Agrotóxicos e embates: por que a alimentação brasileira está em risco
Ataques ao Guia Alimentar para a População Brasileira, rótulos pouco explicativos e o uso de agrotóxicos transformam nossos pratos em zona de guerra
Em 2010, ao examinar crianças no ambulatório do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, um dos mais conceituados da América Latina, a nefrologista pediátrica gaúcha Noemia Goldraich percebeu que havia algo errado. Seus pacientes de 6 anos estavam com pressão alta, indicador que nem sequer é avaliado nessa faixa etária, exceto quando há suspeita de doenças nos rins.
“Isso é doença de adulto! Fiquei confusa”, lembra a médica. Como se tratava de um hospital ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Noemia e sua equipe iniciaram uma pesquisa abrangente para avaliar mais de 2,6 mil alunos de escolas públicas de ensino infantil da capital gaúcha.
A pesquisa foi concluída em 2015 e, ainda hoje, o resultado choca Noemia. Dos estudantes com idade entre 2 e 6 anos avaliados, 40% estavam acima do peso; cerca de 16% tinham pré-hipertensão; e 10% foram diagnosticados hipertensos. O motivo? “Comiam mal”, conclui Noemia.
O consumo de alimentos ultraprocessados, como salgadinhos, macarrão instantâneo, salsichas, nuggets, bolachas, refrigerantes, sucos e iogurtes açucarados, levava à ingestão de altas doses de açúcar, gordura e sódio, além de conservantes e outros aditivos químicos. “A relação entre o consumo alimentar e o desenvolvimento de doenças crônicas está bem amparada em uma série de estudos”, explica a médica.
Dados do Ministério da Saúde mostram que os índices de sobrepeso e obesidade se alastraram também entre os adultos. Em 2006, 42,6% dos brasileiros estavam com sobrepeso, ou seja, apresentavam índice de massa corporal (IMC), que leva em conta peso e altura, entre 25 e 30.
Com um aumento de até 2% ao ano, a taxa superou os 55% em 2018. O índice de obesidade também subiu, de 11,8% para 19,8% em 12 anos. Hoje, um em cada cinco brasileiros está obeso. Entre os quatro restantes, três brigam com a balança.
A pesquisa de Noemia detectou um problema preocupante que anos antes havia motivado um dos esforços mais bem-sucedidos da ciência brasileira, a criação do Guia Alimentar para a População Brasileira, lançado pela primeira vez em 2006 e atualizado em 2014.
Diferentemente dos guias centrados na contagem de nutrientes, uma sopa de letrinhas que confunde leigos, o documento vai direto ao ponto. Classifica os alimentos conforme o grau de processamento, desde os in natura até os ultraprocessados, dando preferência para os do primeiro grupo.
No topo da lista, devem estar frutas, legumes, verduras, carnes e os minimamente processados, como o clássico feijão com arroz. Quanto aos alimentos considerados processados – caso de queijos, pães e enlatados –, recomenda-se moderação.
O sinal vermelho acende para os ultraprocessados. O guia indica uma forma fácil de identificá-los nas prateleiras. Basta olhar o rótulo e contar o número de ingredientes. Evite consumir aqueles com mais de cinco ingredientes – o que significa que foram altamente modificados pela indústria e contêm aditivos químicos, como conservantes. Você nem precisa entender o que está escrito. Simples, não?
Não para por aí. O documento mostra como o que comemos tem a ver não só com a nossa saúde mas também com a saúde do planeta. “A revisão de 2014 já antecipa de forma clara como o ato de comer é amplo e interfere no meio ambiente. Traz informações, por exemplo, sobre a relação entre consumo de carne e questões ambientais”, diz a nutricionista Larissa Seabra, professora do Departamento de Nutrição da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
O impacto do guia, elaborado com a participação dos melhores cientistas brasileiros e com consulta à sociedade civil, foi estrondoso – e incomodou a indústria. O documento, que pode ser baixado na biblioteca virtual do Ministério da Saúde, é, até hoje, usado para orientar os menus de refeições e lanches em escolas públicas, restaurantes universitários e populares, hospitais e até os cardápios das chefs mais badaladas do país, como Bela Gil e Rita Lobo.
