Por que os debates sobre racismo ganharam destaque na pandemia
Intelectuais negras contextualizam demandas identitárias no Brasil e no mundo, apontando os motivos que levaram à ascensão do tema na pandemia
Após a morte de um homem negro, seja no Brasil, nos Estados Unidos, seja em outros lugares do mundo, é recorrente a fala de familiares ou amigos: “Ele não era bandido”. O ato naturalizado é a tentativa de justificar o merecimento da existência, ceifada no genocídio da população negra. Em um jogo de controle social, o Estado detém o poder de decidir quem vive e quem morre. Pesquisadores identificam esse ápice de controle político como necropolítica, conceito disseminado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe. Com a pandemia, a necropolítica ganha mais um meio de atuação. O novo coronavírus acentua a fragilidade da vida de afrodescendentes e indígenas, que já tinham serviços básicos escassos e acesso discrepante do usufruído pela maioria da população branca. Isso explica o fato de a letalidade da Covid-19 ser maior entre os afrodescendentes no Brasil, nos Estados Unidos e na Inglaterra, por exemplo. Segundo o boletim epidemiológico liberado pelo Ministério da Saúde que analisou a pandemia de março a 22 de junho, houve no período 45 652 internações de pessoas negras e 35 610 de pessoas brancas. A cada dez mortes, 4,1 eram de negros e 2,4 de brancos.
Mesmo com a suspensão das operações policiais durante a pandemia, que foi aprovada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, permitindo ações apenas em casos excepcionais, cresceu a violência policial no período. De acordo com uma pesquisa do jornal O Globo, houve aumento de 26% das mortes causadas por policiais no decorrer do isolamento, sendo os negros a maioria das vítimas. Do outro lado, o cenário não é diferente. O 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontou que, entre 2017 e 2018, os policiais negros foram os que mais morreram, cerca de 51% (ante 48% de brancos e 0,3% de amarelos).
Casos emblemáticos que ganharam grande visibilidade nos últimos meses, como o assassinato do segurança George Floyd, em Minneapolis, e da técnica de emergência médica Breonna Taylor, em Kentucky, nos Estados Unidos, dos jovens João Pedro, 14 anos, no Rio de Janeiro, e Guilherme Guedes, 15 anos, em São Paulo, impulsionaram a ascensão do debate público sobre a complexidade das variadas sistematizações do racismo. Manifestações organizadas pelos movimentos Black Lives Matter e outros grupos ao redor do mundo lotaram vias públicas cobrando atitudes antirracistas, e elas não devem cessar até que mudanças aconteçam.
Um campo minado
Segundo o jurista Silvio Almeida em Racismo Estrutural (Pólen), o racismo não é prática ou fenômeno exclusivos das instituições, mas um processo histórico, político e econômico. Por esse motivo, articulações antigas, como o Movimento Negro Unificado, surgido na época da ditadura, tinham demandas tão parecidas e essenciais como as atuais. “Se formos comparar o racismo no Brasil, nos Estados Unidos e na África do Sul, o resultado na vida das pessoas negras é o mesmo: violência, dor e morte. A diferença é que as leis de segregação foram mais explícitas lá do que aqui. No Brasil, o racismo nunca foi velado, mas explicitamente violento. Só que foi narrado de forma despolitizada”, diz a médica Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional Brasil. Doutora em comunicação e cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ela fundou a ONG Criola, que visa à defesa incondicional das mulheres afrodescendentes, e é autora do livro Saúde das Mulheres Negras: Nossos Passos Vêm de Longe (Pallas).
As reações diante da interrupção das vidas negras oscilam de acordo com a etnia. Para a população negra, no alvo do desemprego, do vírus e da violência, ir às ruas se manifestar ou tentar trabalhar durante o isolamento é a última saída para a sobrevivência. Enquanto isso, a resposta da branquitude aos chamados constantes do movimento negro para uma cobrança coletiva ao longo da história ainda é inexpressiva. Para a deputada estadual de São Paulo Erika Hilton (PSOL), não existe boa vontade do sistema, da cisgeneridade e da branquitude para que se abram caminhos para as pessoas pretas. “As conquistas adquiridas aconteceram a partir da luta dos movimentos dissidentes”, afirma a ativista.
