A depressão pós-parto é mais comum do que se imagina
Além de causar sofrimento, a tristeza que surge e persiste após a chegada do bebê pode prejudicar o desenvolvimento infantil; mas há saída
Em média, uma em cada cinco mulheres tem depressão pós-parto nos países de baixa renda, segundo a Organização Mundial da Saúde. No entanto, um estudo apresentado durante o encontro anual da Associação Americana de Psiquiatria, em maio, revelou que esse número pode ser bem maior, inclusive nos países ricos.
Mais da metade das 164 mil mães recentes que responderam ao questionário relatou sintomas de depressão até um ano após o nascimento do bebê – embora os médicos em geral considerem a possibilidade sobretudo nos dois meses pós-parto.
A conclusão dos autores é que é preciso investigar o quadro por um período mais extenso, começando antes de a mulher dar à luz até 12 meses depois do parto. A pesquisa é da Ovia Health, empresa de aplicativos voltados para a gravidez e a parentalidade com 12 milhões de downloads nos Estados Unidos.
Há muita falha no diagnóstico porque a mulher demora a buscar ajuda e os profissionais da saúde nem sempre estão atentos, segundo o psiquiatra Joel Rennó Junior, diretor do Programa Saúde Mental da Mulher do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Além do sofrimento intenso para mãe, há o risco de sérios prejuízos ao desenvolvimento infantil. Filhos de mulheres com depressão pós-parto grave e persistente têm o dobro de chances de apresentar distúrbios comportamentais em torno dos 3 anos e vir a desenvolver depressão por volta dos 18, verificou um estudo realizado na Universidade de Oxford, no Reino Unido, e divulgado no jornal científico JAMA Psychiatry em 2018.
Em outra pesquisa, publicada no American Journal of Psychiatry, cientistas holandeses estudaram 3 469 pares de mães e filhos e mediram o cérebro das crianças aos 10 anos por ressonância magnética. Concluíram que a exposição à depressão materna nos primeiros meses de vida pode afetar o desenvolvimento desse órgão vital e predispor a criança a problemas de atenção e outros déficits cognitivos.
“A avaliação pré-natal é eficaz para detectar diabetes, pressão alta, anemia e outras doenças, mas a parte psicológica não é avaliada de forma sistematizada. Mudanças de comportamento, tipo ficar mais triste ou comer muitas bobagens, são vistas de forma superficial, como se fossem próprias da gravidez. Então, o problema só é descoberto tardiamente, em estágio mais grave”, diz Joel. De acordo com ele, 50% dos quadros de depressão pós-parto decorrem de depressões leves não diagnosticadas nem tratadas na gravidez.
Gestação indesejada ou fruto de violência, ausência de companheiro, pouca escolaridade, história prévia de depressão, fraco suporte familiar são condições que aumentam a vulnerabilidade à depressão pós-parto. Contudo, até grávidas tranquilas, com parceiro participativo, às vezes se surpreendem com a melancolia sentida depois da chegada do bebê, quando a expectativa era estar feliz, realizada.
Além da tristeza
A chamada baby blues, ou disforia pós-parto, é uma sensação de infelicidade que acomete até 70% das mães recentes e se caracteriza por choro fácil, ansiedade, irritabilidade, insônia e dificuldade ou sensação de incapacidade de cuidar da criança.
Vários fatores contribuem para isso, dentre eles as mudanças hormonais. Segundo o ginecologista e obstetra Jurandir Passos, especialista em medicina fetal do Salomão Zoppi Diagnósticos, em São Paulo, há um aumento na produção de prolactina, essencial para a amamentação, e uma diminuição drástica de estrogênio, que, além de inibir o ciclo menstrual, provoca atrofia na mucosa vaginal e possível dor nas relações sexuais.
As mamadas noturnas alteram o padrão de sono e alguns recém-nascidos choram muito à noite, o que causa cansaço e repercute mal no metabolismo feminino. Juntam-se a isso fatores emocionais e sociais que podem servir de gatilho para a tristeza.
“Há uma contradição entre o bebê que ela imaginou na gravidez e o real, que chora muito. E também ansiedade, insegurança, a sensação de estar despreparada para cuidar de um ser dependente, o medo de errar, a falta de tempo para si”, descreve o psiquiatra Joel. “Há pressão social para que ela dê conta de tudo, supõe-se que toda mulher sabe o que fazer, afinal o instinto maternal a habilita a criar o bebê. Mas aprender os cuidados pode ser um desafio mesmo para quem dispõe de enfermeira.”
