Descriminalização da maconha: o que a decisão representa para o Brasil?
Diferente do que muitos pensam, descriminalizar a cannabis não é uma questão de “liberar as drogas”, mas, sim, recuperar a dignidade de milhões de cidadãos
O STF (Supremo Tribunal Federal) está a apenas um voto de formar maioria a favor da descriminalização do porte da maconha, com o placar da ação em 5 a 1. A pauta começou a ser analisada pelo tribunal em 2015, mas permaneceu paralisada por anos após uma série de contratempos, incluindo a morte do então ministro Teori Zavascki, seguida pela substituição por Alexandre de Moraes, fatores que atrasaram o surgimento de uma decisão oficial.
Mas, agora, tudo indica que a descriminalização está prestes a sair do papel, com o julgamento sendo retomado em agosto deste ano. Desde lá, duas sessões já ocorreram, com Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e Rosa Weber votando a favor, enquanto Cristiano Zanin votou contra. O próximo passo é aguardar o parecer do ministro André Mendonça, que, após pedir vista, ganhou um prazo de 90 dias para devolver o tema à pauta.
Enquanto isso não acontece, entrevistamos duas especialistas que esclarecem todas as dúvidas sobre o assunto: Patricia Villela, advogada, empresária e uma das grandes defensoras da revisão da Lei de Drogas no Brasil, e Nathalia Oliveira, socióloga e cofundadora da “Iniciativa Negra”, primeira organização negra da sociedade civil a atuar por meio de ações de advocacy em direitos humanos. Confira:
O que muda com a descriminalização da maconha?
O mais importante neste momento, segundo Patrícia Villela, é que o brasileiro entenda claramente o que está sendo proposto: “Descriminalização significa que a conduta deixa de ser crime, não sendo passível de punição no âmbito penal. Com isso, o porte de maconha, dependendo da quantidade, perde o peso da criminalidade”, esclarece. Até o momento, essa parametrização quantitativa ainda não foi definida.
Para o Brasil, isso é extremamente importante, pois representa uma diminuição na superlotação de presídios. “Hoje, temos mais de 830 mil pessoas presas, sendo que a maioria delas foi encarcerada por um crime de tráfico”, explica.
E por que um crime de tráfico? De acordo com Villela, essa categorização acontece pela ausência de uma legislação que diferencie o consumidor do traficante: “Tudo é colocado no mesmo bolo”, pontua a advogada.
Perfil de presos é não-branco e com baixa escolaridade
Essa ausência de regulamentação, de acordo com uma pesquisa divulgada pelo SENAD (Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas) e pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), afeta especialmente pessoas com baixa escolaridade, não-brancos e portadores de pequenas quantidades de drogas. Um segundo levantamento feito através dos mesmos institutos demonstrou que 30% dos réus por tráfico de drogas admitiram que as substâncias apreendidas eram destinadas ao uso pessoal.
“Infelizmente, quem decide o destino do indivíduo é a palavra do policial e o inquérito na delegacia, e geralmente a definição é por tráfico. Portanto, quando o processo chega ao judiciário, já está rotulado como crime de tráfico, com todo o processo penal seguindo as diretrizes desse tipo de encaminhamento. A consequência disso é continuarmos prendendo e prendendo, sem realmente resolver o problema”, declara Patrícia.
Vale lembrar que um a cada cinco brasileiros maiores de idade afirma já ter fumado maconha alguma vez na vida, segundo dados divulgados recentemente pelo Datafolha.
E o que diz a oposição?
“O Sistema de Saúde não dará conta do excesso de consumo provocado pela descriminalização”, afirmam os conservadores. Este argumento, segundo Nathalia Oliveira, é claramente infundado: “A oposição sempre liga o uso de drogas a uma questão patológica, como se as pessoas fossem consumir maconha e, imediatamente, precisar correr para o hospital em busca de um tratamento. Não é necessariamente assim. Podemos vir a notar um aumento no consumo, mas que não eleve o surgimento de doenças”, pontua.
Patrícia Villela complementa dizendo que, mesmo que houvesse uma intensificação de atendimentos no Sistema Único de Saúde (SUS) provocados pelo aumento de consumo, o órgão público conseguiria suprir a demanda facilmente: “Quando falamos que o nosso sistema de saúde não daria conta, o que inexiste é vontade política, pois temos servidores exemplares que provaram o contrário nos tempos de Covid-19.”
