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Por Ana Carolina Coelho. Feminista, mãe, escritora, poeta, dançarina, plantadora de árvores, pesquisadora e professora universitária
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O mito da mãe intelectual

A colunista Ana Carolina Coelho reflete sobre o malabarismo de demandas, como o maternar, realizar tarefas domésticas e mergulhar nas pesquisas

Por Ana Carolina Coelho
Atualizado em 21 fev 2021, 17h02 - Publicado em 21 fev 2021, 12h04

Cena imaginária 1: mulher lendo em uma banheira com sais aromáticos. Há velas em todo o banheiro e há um jazz suave tocando ao fundo. Ela está calma, relaxada e com “todo tempo do mundo”. Cena imaginária 2: a mesma mulher, vestindo uma roupa elegante – talvez um robe de seda, após seu banho relaxante – escrevendo em seu computador, vagarosa, pensativa. O ambiente é climatizado com ar condicionado e ela bebe uma taça de vinho enquanto ouve uma música clássica. Satisfeita consigo, ela termina um texto, come umas fatias de queijo e sorri para a tela ao escrever a frase final.

Acreditem, ambas as cenas me foram descritas por pessoas, hoje minhas amigas, e que me “confessaram”  acreditar totalmente que a vida de uma mulher professora universitária era nesses moldes. Ou seja, que essas cenas faziam parte da minha realidade e das muitas mulheres que produzem pesquisas nas universidades e são, muitas vezes, mães.

As minhas respostas sempre foram sonoras gargalhadas, que não sei até que ponto foram de desespero ou de alívio cômico frente àquilo que chamo de “mito da mãe intelectual”: a mulher que é capaz de maternar, cuidar das atividades domésticas, lecionar, realizar pesquisas, além de diversas outras identidades e tarefas diárias que nos são constantemente requeridas no ambiente universitário.

Vejam bem, separadamente, as palavras: banheira, jazz, velas, livros, relaxada, calma, suave, robe, pensativa e vinho fazem sentido. Eu consigo compreender a essência de cada uma delas. No entanto, em qualquer sentença que elas venham a compor juntas e descrevam uma ação em minha casa, elas se tornarão sinônimo de muito estardalhaço e provavelmente bagunça, protagonizados por uma família que possui crianças pequenas que requerem atenção constante. Velas então, certamente, estão fora de cogitação.

Uma cena mais realista aconteceu exatamente esta semana, quando a falta do Carnaval se abateu sobre minha alma carioca. Embora entenda e apoie as razões da suspensão, pensar no desastre econômico dos desempregos causados pela falta dessa festa “sagrada” nas ruas do Rio e somar isso aos números de mortes anunciados na mídia, em vez das notas dos desfiles, teve um efeito devastador em meu humor.

A cena real da semana aconteceu em dois momentos: a primeira parte foi pela manhã, muito cedo, antes mesmo do Sol entender que precisa amanhecer. Meu pequeno raio de luz apareceu ao meu lado da cama e disse: “Mamãe, a vida já está acordada! Eu consegui tirar SOZINHA a roupa de “mimi”. Levanta e me ajuda e vestir a outra, por favor!” E eu, antes do café – e sequer da possibilidade de elaborar uma frase coerente – me vi de pé comemorando a pequena conquista cognitiva da minha filha.

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Pequenas vitórias. Muitas palmas. Muitos incentivos. E uma criança pelada ainda de madrugada ao meu lado. Depois de uma criança devidamente arrumada, com uma xícara de café na mão pensei que sou privilegiada de muitas formas e, mesmo já tendo ouvido e dançado metade das músicas infantis no YouTube antes das sete horas da manhã, eu, embora muito cansada, deveria começar a escrever. Isso porque no dia anterior, fui alertada de que o prazo de entrega de um capítulo de livro estava estourado e contei com a compreensão de uma editora mulher ao me conceder mais alguns dias para finalizar o texto. Gestos reais de sororidade que fazem toda a diferença. Munida de café e coragem, afinal “a vida já está acordada”, a mãe intelectual encaminhou-se para seu computador ao som de uma canção sobre um pequeno tubarão e sua família, cujo refrão fica o dia todo em nossa cabeça “thuthuthurururu” (Para as mães que me leem: reconhecem? Risadas)