“O guia é dirigido principalmente às pessoas. Usa menos termos técnicos e fala de comida. A gente não come nutrientes, mas comida”, explica Larissa. “É como uma bíblia para nós, da alimentação.” No ano passado, um estudo divulgado na Frontiers in Sustainable Food Systems, uma das publicações internacionais mais respeitadas na área de nutrição e sustentabilidade, analisou guias alimentares de diferentes países – entre eles, Estados Unidos, Reino Unido, Suécia, Austrália – e classificou o brasileiro como o mais completo do mundo. “Países como Canadá, França, Peru e Uruguai usam nosso guia como referência para suas políticas de alimentação e nutrição”, afirma a nutricionista.
Dietas em disputa
Apesar de aplaudido em outros países, o guia gerou uma guerra depois de atualizado, em 2014. O termo belicoso foi usado por um dos cientistas que conceberam o documento, Carlos Monteiro, professor da Universidade de São Paulo, que está entre os mais conceituados do mundo em sua área.
Em entrevista ao jornal The New York Times, ele explicou haver uma oposição entre o que chamou de “dois regimes alimentares”, aquele calcado em alimentos de verdade, produzidos por agricultores locais, e o dos produtos ultraprocessados, feitos para ser consumidos em excesso e viciar. “Mas um desses regimes tem poder desproporcionalmente maior do que o outro”, disse referindo-se às indústrias.
Desde o início, a indústria de alimentos deixou claro seu desapreço pelas diretrizes. No ano passado, o médico sanitarista Arthur Chioro, que foi ministro da Saúde em 2014, revelou para a publicação especializada O Joio e o Trigo o lobby que sofreu da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia), grupo que reúne gigantes do setor.
Hoje médico da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, Chioro contou que Edmundo Klotz, então presidente da Abia, entregou três metas da associação. Uma deles era “impedir a qualquer custo a publicação do guia”. Chioro deu de ombros e o documento saiu, claro. Mas não deixou de incomodar. Na esteira, vieram políticas públicas que favorecem a compra por escolas públicas de orgânicos ou in natura produzidos pela agricultura familiar.
Anos depois, os ventos políticos mudaram, e a “guerra” ganhou uma nova batalha. Em julho último, o atual presidente da Abia, João Dornellas, reuniu-se com a ministra da Agricultura, Tereza Cristina. O encontro não foi coberto pela imprensa, mas no dia 17 de setembro o jornal O Estado de São Paulo publicou uma matéria dizendo que o Ministério da Agricultura queria retirar do Guia críticas a alimentos industrializados após ter acesso a um esboço de nota elaborado depois da reunião.
Era assinada por técnicos do ministério de Tereza Cristina que classificava, sem mostrar provas, o guia como “cômico” e “pseudocientífico”, atacando a classificação adotada. No site do Ministério da Agricultura, Pecurária e Desenvolvimento (Mapa), uma nota de esclarecimento afirma que não encaminhou ao Ministério da Saúde sugestões para alteração do Guia, mas que o assunto estava sendo discutido internamente e que os textos vazados seriam minutas de documentos internos.
Diversas entidades médicas e associações de cientistas brasileiros repudiaram a nota, mas a Abia saiu em sua defesa, deixando claros seus interesses. Emitiu um posicionamento mencionando um estudo britânico que teria classificado o documento brasileiro como um dos piores do mundo. A pesquisa citada, porém, indica exatamente o contrário.
A menção gerou até reação dos autores do tal estudo, que acusaram publicamente a Abia de distorcer o artigo – a entidade insistiu na interpretação. Pelo menos até agora, o confronto foi vencido pela ciência. Trata-se, no entanto, de uma vitória parcial. Na defesa da saúde pública, cientistas sofreram duas derrotas com o atual governo, uma referente à rotulagem e a outra à liberação desenfreada de agrotóxicos para uso na agricultura.