A cientista política Gladys Mitchell-Walthour, professora da Universidade de Wisconsin e coordenadora da United States Network for Democracy in Brazil (ou Rede Americana pela Democracia no Brasil), tem outra visão. Ela entende que o vídeo do sufocamento de George Floyd foi, para muitas pessoas brancas, o reconhecimento da violência policial. “Infelizmente, para nós, negros, é óbvio que o racismo existe, não é uma novidade. Porém, para boa parte dos brancos não é tão evidente assim. É difícil acharmos que vai mudar alguma coisa, mas, assim como no Brasil, nós nos organizamos sempre, há um posicionamento a cada vida negra perdida. O que torna essa manifestação diferente é que agora não somos nós, negros, denunciando a brutalidade policial. Os brancos também estão lá”, explica a acadêmica, que aponta ainda a participação de brancos nas manifestações como resposta ao descontentamento com o governo Trump.
Com avenidas ao redor do mundo tomadas, surge a questão: o que levou essas pessoas não só a se sensibilizarem mais em relação aos casos de violência policial como também a irem às ruas? Para Carla Akotirene, mestra e doutoranda em estudos feministas pela Universidade Federal da Bahia e autora do livro Interseccionalidade (Pólen), a resposta para as articulações está na internet. “A tecnologia tem fortalecido o engajamento dessa geração, multiplicando ações e, por consequência, orquestrando formas de incitar segmentos hegemônicos da sociedade. Pessoas que não participavam organicamente agora buscam seu papel como aliadas”, afirma.
Um peso e duas medidas
Se a crise sanitária reforça os impactos do racismo para a população negra como um todo, há grupos com marcadores sociais, como gênero e espaço social, que têm sua existência ainda mais precarizada. Com a terceira maior população carcerária do mundo, o Brasil tem atualmente cerca de 800 mil pessoas nessa condição. Em 2017, um levantamento do Ministério da Justiça e Segurança Pública revelou que os negros correspondiam a 61,6% dos detidos. Juliana Borges, escritora de Encarceramento em Massa (Pólen) e colunista de CLAUDIA, acredita que a prisão também é uma engrenagem do genocídio da população negra. “O que eles não podem exterminar, eles encarceram. A maioria das pessoas em situação prisional no Brasil hoje são jovens entre 18 a 29 anos. O mesmo grupo representa 70% das vítimas de homicídio no país anualmente. E é importante ressaltar que as principais formas de se proteger durante a pandemia – lavar as mãos e fazer isolamento – são inalcançáveis para a população da favela e do cárcere por falta de água e espaço”, afirma.
Segundo resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a situação das prisões no Brasil é inconstitucional, sendo inclusive um ambiente frequentemente acometido por epidemias, como de tuberculose e sarna. Juliana explica que o correto, nesse período, seria manter presos com mais de 60 anos ou com doenças preexistentes e gestantes em regime domiciliar. “Não defendo a prisão, mas quem ainda defende precisa entender que é um espaço de privação de liberdade, não de tortura. Ao ser condenado, o indivíduo não deve perder a dignidade ou ter a humanidade negada. A CNJ constatou que, de maio a junho, a contaminação de presos pela Covid-19 aumentou 800%. Foram 2,2 mil casos e 53 mortes”, completa.