Os sintomas da baby blues surgem nos primeiros três dias depois do parto e costumam ser passageiros, desaparecem espontaneamente após duas semanas, conforme a mulher vai se adaptando às rotinas com o bebê. “O diferencial de um quadro de depressão é que ela consegue seguir com suas atividades normais, apesar dos sintomas”, explica Jurandir.
Às vezes, porém, as crises de choro se tornam persistentes e acompanham sono excessivo, alteração no apetite (ela perde a fome ou come compulsivamente), dificuldade para se concentrar, descuido da higiene pessoal, pensamentos recorrentes de culpa ou desvalorização pessoal, desinteresse ou excesso de atenção para com o bebê. Nessas condições, convém passar por uma avaliação psiquiátrica.
Sem tratamento, os sintomas podem se agravar, expondo a mulher a um quadro severo que se caracteriza por planos de suicídio e alucinações. A psicose puerperal é rara, atinge até duas mulheres a cada mil e ameaça a vida tanto da mãe quanto do bebê, por isso deve ser tratada com rigor. “Casos extremos são facilmente detectáveis”, afirma Jurandir. “O problema são os quadros brandos, que minam as forças da mulher pouco a pouco. Ela perde o ânimo para o trabalho, o desejo sexual.”
Saídas possíveis
Em março, o FDA (agência reguladora americana) aprovou o primeiro medicamento específico para depressão pós-parto grave, a brexanolona, que faz efeito mais depressa do que os antidepressivos tradicionais. É administrado na veia por infusão, e cada sessão dura dois dias e meio. Deve ser aplicado em hospitais. Mas seu custo (em média, 30 mil dólares, ou 115 mil reais) inviabiliza o uso no Brasil.
Há outras alternativas. A depressão leve pode ser tratada com psicoterapia, que, segundo estudos, estimula modificações benéficas nos neurotransmissores equivalentes às ocasionadas por antidepressivos. Outras abordagens também são úteis para elucidar as razões de tanta ansiedade e cobrança.
“O significado da depressão pós-parto é sempre subjetivo e está relacionado à trajetória individual”, esclarece a psicóloga Maria Helena Cruz de Moraes, fundadora do Instituto Pais Bebês, que acompanha mulheres e casais em Florianópolis. “A mulher pode inconscientemente se identificar com o bebê, revivendo sua sensação de ter sido amada e bem cuidada. Ou de ter sido desamparada em suas necessidades emocionais, de não ter tido contato físico ou sido acalentada.”
O bebê precisa da disponibilidade emocional da mãe. “Na depressão pós-parto, a mãe pode se tornar indisponível ou apenas se relacionar de forma ansiosa ou culpada, não por não querer o filho, mas por não conseguir agir de outro modo. Não é uma questão de maldade, mas de impossibilidade psíquica”, diz.
Casos de moderados a graves requerem psicoterapia e antidepressivos. Há fármacos seguros para uso durante o período de amamentação. Mas para isso é preciso passar por uma avaliação médica criteriosa.
“O mais importante é encarar a depressão como um pedido de socorro e ajudar a mulher a assumir suas funções maternas de forma adequada e serena”, orienta Maria Helena. “Quando ela entende o que se passa, o que ela está resgatando inconscientemente, tudo alivia, a mulher se livra de fantasmas e se sente mais inteira para viver a maternidade.”
Pedir ajuda a pessoas de confiança para cuidar do bebê enquanto você dorme, dá uma volta e recompõe a energia é uma estratégia interessante. “A mulher precisa de apoio e liberdade para encontrar seu jeito de ser mãe”, ressalta Maria Helena. “A maioria experimenta sentimentos contraditórios e inconciliáveis com a imagem idealizada de acolhedora, tranquila, compreensiva, capaz de enormes sacrifícios”, acrescenta.
Aceitar o próprio ritmo é outra ação sensata, bem como reconhecer que mãe não precisa saber tudo. Afinal, instinto materno não existe, como demonstrou a filósofa francesa Elizabeth Badinter, mãe de três filhos, no livro Um Amor Conquistado, que causou muita controvérsia quando foi lançado, em 1985, e continua atual:
“Não encontramos nenhuma conduta universal e necessária da mãe. Ao contrário, constatamos a extrema variabilidade de seus sentimentos, segundo sua cultura, ambições ou frustrações. (…) O amor materno não é inerente às mulheres. É adicional.”
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