BBB21: Quais os limites entre a cultura do cancelamento e a violência?
Especialistas analisam os perigos em torno dos últimos acontecimentos no reality
“Você viu que aquela cantora foi cancelada?”, “Eu sempre fui a cancelada, mas nunca a canceladora”, “O que aquele ator fez vai fazer ele ser cancelado nas redes sociais”. Frases como essas são cada vez mais comuns no vocabulário das redes sociais e nas rodas de conversa.
A 21ª edição do Big Brother Brasil trouxe para dentro das casas e novamente para as redes sociais a discussão sobre a cultura do cancelamento, após polêmicas envolvendo a cantora Karol Conká, de 34 anos, e Lucas Penteado, de 24 anos, hostilizado pela participante com palavras e atitudes agressivas e preconceituosas. Além do ator, ela já havia se referido à também participante Juliette, paraibana de 31 anos, de forma considerada xenofóbica na opinião das redes.
Karol já insinuou que Lucas é usuário de drogas, fez ataques verbais na presença e ausência do participante, disse que o rapaz teria que “lavar a bunda da galera” e expulsou o ator da mesa do almoço, ou seja, cancelou o ator.
Hoje, o termo cancelado, popular nas redes sociais, diz respeito a ser excluído da sociedade por uma determinada pessoa ou grupo, que coloca sobre essa vida uma reputação, em geral negativa. O ataque, que tem como objetivo chamar a atenção para as causas de uma minoria, tem o poder de ameaçar o emprego, vida financeira, psicológica e social da pessoa. Para alguns, a prática é positiva, para outros, é vista como uma forma de opressão.
No entanto, uma questão precisa ser discutida: quais os limites entre a cultura do cancelamento e a violência psicológica? Especialistas consultados falam sobre o caso a seguir:
Cancelamento é uma forma de abuso psicológico?
Quando falamos em abuso, falamos de algo que ultrapassa limites, que causa no indivíduo um sofrimento. Ainda que silencioso, o abuso pode ser a fonte de danos severos para alguém em sua autoestima, o que não se refere apenas à aparência, mas com a autoimagem de maneira mais ampla: se achar inteligente, competente, se sentir querido, sociável e incluído. Pessoas que sofrem abuso, em geral, não se sentem adequadas para viver em sociedade.
“Pensando que, de algum modo, esse cancelamento causa nas pessoa sofrimento psíquico, financeiro e, em alguns casos, dor física, a gente pode considerar que, sim, que a cultura de cancelamento é um tipo de abuso psicológico de onde um grupo se reúne pra julgar uma pessoa sem que ela tenha possibilidade de defesa”, diz Jaqueline Conceição, doutoranda pela UFSC, mestre em educação pela PUC SP e consultora da ONU.
A pessoa que passa por esse tipo de situação geralmente “não se permite o autocuidado, não se acha merecedor e entende que a sua condição de abuso é permanente”, o que se torna mais intenso em pessoas que estão em isolamento, como aponta Kwame dos Santos, psicólogo e psicanalista do Redes Pretas.
Tortura Psicológica x Abuso Psicológico
De acordo com Kwame, “a tortura psicológica é uma prática sistemática de anulação do outro a partir de um campo discursivo, práticas e de uma desigualdade de poder. O abuso psicológico tem a ver com a desigualdade de poder, de um silenciamento com o propósito de confundir, dissimular e deslegitimar o sofrimento.”
Ambos são formas perigosas de violência psicológica e, se observarmos bem, são os “fundamentos” da cultura do cancelamento, em que os seguidores ou internautas são os que dispõem do poder para silenciar alguém através de uma tortura que é construída aos poucos com discursos e compartilhamentos e ganha uma proporção avassaladora. Isso, ainda que nas redes sociais, é uma forma de violência e, constitucionalmente, é visto como crime.
Um agravante é que “nem sempre a pessoa que pratica o abuso tem total consciência de que tá praticando o abuso, mas, em alguma medida, ela sabe que ela tem algum tipo de poder sobre o outro, que dá a ela a legitimação de ser alguém violento”, aponta Jaqueline.
O que aconteceu no BBB foi abuso psicológico?
As situações do BBB 21 entre Karol e os outros participantes Lucas e Juliette podem sim ser consideradas de abusos psicológicos, mas é importante apontar que os episódios são a materialização da cultura do cancelamento, antes uma exclusividade do mundo virtual e agora também presente na sociedade real. Vimos a Conká se utilizando de seu “poder” por ser famosa, reconhecida e com muitos seguidores, afrontando outros participantes. Assim como no mundo virtual, em que a prática pode levar à prisão dependendo das proporções que alcança, no mundo real não é diferente.
No caso do Lucas, o movimento que está se dando é baseado na “dimensão do auto-ódio (ver no outro aquilo que despreza em si próprio e por isso o rejeita) em que é ensinado a pessoas negras a não se amar, não se gostar, que ser negro é ruim”, defende a consultora da ONU, e isso leva à rejeição baseada no poder, o que se torna um abuso psicológico.
Já o que ocorre com Juliette pode ser uma consequência do recalque que, de acordo com Jaqueline, são “coisas não resolvidas no sujeito que ele não consegue se livrar, então de alguma forma aquilo volta, gera uma angústia e o tempo todo ele (o indivíduo) precisa ficar falando”.
Reparando danos
Segundo os especialistas, é importante ressaltar que os danos na psique são profundos e, muitas vezes, imperceptíveis pelo indivíduo e seu entorno.
“Essa questão é fundamental que seja acompanhada por um profissional da saúde mental, para entender a raiz do trauma e aprender a lidar com ele. O processo vai ajudar ela a lidar com essa questão para que isso não paralise a vida dela”, aponta Jaqueline.
Outras coisas que podem ajudar nesta reparação são meditação, arte terapia e grupo de escuta, segundo a especialista.