A intersecção entre ser mulher e negra também reserva a anulação de direitos, principalmente do direito à vida – seja a dela ou de filhos, marido, irmãos. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 revela que 61% das vítimas de feminicídio no Brasil eram negras. Carla Akotirene responsabiliza o alto número de mortes e as taxas de violência doméstica – não só na pandemia, mas em uma análise permanente – à ação agressiva dos instrumentos de segurança e saúde pública, que se mostram muito diferentes em ambientes frequentados por pessoas brancas. “A mulher negra não é amparada suficientemente pelos argumentos antirracistas presentes no feminismo nem pelo combate ao sexismo da luta antirracista”, sinaliza.
A execução da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes também escancarou a deficiência e o desamparo sofridos pela mulher negra, e, no caso da parlamentar, periférica e lésbica, no espaço político. “Como foi possível uma mulher negra, em um cenário com tantas lacunas, ser eleita com 46 502 votos e não ganhar destaque no próprio partido? Isso mostra o racismo institucional nas organizações políticas partidárias, inclusive na esquerda. Para nós, a perda dela foi algo dramático. Ela poderia ser a próxima senadora da República e muito mais”, argumenta a socióloga Vilma Reis, diretora do Instituto de Educação para a Igualdade Racial e de Gênero (Iceafro), na Bahia. Ela também afirma enxergar atualmente o desenrolar de uma “asfixia coletiva”, com grupos e líderes políticos defendendo discursos antidemocráticos e opressores.
Marielle deixou um legado e incentivo para novas candidaturas negras, mas que ainda não frutificaram como deveriam. “Essa ausência de corpos negros é reflexo da necropolítica, da má alimentação, de uma escolaridade precária. Todos esses fatores dificultam não só a inserção nos espaços, mas a disputa equilibrada. É importante que os partidos se responsabilizem e tenham consciência de que, ao colocar um corpo negro ou um corpo transvestigenere (termo cunhado por Erika, que se identifica com ele, e a ativista Indianara Siqueira para substituir as palavras travesti e transexual, que consideram carregadas de estereótipos) no debate e na disputa política, esse corpo tem que ter condições de se eleger, não pode estar ali só para dizer que o partido é diverso ou que tem corpos negros e trans”, diz Erika. “O caminho para a sociedade enxergar a vida, a produção intelectual e a elaboração política de pessoas trans é tortuoso. Tanto é que 90% da população trans tem a prostituição como única possibilidade de existência.”
Do ponto de vista do sistema econômico, Erika Hilton também aponta o capitalismo como engrenagem para a necropolítica. Para a deputada, o útero da mulher, principalmente da negra, é visto como uma fábrica de produzir trabalhadores, que podem morrer e ser substituídos facilmente. Nesse sentido, é inevitável pensar no caso de Miguel Otávio, 5 anos. O garoto pernambucano caiu do topo do prédio após a patroa de sua mãe deixá-lo entrar sozinho no elevador. Carla completa: “Ao perder seu filho, Mirtes se torna figura dessa continuidade à memória da violência colonial. O capitalismo precisa da mão de obra negra, e o racismo impede que o filho da empregada fique junto dos filhos da patroa. Ele separa. O capitalismo também é sexista. Marx diz que a mercadoria não pertence ao trabalhador e, da mesma forma, uma mulher negra tem o trabalho de parto, mas não tem o filho para ela. O Estado arruma um jeito de arrancar”.
