A tal da clean girl
A mentira da vez é que se não somos jovens, magras, felizes e bem sucedidas, a culpa é mesmo toda nossa — será?
Circula nas redes sociais uma trend chamada that girl. Não, clean girl… Na verdade, vanilla girl. E quem tem o script dessa história, claro, é o TikTok. Acordar cedo, se preparar para o dia com um banho, às 6h30 da manhã, fazer yoga, tomar água saborizada (que vai para o feed do Instagram depois) ou sucos batidos. Ter o seu dia, a sua casa, o seu guarda-roupa, o seu entorno e a sua estética extremamente organizados em tons pastel e sensação de aconchego.
Anotações em journals feitos à mão, com metas de vida e carreira, cabelo penteado e liso. Roupas sem logos e na cartela dos neutros também, óbvio. Pense em muito bege, metodicamente montado para soar casual. Fotos de viagens e partes do corpo (sempre magro ou esculpidamente curvilíneo) expostas. A garota limpinha ou sabor baunilha é um sonho de pessoa. Ela dá conta de tudo e surpreendentemente de forma natural, sem esforços.
Na contramão da estética da maquiagem pesada do começo do Instagram, a clean ou vanilla girl usa um pingo de corretivo, blush cremoso e muito skincare. Sua pele viçosa dispensa produtos em excesso ou os que ofereçam muita cobertura, afinal, ela é jovem, sem linhas e manchas.
Aparentemente, também não tem acne, espinhas ou pelos fora do lugar. Nem mau humor, nem bad hair day, nem crises existenciais. Tem uma tranquilidade de estar no mundo digna de uma herdeira. Todas essas trends foram duramente criticadas por alguns sites, apontando que nada mais são do que garotas jovens, magras, brancas (e loiras, em sua maioria) construindo um lifestyle nas redes sociais que é impraticável na vida real.
Vamos destrinchar essa garota, com os recortes necessários. A vanilla girl é sempre branca e jovial, o que reforça um padrão que já conhecemos há muito tempo — e que abordei por aqui. Uma pele clean girl jamais traria linhas de expressão, flacidez ou manchas, nenhum sinal de que ela tem mais de 22 anos e acesso ilimitado a tudo do bom e do melhor, além de um médico dermatologista a tiracolo.
Seria sujo demais ostentar uma espinha, acne ou sinais do tempo, quase como se fosse possível controlar isso — uma questão de esforço ou rotina, como é vendido nos vídeos que mais viralizaram sobre o assunto. Aliás, a #vanillagirl possui 1.1 bilhão de visualizações, seguida da #vanillagirlaesthetic, com 320,9 mil acessos, sem contar as variações do tema.
A problemática desse tipo de idealização é que ela reforça um padrão elitista e inacessível, além de ser etarista e gordofóbico, coisa que a indústria da moda e da beleza sabem fazer bem. Mas ele faz isso te contando que é possível, sim: só você comprar o guarda-roupa certo, fazer a rotina certa e ter o apartamento certo que vai dar certo.
E, veja, não tem nada de errado em querer se cuidar, em cuidar da sua casa e da sua alimentação, em gostar de meditar ou de ter roupas beges confortáveis que mostram pedaços do seu corpo. Também não tem nada errado em ser magra, branca, jovem ou rica. Não é sobre uma típica garota clean ou vanilla.
É como essa lógica se alimenta do que surgiu pós-pandemia e que se popularizou com a venda de skincare, velas, vibradores e afins, e se junta a um modo de operar elitista e excludente. Um jeito todo de existir que consiste em um gigantesco ritual de autocuidado numa vida simétrica.
Só que a gente sabe o quanto isso, frente a vida real, é daninho. Quem me lê e é mãe, ou é mãe e trabalha, ou trabalha e estuda, ou é só um ser humano que não é herdeiro, entende que a vida é bem mais complexa e caótica que tons de bege. Ainda: em comparação a essas imagens e vídeos de dicas para uma “vida vanila”, a realidade da nossa materialidade sai perdendo. A vanilla girl não paga boletos, nem lava louça ou administra a lição de casa dos filhos enquanto prepara o jantar. Ao contrário, ela nunca está exausta.
O que precisamos nesse momento é de mais uma trend que nos lembre das nossas limitações e do constante medo do fracasso? Quero saber quando vai viralizar a #exaustagirl para eu me beneficiar de milhares de mulheres compartilhando suas angústias e como elas não estão dando conta. Uma grande roda de conversa de manas falando a real.
O problema é que isso jamais será realidade, porque esse tipo de coisa não é atraente para o neoliberalismo, que insiste em nos fazer responsáveis por alcançar o inatingível.