Ao final de uma hora tentando produzir, contei doze interrupções feitas pelas crianças. As razões foram, dentre outras, “quero água”; “quero outra música”; “posso comer tal coisa que está na geladeira?”; “mãe, terminei. Me limpa?” e outras emergências circunstanciais. Ao olhar para o relógio vi que já estava próximo da hora do almoço. Pensei seriamente na banheira, que não tenho, e bebi um copo de água. Larguei o computador e encarei o fogão, e continuei sendo interrompida a cada cinco minutos pelas crianças. Com uma mão nas panelas e outra no celular, fui adiantando outras tarefas acadêmicas que precisava finalizar enquanto o arroz cozinhava.

Pensei em tantas discentes que são mães e enfrentam dificuldades imensas para conseguirem se formar em graduações; nas colegas docentes e muitas histórias que ficaram invisíveis sob o manto desse “mito intelectual” da mãe que tem “todo tempo do mundo”. Especialmente em tempos de pandemia, precisamos pensar sobre essa divisão desigual na economia dos cuidados e na sobrecarga materna. Mães produzem APESAR da exaustão, no limite das forças, adoecidas e cheias de culpas. Em tempos de escolas fechadas ou semi-abertas, é preciso reforçar que “amaternar” é um projeto político de um coletivo que entende que crianças fazem parte da vida da sociedade.

No final desse mesmo dia, uma terça-feira sem Carnaval, aconteceu o segundo momento da cena real: estava conversando com as crianças e minha mais velha pediu que eu contasse uma história “aterrorizante”. Misturando elementos dos contos de fada comecei uma narrativa fantástica sobre bruxas, crianças e mães, um misto de “João e Maria” e “Chapeuzinho Vermelho”.

De repente, fui interrompida pela pequena “miss sunshine” da casa: “Eu não vou com essa bruxa. Eu vou no caminho certo na floresta e quero ir maquiada, por favor, tá mamãe?” Eu tinha escrito uma única lauda, feito dezenas de atividades na casa e atendido uma série de demandas do meu trabalho. Acho que se respirei, o fiz no automático. Mesmo assim, naquele momento, eu ouvi o jazz e vi as luzes das velas na voz da minha menor e na risada aberta da minha filha mais velha. A cena real tem muito menos “glamour”, muito mais suor e vale cada dia. Falei: “Nenhuma bruxa vai levar vocês MESMO! Mamãe não deixa!” e recebi um abraço atrapalhado de ambas. Elas foram dormir felizes, depois que prometi que brincaríamos de “maquiagem” no dia seguinte. Mais uma tarefa para a lista de amanhã. Enfim….

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Ser mãe é uma parte de mim e não o todo. Minha vida, sonhos e aspirações não se resumem a isso. Eu voltei para meu computador beirando a falta de consciência, sem nenhuma magia cênica e com o eco das risadas infantis vibrando mais forte que os tambores de um bloco de Carnaval dentro de mim. E assim, escrevi mais três laudas madrugada adentro, afinal a “vida acorda cedo aqui em casa”.

Eu sou uma mãe, professora, orientadora, historiadora, escritora, cronista, poeta e dançarina fazendo o meu melhor, sempre. E planto árvores e cuido de bichos.  As cenas imaginárias alimentam o “mito” que vivemos acima das dificuldades da humanidade. Eu posso afirmar que sou bem humana: repleta de medos, alegrias, sonhos, cansaços e inseguranças. Quem precisa de banheira e sais de banho? Eu e todas as mães, certamente, merecemos. Mas teremos que lutar para espantarmos todas as bruxas, preconceitos e mitos sobre mães que existem em nossa sociedade. Dias em que mães serão “amaternadas” virão!

Vamos conversar?

Se quiser entrar em contato comigo, Ana Carolina Coelho, mande um e-mail para ana.cronicasdemae@gmail.com ou direct no meu Instagram (@anacarolinacoelho79). Será uma honra te conhecer! Quer ler as outras Crônicas de Mãe ? Clique aqui e acompanhe as próximas!

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