a favor da vida’. Vocês estão fazendo uma operação com a linguagem. A linguagem constrói a realidade e estão querendo nos roubar uma palavra. Não nos ofendam mais”, proferiu.

Piñeiro é uma das autoras mais lidas e traduzidas da Argentina. Seus livros falam de temas como maternidade, religião, violência e aborto – assuntos relevantes sobretudo na América Latina, uma das regiões com os maiores índices de feminicídio do mundo e onde as mulheres têm 20% menos direitos assegurados que os homens

Diversas de suas obras ganharam adaptações para o cinema, como As Viúvas das Quintas-feiras (publicado no Brasil pela Alfaguara), vencedor do Prêmio Clarín, um dos reconhecimentos literários mais importantes da Argentina, e Elena Sabe, que foi finalista do Booker Prize em 2022 e acaba de ganhar uma versão em português (editora Morro Branco).

Entrevista com Claudia Piñeiro: “a sociedade é sempre um personagem nas minhas histórias”
A Feira do Livro acontece em entre os dias 29 de junho a 07 de julho na Praça Charles Miller, em São Paulo (A Feira do Livro/Divulgação)

Por aqui, a escritora também está lançando Catedrais (editora Primavera), um romance policial em que as circunstâncias da morte de uma jovem vem à tona trinta anos depois.

Ela virá ao Brasil junto de suas conterrâneas Camila Fabbri e Camila Sosa Villada para participar da Feira do Livro que acontece entre os dias 29 de junho e 7 de julho na Praça Charles Miller, em São Paulo.

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Nós conversamos com a autora durante sua participação no Festival Literário da América Central, no Panamá. Confira a entrevista:

CLAUDIA: Seus livros falam sobre a condição da mulher. Você acredita que existe uma literatura feminina, um tipo de literatura que apenas as mulheres escrevem?

Claudia Piñeiro: Penso que as mulheres escrevem com muita força. Deleuze tem um texto que se chama “Por uma literatura menor”, que diz que a partir das margens se escreve com tanta gana e com tanto desejo quanto um cachorro cavando um buraco.

Acredito que escrevemos assim, com essa força. Hoje são literaturas que interessam, e é importante lembrar nem todas as mulheres escrevem sobre as mesmas coisas. Na Argentina, por exemplo, temos Mariana Enríquez, Selva Almada, Gabriela Cabezón Cámara que são muito lidas e escrevem sobre temáticas distintas entre si, mas escrevem livros que apenas uma mulher poderia escrever.

Por exemplo, Selva Almada neste momento é finalista do Booker Prize com um livro em que os protagonistas são homens. É o olhar de uma mulher sobre este mundo, esta masculinidade, uma maneira de enxergar as coisas que é muito da Selva Almada. Em contrapartida, na disputa ao prêmio, está o brasileiro Itamar Vieira Júnior cujas protagonistas são mulheres.

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Entrevista com Claudia Piñeiro: “a sociedade é sempre um personagem nas minhas histórias”
Autora argentina Claudia Piñeiro durante sessão de autográfos no lançamento de sua última obra (Instagram @claudiapineiroescritora/Reprodução)

Não existe isso de literatura para mulheres. É uma contradição. Nos ensinaram a ler histórias sobre protagonistas homens. E nós não nos negamos a ler Carta ao Pai, de Kafka, porque é a história de um filho e de um pai. Não pensamos que é apenas para eles, por se tratar de dois homens.

Mas quando apresentam um livro de uma mulher e sua filha a um homem, eles pensam que não é para eles. O universal foi construído a partir do homem e não da mulher. Isso está mudando e cada vez mais homens leem histórias que, até pouco, pareciam destinadas às mulheres, mesmo que não fossem. Essas fronteiras estão se desfazendo, felizmente.

CLAUDIA: Você é uma ativista dos direitos das mulheres. Isso te motiva a escrever? Você escreve para que a sociedade mude, para que as pessoas vejam a si mesmas, para mostrar o que fingimos não ver?

Claudia Piñeiro: Minha motivação é contar histórias, pensar personagens, buscar as palavras mais adequadas, usar a linguagem. Sempre contar uma história, pode ser que essa história provoque ou não alguma dessas coisas que você mencionou.

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Mas não escrevo para mudar a sociedade, mandar uma mensagem a alguém ou para levantar questões um pouco mais filosóficas, o que quero é contar uma história que seja interessante.

CLAUDIA: Mesmo assim, seus livros abordam questões como maternidade, violência e amizade a partir de perspectivas muito atuais. Como essa urgência em discutir o presente entra no seu trabalho?