Inclusive, no Canadá, segundo país do mundo a legalizar o uso adulto da maconha, o governo implementou uma alternativa extremamente eficaz para combater os danos à saúde provocados pela carburação da planta: regulamentar produtos alternativos ao fumo, como comestíveis, vaporizadores e bebidas infusionadas com CBD ou THC. A resposta foi positiva, com o aumento no consumo pós-legalização não gerando impactos notáveis à saúde da população. Sendo assim, o que não faltam são medidas que tornam a regulamentação responsável.
Álcool mata mais do que a maconha
Outro dado interessante: uma pesquisa publicada na revista científica norte-americana “Scientific Reports”, em 2015, comprovou que a maconha é quase 144 vezes menos mortal do que o álcool. Também é consenso entre a comunidade médica que não é possível morrer de overdose consumindo cannabis — já com o álcool, a probabilidade de uma fatalidade diante do consumo excessivo é alta.
“O álcool é uma droga mortal acessível e socialmente aceitável. E, nesta pauta da descriminalização, precisamos deixar muito claro que não estamos falando do baseado adquirido na boca de fumo. Os reacionários acreditam que são as mesmas coisas, a fim de provocar confusão. Contudo, muitas análises comprovam que não há sequer cannabis em um baseado e, caso houver, é em mínima concentração. Há muitos ácidos, como a ureia, que fazem o ‘barato’ acontecer, não se tratando nem de THC. O contrário seria possível apenas em um produto de boa qualidade, legalizado e regulamentado”, compartilha Patrícia.
Origem do proibicionismo no Brasil
Também é essencial relembrar que o proibicionismo está intimamente ligado à motivações racistas. É o que explica a socióloga Nathalia Oliveira: “O Brasil foi pioneiro em proibir o consumo de maconha ainda no século 19, assumindo a vanguarda do atraso. O motivo disso? O uso vinha sendo associado a sujeitos escravizados, ou seja, pessoas pretas.”
Ela conta que, próximo ao período de abolição, inúmeras leis que poderiam vir a criminalizar indivíduos negros começaram a ser desenvolvidas, incluindo a proibição do “Pito do Pango” [como a maconha era conhecida na época] e a “Lei da Vadiagem”, que prendia cidadãos que passassem grandes períodos de tempo sem um ofício. Nem é necessário apontar os maiores afetados por esta regra.
“Até hoje, as abordagens policiais se concentram em sujeitos negros, moradores de periferias e favelas. Normalmente, esses indivíduos são enquadrados com baixas quantidades de cannabis e uma mínima quantia em dinheiro. Isso apenas comprova que estamos prendendo peixes pequenos, pessoas pobres que muitas vezes veem no tráfico um meio de sustento de suas vidas”, compartilha Nathalia.
O que a descriminalização representa para o uso adulto e medicinal?
Na descriminalização, de acordo com Patrícia, as pessoas que fazem o uso adulto, dependendo da quantidade que portam, serão consideradas usuárias e não traficantes (como já dito anteriormente). Por isso, é essencial criar-se um parâmetro quantitativo.
Agora, com a legalização (que ainda permanece uma incógnita no país), estes indivíduos poderiam ter acesso a uma erva de melhor qualidade, pois, hoje, o famoso “baseado”, de procedência duvidosa, contém inúmeras substâncias tóxicas, como a amônia, além de níveis baixíssimos (ou inexistentes) de componentes como o THC e o CBD.
Villela também pontua que a descriminalização quase não beneficia o uso medicinal: “O que precisamos para o uso médico é a legalização do Projeto de Lei 399/2015, pois essa emenda possui todo um arcabouço jurídico, estabelecendo regras em relação ao plantio, acesso e pesquisas científicas que visam melhorar remédios e tratamentos a base de cannabis.”
Com a legalização, seria possível criar posologias para medicamentos, nos permitindo saber exatamente quais são os elementos canabinóides presentes naquele produto. “Saberemos se é CBD, CBG, CBN ou THC. Esse último, inclusive, não pode ser demonizado, pois é absolutamente necessário para algumas enfermidades. Então sim, a legalização para o uso medicinal é fundamental”, declara.
Legalização está longe de acontecer?
Villela finaliza afirmando “ter fé” de que a legalização aconteça nos próximos dois anos, com a descriminalização sendo o pontapé inicial deste processo: “Este tem sido um movimento absolutamente democrático, pois na última década, a pauta da cannabis nunca foi calada, ganhando um caráter humanitário, de vida e saúde, que ainda pode trazer benefícios econômicos para esse país.”