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Diário De Uma Quarentener

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Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.

Você é parte de algo muito maior

Sobre o álbum "Black is King", a escritora Juliana Borges insere o filme dentro de um processo de reconhecimento da sua história e de seus ancestrais

Por Juliana Borges
4 ago 2020, 21h18
 (Divulgação/Disney)
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No dia 31 de julho, a queen-diva-maioral-sou-super-fã Beyoncé lançou o filme, álbum visual, Black is king. E desde 02 de agosto, estamos presos em uma espiral de muitos equívocos e soberbas sobre as imagens e narrativas exploradas e recriadas pela diva pop em sua produção. De verdade? Eu não quero ficar presa a essa narrativa.

De início, eu fiquei com uma raiva feroz diante de audácias que só a mentalidade presa às dicotomias e aos binarismos da modernidade e da colonialidade poderiam formular. Depois, passei ao choque. Não era possível. Eu, que sou uma fã aberta, estava ainda buscando sintetizar tantas informações, tentando descobrir os pontos de conforto e também os de desconforto diante dessa obra – que queiram, gostem ou não, já entrou para a história – enquanto alguns se apressavam tanto em tentar navegar e decifrar águas desconhecidas das produções contemporâneas negras, como das propostas afrofuturistas. Mas, eu resolvi assistir novamente e focar no que algumas letras remeteram em mim, enquanto assisto e reassisto atônita, e entregue em minhas lágrimas, esse filme que, para mim, poderia ser compreendido como uma jornada épica pela redescoberta e pela restauração.

Legado e linhagem. Essas são palavras muitas vezes repetidas por Beyoncé em seu filme, logo nos remetendo a essa busca por reconstruir nossos mitos e identidades, que para a diva são ligadas ao divino. E não são? Em todo o filme, Beyoncé encarna vários arquétipos, se referencia nas potências, forças, energias, representações e significados dos orixás nessa saga que busca efabular sobre o nosso passado, reinventá-lo no presente e apontar, portanto, para outros futuros, de liberdade.

A água, como em outros álbuns visuais de Beyoncé, ressurge como elemento multidimensional, com imenso poder mítico. Nas águas que nossos antepassados foram obrigados a atravessar, passando por várias intempéries e em contato com uma nova terra em que tanto nos seria negado, mas também tanto seria reinventado, criado em potência criativa. Água que também significa purificação e potencialidade de cura, como espaço de fertilidades físicas, históricas e criativas, como espaço de renascimento e de promoção de acesso a um outro mundo: livre, em comunidade, consciência e grandiosidade.

Para começar do começo, importante falar de como Beyoncé apresenta “Bigger” em seu filme. Exatamente como a mãe que segura sua criança que atravessará essa jornada rumo a sua redenção, sobre a recriação do que fomos, sobre o que poderíamos ter sido, sobre o somos em verdade e sobre o que seremos. Beyoncé está, o tempo todo, trabalhando o tempo negando linearidade e restabelecendo teias, a partir das experiências da diáspora.

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“Bigger” é uma letra que me faz chorar porque ela começa forte: “Se você se sente insignificante/ É melhor você repensar e acordar/ Porque você faz parte de algo maior”. Esses versos iniciais logo me lançaram às memórias de minha mãe e de todos os seus ensinamentos.

No primeiro ano do ensino médio, escutei de um professor de história, em plena sala de aula, que “a escravidão não foi tão ruim”. Não fosse as palavras de minha mãe todos os dias, todo o tempo de minha vida, talvez eu tivesse escutado aquilo e baixado a cabeça, mesmo com o desconforto que palavras desse tipo proferidas geram em qualquer pessoa negra. Mas daí o link com “bigger”, porque, em outro trecho, Beyoncé segue dizendo que somos maiores do “que a imagem que eles nos moldaram para ver”. Eu sabia, desde muito pequena, que eu não deveria aceitar passivamente qualquer imagem que tentassem construir de mim, que não fossem as que eu tinha de mim mesma. Palavras de força de minha mãe, representadas por Beyoncé segurando uma criança logo no início de seu filme, proferidas em versos iniciais para que não restem dúvidas a quem assiste de que aquela é uma saga positiva, de que “your skin is not only dark”, ou seja, de que nossas histórias não são apenas sobre negatividade, sobre sofrimento e dor.

“Entenda a verdade sobre essa questão em sua alma/ Olhe para cima e não para baixo e observe as respostas/ A vida é seu direito de nascença e eles esconderam isso em letras miúdas/ Pegue a caneta e reescreva”. Ao cantar esses versos, como uma musa inspiradora anunciando a saga por vir, Beyoncé nos insta a perceber nossa história pela positividade, pelas potencialidades que podemos ser, pela reconstrução de autoestimas negadas, pela reconstrução de passados destruídos.

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Importante lembrar que estamos no país no qual os registros sobre os escravizados foram queimados por ordem do então Ministro da Fazenda Ruy Barbosa, em 1890. Um dos registros do processo escravocrata era o de que os traficantes de escravizados, nos principais portos de África, faziam com que homens e mulheres dessem voltas em torno da “Árvore do esquecimento”, antes de embarcar no Benin. Esse ato seria para destruir memórias sobre suas raízes, suas origens étnicas, seus laços culturais e sociais.

A historiadora Beatriz Nascimento produziu sobre uma travessia do Atlântico que já dava sinais da resistência construída pelos escravizados ao reconstruírem suas identidades, mesmo que esses traficantes buscassem separá-los de seus pares étnicos para que não pudessem se comunicar e construir fugas e rebeliões. A construção de uma identidade amefricana, para dialogarmos com a proposta da antropóloga Lélia Gonzalez (que já apontava que as experiências amefricanas e africanas eram distintas pela diáspora) começa tão logo somos lançados em navios ao mar, cabendo aos sobreviventes dessa travessia a tarefa de reconstruir imaginários, raízes e histórias.

De fato, a narrativa apresentada por Beyoncé não é uma simples glamourização. É uma condução artística com diversas camadas e diálogos, em um processo criativo que envolveu dezenas de artistas, diretores e produtores negros e negras africanos e da diáspora na reconstrução de laços, na efabulação diante do que poderia ter sido uma outra história. É o reconhecimento entre nós, o olhar no olho e ver espelho e força, é nos religar em laços de diversas e múltiplas experiências. É sobre projetar e construir o que queremos e iremos ser e não nos prendermos no que querem que sejamos.

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“O perdão é uma chave porque

estamos lutando por algo bem maior

Você nunca perderá, porque somos vencedores

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Eu serei as raízes e você será a árvore

Passe a fruta que foi dada a mim

Legado, somos parte de algo maior”.

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Legado. Saber que somos parte de algo maior. Assim foi como minha mãe me demonstrou no cotidiano, me fazendo entender que eu sou fruto de um projeto e esforço de minhas tataravós escravizadas e que as histórias de apagamentos me impediram de saber seus nomes; de que sou fruto dos sonhos mais radicais de minhas bisavós Damiana e Joana; de minhas avós Dolores e Romilda; e fruto direto dos sonhos de minha mãe, Claudia. Como raízes e árvores, seguimos conectadas em consciência ancestral para projetar em gerações futuras caminhos grandiosos e livres. Obrigada, Beyoncé, por me fazer chorar com as memórias mais bonitas que tenho de minha mãe.

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