Claudia Piñeiro: Com exceção de um dos meus romances, todos se passam no aqui agora em que escrevo. Catedral, por exemplo, é a história de uma jovem que morreu há 30 anos e os personagens seguem tentando entender o que aconteceu com ela.

Meus personagens sempre vivem no aqui e agora que eu vivo e se deparam com coisas que estão no presente. A sociedade é um personagem a mais nas minhas histórias. Nada do que é narrado poderia ser narrado sem narrar a sociedade onde a história se desenrola.

Em Catedrais, isso fica muito claro. Grande parte do que acontece com Ana tem a ver com situações geradas por uma sociedade que tem certas hipocrisias e certos manejos com relação aos direitos das mulheres. Não vou dar detalhes para não dar spoiler, mas a sociedade é um personagem a mais dentro de Catedrais, como em todos os meus romances. 

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CLAUDIA: Você participou ativamente das discussões sobre a legalização do aborto em 2020 e o tema aparece em vários de seus livros. Como a aprovação dessa lei te afetou?

Claudia Piñeiro: A questão do aborto sempre me tocou profundamente, porque a situação da mulher no mundo me afeta, e essa é uma das questões que limita a condição da mulher: poder decidir quando quer ter um filho e quando não. Quando escrevi Catedrais, eu já vinha falando desse tema há algum tempo.

Mas, como durante 2018 estive acompanhando a lei de interrupção voluntária da gravidez, que só foi aprovada dois anos depois, eu sentia que talvez alguém pensasse que eu estava escrevendo sobre isso por causa do debate sobre a lei.

Durante a escrita do romance, queria levar a personagem para outro caminho. Mas era inevitável, tinha que estar presente. Me acalmei ao pensar que era algo que já me acompanhava há muito tempo. Um dos temas que veio dos anos de militância e entrou no romance foi a hipocrisia de alguns personagens dentro da Igreja Católica.

Nós, mulheres do movimento, íamos com atrizes, jornalistas e escritoras, participar das discussões e muitas vezes os senadores e deputados reconheciam o aborto como uma questão de saúde pública, mas nos respondiam: “Eu concordo com a lei de interrupção voluntária da gravidez, mas se eu votar a favor, quando voltar para minha província, o bispo vai me ligar e me repreender. Ou, se eu votar a favor, quando for à missa com meus filhos, o padre vai falar mal de mim no púlpito, na frente dos meus filhos.”

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Era muito desagradável ouvi-los contando isso, sentir que questões importantes eram moedas de troca. Supõe-se que somos um estado laico, mas, no fim das contas, a Igreja tem muito peso. Quando estávamos lutando por essa lei, o Papa, que além de tudo é argentino, disse que aqueles que praticavam abortos eram “sicários de luvas brancas”.

Por mais que digamos que somos laicos, desde os lugares mais altos da Igreja estão sendo passadas mensagens desse tipo e os políticos sabem disso.

CLAUDIA: Qual é a sua expectativa com Catedrais no Brasil?

Claudia Piñeiro: Estou animada para ir à Feira do Livro, especialmente com o lançamento de Catedral. Nas últimas vezes em que fui ao Brasil sempre foi pelo As viúvas das Quintas-feiras. Se passaram muitos anos desde então e acho que o que os dois propõem é muito diferente.

Estou curiosa para ver a reação dos leitores brasileiros. É interessante notar como se lê Catedrais em outros países. Na América Latina, fazem referências ao tema dos direitos da mulher, ao aborto. Enquanto que na Espanha, por exemplo, onde a lei do aborto é de 1985, abordam mais pelo lado religioso, dos preconceitos familiares.

Quero ver como será no Brasil, talvez seja mais próximo da realidade latina. Mas, de todo modo, vocês também têm o peso das igrejas. Então, também me parece que este tema também pode entrar para discussão, não?

CLAUDIA: É bastante provável, Claudia. Já que falamos de Itamar Vieira Júnior no início da nossa conversa, o que você gosta de literatura brasileira?

Claudia Piñeiro: Gosto muito de Clarice Lispector. Na pandemia, me aconteceu algo muito particular. Eu estava com dificuldade em começar a ler coisas novas. Devido ao meu trabalho, recebo uma quantidade enorme de livros, mas me custava muito lê-los.

Então, naquele momento de tanta incerteza, passei a voltar para livros que eu já havia lido. Voltei para os livros de Clarice, de Natalia Ginzburg, lia um parágrafo e aquele parágrafo estava falando comigo. Sobretudo os textos que Clarice publicou em jornais. Como vocês chamam mesmo? Crônicas, isso. Podia abrir qualquer página para ver o que ela tinha para me dizer naquele dia, quase como um oráculo.

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