Não é só ceder espaço, mas possibilitar que nossas vozes ecoem”
Erika Hilton
Ativismo para além das fronteiras
Em 1997, a fim de frear o desenvolvimento escalonado do racismo no século 21, a Organização das Nações Unidas estabeleceu a criação de uma conferência contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e a intolerância. Quatro anos depois, em Durban, na África do Sul, ocorreu a terceira reunião, onde se acordou um planejamento de reparação histórica para os países do continente africano atingidos pelo tráfico de pessoas na escravidão. O intuito era que as nações responsáveis pelos processos de colonização compensassem os danos causados. “Foi assumido o compromisso de cumprir com as demandas de gênero associadas ao racismo. Porém, poucos dias depois, aconteceu o atentado de 11 de setembro e a pauta foi esquecida. Os Estados Unidos se comprometeram então a proteger a nação independentemente de questões identitárias”, lembra Carla. E até hoje é assim. Gladys identifica as similaridades e proporções entre os problemas raciais americanos e brasileiros. “Além da brutalidade policial, o sistema de educação para crianças e jovens negros é nocivo, mas também há resistência quanto a isso. Fico muito triste quando converso com negros dos Estados Unidos que não têm muito conhecimento sobre a luta negra brasileira e acham erroneamente, por exemplo, que o número de negros americanos mortos por policiais é o maior do mundo. A população negra no Brasil é maior do que a nossa, assim como a violência policial”, destaca a professora, que atua na Universidade de Wisconsin para aumentar os 10% de negros no corpo docente e entre os alunos. Segundo a cientista política, o problema dos americanos é que estão sempre focando no próprio país. “João Pedro, Marielle Franco, Miguel Otávio são pessoas negras, e não há diferença entre serem assassinadas pela polícia aqui ou no Brasil. Desejo que mais pessoas entendam isso também”, afirma.
Outra articulação que marcou a associação de movimentos negros para além das fronteiras das nações foi o primeiro Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas, em Santo Domingo, na República Dominicana, em 1992. Na ocasião, participantes debateram a interseccionalidade entre o machismo, o racismo e os mecanismos de resistência. Criou-se o Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha, celebrado em 25 de julho. “Nos últimos 30 anos, houve uma participação intensa e transformadora de mulheres negras no ativismo, que foi estruturada nas preparações regionais e nas Conferências Mundiais da Mulher, organizadas pela ONU, como a de Pequim, e a do Cairo, em 1994”, relembra Vilma Reis.
O que esperar?
No fechamento desta edição, o Brasil completara quase dois meses sem ministro da Saúde em meio à pandemia do novo coronavírus. O impacto do cenário político caótico é ainda maior para populações vulneráveis. Jurema Werneck alerta para a gestão desqualificada e o abandono das estratégias nacionais de saúde da população negra e indígena. “As próprias comunidades estão agindo. Não há garantia de que alguma coisa vai mudar, a menos que a gente continue lutando intensamente. O Sistema Único de Saúde que nós sonhamos na década de 1980 deve ser atualizado. Ele não existe, mas precisa existir”, propõe a médica. “A injustiça é lucrativa, mas para uma minoria e em detrimento de uma maioria”, diz.
Para Vilma, a ascensão das demandas sobre racismo e antirracismo e a visibilidade que profissionais negros passaram a ter na mídia devem seguir até serem norma. “Nós temos o trabalho de manter sempre na cabeça do nosso povo intérpretes do Brasil como Lélia Gonzalez, Carolina Maria de Jesus, Beatriz Nascimento, Zózimo Bulbul, Ana Maria Gonçalves e Abdias Nascimento. A geopolítica da resistência, iniciada pelos Cadernos Negros em 1978, que publicou primeiro Conceição Evaristo e que tem a incumbência de educar e conectar afrodescendentes com a sua história, deve crescer ainda mais. Porém, necessitamos de espaços para proteger essa memória de resistência negra e de formação da própria história brasileira”, explica.
Em um movimento de aquilombamento político por sobrevivência, a Coalizão Negra por Direitos contempla um plano de mudanças sistematizado por 150 organizações do movimento negro, incluindo a Mahin Organização de Mulheres Negras, onde Vilma Reis atua. “São 132 anos de uma abolição inconclusa, que nos deixou no meio da rua, sem lenço nem documento e sem nenhuma reparação pelos 355 anos de trabalho gratuito do nosso povo para os colonizadores. A Coalizão assume a função de cobrar de forma contundente que o enfrentamento ao racismo esteja no centro do debate político, gerando uma interrupção dessa hegemonia branca nos espaços de poder. Só assim mudaremos a realidade da população negra e, consequentemente, de toda a população”, explica a defensora dos direitos humanos.