Nos detalhes
No início de outubro, a Anvisa, agência que regula alimentos e medicamentos, aprovou, por unanimidade, novas regras para os rótulos de alimentos que favorecem a indústria. O modelo, que não recebeu atenção da imprensa, consiste em uma discreta lupa, ao lado de até três avisos: alto em sódio, em gorduras saturadas ou em açúcar adicionado – não há nenhum alerta sobre a presença de aditivos químicos, como conservantes.
A proposta dificulta a identificação por crianças e pessoas que não sabem ler, além de não haver evidências científicas de que o modelo seja eficaz em mostrar os riscos ao consumidor. “O lobby da indústria foi por fazer uma rotulagem descritiva, e não de advertência”, afirma a professora de nutrição e saúde coletiva Inês Rugani, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
“Existe uma permissividade da legislação brasileira na atual gestão e há o agravante de que muitas pessoas que usam agrotóxicos não seguem o que está na lei”
Inês Rugani, professora
O modelo defendido pela sociedade e recomendado pela Organização Mundial da Saúde usa o triângulo, símbolo tradicional de advertência ensinado em escolas e apreendido até por adultos não alfabetizados. Foi adotado pelo Chile em 2016 e gerou mudanças positivas no hábito dos consumidores. No caso de um alimento que exceda nos três níveis, são três triângulos, sinal claro de risco.
A Anvisa também relaxou nos parâmetros do que significa “alto teor” dessas substâncias potencialmente nocivas. “Só receberá o rótulo o que tiver muito alto teor. Nas prateleiras dos supermercados, vai ter um macarrão instantâneo ruim, sem nada, e um outro muito ruim, com o selo”, lamenta Inês, que participou de comissões de debate sobre a rotulagem. As fabricantes têm até outubro de 2022 para se adaptar à nova norma.
No caso dos agrotóxicos, a preocupação é com a aprovação massiva de químicos para uso em lavouras e plantações. Em menos de dois anos de mandato, o governo Bolsonaro liberou 847 novas substâncias, segundo levantamento do Robotox, um robô criado por jornalistas para monitorar a aprovação de agrotóxicos no Brasil.
O número já é maior que a quantidade de produtos do gênero aprovada pelo governo Lula no triplo do tempo, entre 2005 e 2010. “Existe uma permissividade da legislação brasileira na atual gestão e há o agravante de que muitas pessoas que usam agrotóxicos não seguem o que está na lei”, alerta Inês.
A professora de farmácia da Universidade de Brasília Eloisa Dutra Caldas pede, porém, cautela. “Nossos estudos revelam que os níveis (de resíduos de pesticidas) encontrados não representam um risco apreciável para a saúde”, garante ela, que é membro do grupo de peritos em resíduos de pesticidas da OMS. “O risco da ingestão é muito menor que os benefícios do consumo de frutas, verduras e legumes”, enfatiza.
Contudo, para o meio ambiente e pequenos agricultores, cujo contato com esses produtos é direto, os agrotóxicos trazem graves problemas, sim. E, como o Guia Alimentar enfatiza, o que comemos não tem a ver só com a nossa saúde, mas com a saúde do planeta.
*Após a publicação da reportagem, a assessoria da ABIA informou que:
“A Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA) sempre se posicionou a favor do processo regulatório de rotulagem nutricional da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), tendo participado desse processo desde seu início, em 2014, quando começaram as discussões com organizações da sociedade civil. Foi um processo democrático, conduzido pela Anvisa com a participação do setor produtivo e de entidades da sociedade civil organizada.
Ressalte-se que a indústria de alimentos e bebidas sempre defendeu um modelo de rotulagem nutricional mais informativo. O modelo determinado pela Anvisa não é o ideal sob o ponto de vista do setor, mas confiamos que a proposta atende aos objetivos traçados desde o início do processo regulatório: facilitar o entendimento do rótulo para o consumidor.”
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