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A tarde que mudou tudo: como decidi pela transição de gênero

Em 2019, Caê entrou numa sala de cinema sem saber que, após aquela sessão, passaria a ter a vida que sempre lhe pertenceu

Por Depoimento a Kalel Adolfo Colagem Eduardo Pignata
10 jun 2022, 09h26

O jornalismo me aproximou da pauta LGBTQIA+. Na família, ninguém fez o ensino superior completo, então a pressão era grande. Não tinha vontade de entrar na universidade até participar das ‘manifestações de junho’, em 2013. Eu sou cria da Vila Nova Cachoeirinha [Zona Norte de São Paulo], morei 28 anos na quebrada, e isso moldou a minha politização. Ali nas ruas, reivindicando o direto ao transporte, percebi que o que acontecia de fato não era transmitido na imprensa. ‘Preciso ser jornalista’, pensei. Em agosto seguinte, entrei na faculdade. Os direitos humanos sempre estiveram presente e, para o meu TCC, decidi escrever um livro sobre transsexualidade. Enquanto entrevistava meninos transgênero, pensava ‘Nossa, parece a minha história. Mas devo estar confundindo as coisas’. Eu estava zero pronto.

Quando concluo o curso, em 2017, perco a minha mãe para um suicídio. Já estava no processo de me descobrir como um homem trans, mas não tinha como vivenciar a transgeneridade. Era muita coisa. Precisei ser paciente. Dois anos e meio depois, em dezembro de 2019, passei por outro momento essencial na minha jornada: assistir Bixa Travesty, de Linn da Quebrada. Eu devo minha vida à ela. Entrei na sala de cinema batendo na tecla de ser uma pessoa cis, e saí com a certeza de que eu era trans.

Uma cena, especificamente, me marcou muito. Nela, Lina, Jup, Raquel e Assucena refletem sobre o uso de hormônios e as cirurgias. Se elas, que são nomes conhecidos, têm essas questões, está tudo bem eu não saber como vai ser minha vida. Mas, antes, precisava tirar essa amarra e começar a contar para as pessoas quem eu sou.

Quando isso acontece, minha carreira deslancha. Eu não estava me amando, e era isso que faltava. Não adianta a gente falar que o Brasil é o país que mais mata a população transsexual, sem trazer a história de pessoas trans vivas. Percebi que essa era uma das coisas que me impedia de transicionar: eu tinha medo de vivenciar apenas coisas ruins. Perder o emprego e parte da família, não ter afeto romântico, morrer a qualquer instante… Quem vai querer a transição achando que essa é a realidade?

Eu cresci nos anos 90, não se falava sobre isso. Talvez, se tivéssemos os avanços de hoje, eu poderia ter me entendido antes. Mesmo assim, não olho para o espelho o dia inteiro e penso que me odeio. Eu tive pouquíssima disforia. Por não odiar o meu corpo e a sociedade dizer que pessoas trans o odeiam, cheguei a pensar que talvez não fosse trans. Além disso, até para ser alguém trans, a cisgeneridade define como deve ser: o homem trans deve reproduzir o ideal da masculinidade. Porém, eu nunca vivi nesse imaginário. Foi difícil quando eu decidi por essa identidade, historicamente sempre fui feminista. Eu iria me transformar naquilo que jurei destruir? Por isso é tão necessário reivindicar, desconstruir e visibilizar isso para, quem sabe, daqui 10 anos poder me dizer alguém não-binário e minha vó entender. Aliás, ‘Caê’ [abreviação de Caetano] veio deste entendimento: neutro, pois não fazia ideia se iria me identificar enquanto pessoa não-binária ou trans.

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Me chame pelo meu pronome

Há nove meses, fiz a mastectomia, não porque a sociedade dizia que, para ser homem, eu não podia ter seios. Eu fiz por mim. Gênero é uma coisa, sexualidade é outra. Mas é doido, antes de perceber que eu era um cara trans, eu tinha uma expressão de gênero masculina, e a galera só me chamava no masculino. Agora que peço isso, as pessoas fazem questão de usar o feminino. Não importa a cirurgia, a hormonização… Se o indivíduo souber que você é trans, e for transfóbico, ele vai errar o pronome de propósito. Eu não quero parecer cis, a passabilidade [o passar -se por] traz segurança. Mas continuo com medo de ser estuprado na rua.

Até pouco tempo, fui na farmácia com a caixinha de testosterona na mão, o documento escrito ‘Caetano’, e os funcionários me chamaram de ‘Senhora Caetano’. O que a Lina passou no BBB, passamos todos os dias. Mas o meu conselho para quem estiver pensando em transicionar é: vá, mesmo que tenha medo.
Não dá para deixar a violência nos travar. Cuide da sua saúde mental, se a cabeça não estiver boa, a gente não aguenta.

E é possível ser feliz. Vamos aproveitar essa onda que as empresas perceberam que fica bonito ter pluralidade entre os funcionários. Se fortaleça, tenha uma rede de apoio. A família está em quem te acolhe. Precisamos ir para frente, para a sociedade ver e falar ‘As pessoas trans são foda’. Sim, estamos conquistando as coisas, e não tem volta.”

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