A importância do feminismo interseccional na luta pelo avanço dos direitos
Pesquisadoras e ativistas falam sobre como levar a consciência política para a prática e fugir do comodismo do debate
Os debates sobre feminismo estão cada vez mais presentes nas redes sociais, nas novelas, nos jornais, no dia a dia. Mais da metade das brasileiras (51%, de acordo com uma Pesquisa Ipsos de 2022) se consideram feministas.
Embora seja inegável a importância de que a pauta se consolide no cotidiano, a antropóloga Angela Figueiredo, coordenadora do Coletivo Angela Davis, na Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), acompanha o fenômeno com certa preocupação. “Temo que essa popularização cause um afastamento entre discurso e consciência política na prática, que haja um comodismo e que a luta fique apenas no debate, quando o feminismo é uma proposta de transformação da realidade”, explica.
Pioneira no estudo de estéticas negras no Brasil, Angela é uma pesquisadora e ativista do feminismo negro, um movimento que ela define como “a aliança entre teoria e prática”, tanto na academia quantos nos movimentos sociais. “Envolve uma crítica ao capitalismo, que é a base das desigualdades de gênero, raça e classe”, diz.
E é da análise e compreensão desses marcadores sociais na vida de minorias que surge o que se conhece como feminismo interseccional: aquele que reconhece os vários sistemas de opressão que se sobrepõem e demonstram que racismo, sexismo e estruturas patriarcais são inseparáveis e afetam diferentes mulheres de diferentes formas.
Foram justamente os movimentos feministas negros dos Estados Unidos e do Reino Unido que, entre os anos 1970 e 1980, fomentaram os primeiros debates sobre interseccionalidade. Eles combatiam a premissa do feminismo hegemônico (branco e cisgênero) de que todas as mulheres sofrem exatamente da mesma forma com as opressões do patriarcado.
Em 1989, o feminismo interseccional foi definido por Kimberlé Crenshaw, professora estadunidense especializada em questões de raça e gênero. Mas Angela Figueiredo lembra que, muito antes disso, Lélia Gonzalez já falava no Brasil contra a homogeneização do que é ser mulher, sem considerar raça, classe e gênero.
Segundo Angela, a realidade do nosso país é um exemplo prático da importância desse feminismo que considera várias opressões além do gênero. “São sete milhões de mulheres negras trabalhando como empregadas domésticas. Ou seja, essa ainda é a principal via de entrada dessas mulheres no mercado, quase inteiramente informal.” Outro dado mais brutal: seis em cada 10 vítimas de feminicídio em 2021 eram negras, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Bruna Benevides, especialista em gênero e diversidade sexual e secretária de Articulação Política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), considera que o feminismo negro abriu as portas para a luta por direitos de todas as mulheres.
“O transfeminismo bebe muito dessa fonte e potencializa a desconstrução da ideia de que existe uma mulher única”, afirma. Principalmente no país que, há 13 anos, lidera o ranking global de assassinatos de pessoas trans e travestis, de acordo com relatórios da organização Transgender Europe (TGEU).
“Enquanto mulheres brancas reivindicavam, por exemplo, o direito ao voto, mulheres negras sempre reivindicaram direitos essenciais, como o direito à própria vida. Ao nos somarmos a elas, engrandecemos a luta feminista”, continua Bruna.
A pesquisadora afirma que a “interseccionalidade sempre foi a realidade de mulheres trans e travestis”, principalmente a partir do conceito de dororidade (em vez de sororidade), que dá conta das dores que unem essas mulheres para além do machismo.
Angela Figueiredo considera que se trata de “um feminismo de vanguarda”, no qual a comunidade está em foco, em vez do individual. “Ele não beneficia apenas as mulheres negras, por exemplo, mas toda a sociedade, pois traz uma agenda que tem a ver com educação, saúde, direito à moradia, violência policial etc.”
“Vivemos em uma sociedade crítica de diálogo, e é preciso ampliar visões de mundo, olhar umas para as outras de maneira aberta.”
Amanda Kamanchek
Amanda Kamanchek, especialista em gênero e diversidade, concorda: “O princípio ético de existência do feminismo é de que a melhora tem que ser para todos”.
Ela celebra que a maior compreensão da interseccionalidade tenha aberto espaço, nos últimos anos, para questões ainda mais ampliadas (e urgentes!), como o ecofeminismo, o feminismo indígena, os movimentos de mulheres imigrantes, entre outros.
“As conquistas de direitos e espaços de poder chegam muito mais rápido para mulheres brancas. Vivemos numa sociedade crítica de diálogo, e é preciso ampliar visões de mundo, olhar umas para as outras de maneira aberta.”
Uma das pautas identitárias que vêm crescendo nesses debates é o feminismo asiático. Carol Ricca, artista multidisciplinar e pesquisadore (é pessoa não-binária), é um dos nomes mais expoentes nesse movimento. Em 2016, criou a Lótus, primeiro coletivo feminista pelo viés asiático no Brasil.
“Cresci com mulheres fenomenais, que abandonaram suas vidas, familiares, língua materna e cultura, para se estabelecer em novo território. Mas essa resiliência forçada também resultou em mulheres que abandonaram muito cedo seus sonhos e desejos para a manutenção da família. Então, quando me tornei feminista, mais percebia a narrativa de minha mãe, avós, tias, como extensões da minha própria história”, conta.
Carol entendeu que a opressão patriarcal opera numa via de mão dupla para as mulheres asiáticas: enquanto nas ruas a violência de gênero segue os padrões de uma cultura brasileira (com o assédio escancarado, por exemplo), dentro das casas operam abusos no contexto asiático, como o silenciamento e a subserviência.
Por isso, na Lótus, se discutem e compartilham vivências relacionadas à fetichização e hipersexualização de corpos asiáticos femininos, além dos efeitos da colonização na construção identitária das diversas culturas imigrantes que existem no Brasil.
“Esse debate pode contribuir para o repertório sobre relações raciais no Brasil, expandindo a discussão sobre interseccionalidade e decolonialidade, especialmente refletindo sobre migração e nação. Um olhar sobre tais vivências, para além do exotismo e estereótipo, possibilita um alargamento de nossos referenciais sobre sociedade”, defende Carol.
Feminismo na prática
Mas como ir além do discurso e viver uma vida feminista? “Isso passa por um cotidiano menos individualista e mais focado no bem coletivo”, responde Amanda Kamanchek.
No caso de quem tem o poder de empregar outras pessoas, por exemplo, é importante garantir bons salários e diversidade nos espaços de trabalho. E todas temos a obrigação de pressionar socialmente pelo fomento de políticas públicas de acesso a direitos.
Na construção de feminismos verdadeiramente inclusivos, Bruna Benevides lembra da importância de combater a transfobia. Ela convoca “feministas de renome, tanto na academia quanto em movimentos populares” a se posicionar política e publicamente sobre esse tema. “Afinal, responsabilidade intelectual é muito importante”, diz. E acrescenta: “Luta é luta. Injustiças são injustiças, e precisamos lutar contra todas elas”.