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Você sabe o que é gaslighting?

É uma forma de abuso psicológico em que informações são omitidas, distorcidas ou inventadas para fazer a vítima duvidar de seus sentimentos

Por Liliane Prata
Atualizado em 16 abr 2024, 12h46 - Publicado em 19 fev 2018, 20h42
 (ElenaNichizhenova/ThinkStock)
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Sabe aquela cena clássica em que o marido, mesmo tendo sua traição descoberta, diz à esposa que ela está vendo coisas onde não tem? Pois essa atitude hoje atende pelo nome de gaslighting, termo tomado emprestado do filme americano Gaslight, de 1944. No roteiro, um homem, entre outras táticas para abalar e confundir, apaga e acende as luzes da casa tentando levar a esposa a pensar que enlouqueceu.

Isso porque ele descobre que ficará com a fortuna da mulher se ela for internada como doente mental. “Essa é uma forma de abuso psicológico em que informações são omitidas, distorcidas ou inventadas para fazer a vítima duvidar de seus sentimentos, suas percepções e, em alguns casos, como no filme, até de sua sanidade”, define a psicóloga Julia Maria Alves, orientadora profissional e de carreira em São Paulo.

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(Gaslight Filme/Reprodução)

A psicanalista Simone Demolinari, de Belo Horizonte, completa alertando que, se a prática abusiva era inicialmente mais observada no contexto amoroso, agora está em todas as áreas da vida. “Vemos na família, nas amizades, no ambiente de trabalho”, diz. “Gosto de definir como um crime psicológico, em que uma pessoa faz com que a outra pense não estar com a razão justamente quando ela tem certeza absoluta de algo.”

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Originalmente, segundo a psicanalista mineira, as vítimas eram as mulheres. Até hoje, o cenário não mudou quase nada. A professora Valeska Zanello, doutora e pesquisadora de saúde mental e gênero na Universidade de Brasília, afirma que não dá para comparar o volume de gaslighting que eles e elas sofrem. “Existe na nossa sociedade uma hierarquia com domínio bem masculino, e, nesse jogo de poder, os homens são mais encorajados a fazer gaslighting contra as mulheres, entre outras formas de violência”, explica Valeska. O pior é que essa prática costuma ser particularmente danosa para elas.

“Existe na sociedade uma hierarquia com domínio bem masculino, e os homens são mais encorajados a fazer gaslighting contra as mulheres”, Valeska zanello, pesquisadora.

A publicitária paulistana Lorena*, 34 anos, sofreu bastante nas mãos de um chefe. Na empresa em que trabalhava, havia uma política de verificação periódica de desempenho, com bonificação para os melhores colocados. Lorena foi contemplada duas vezes seguidas. Estava satisfeita até descobrir que um colega que ocupava um cargo idêntico ganhava mais e trabalhava menos horas.

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“Fui conversar com meu superior, mas, para minha surpresa, ele alegou que eu não era tão competente quanto meu colega. Como assim, se a própria empresa reconhecia meu talento nos feedbacks regulares?”, lembra, indignada. Segundo ela, o chefe desfiou uma série de argumentos, todos falsos, como o de que o colega tinha mais experiência e mais afazeres do que ela, o que justificava os reais a mais dele. “Quando discordei, ele disse que eu era ambiciosa demais e deveria tomar cuidado com isso para não prejudicar minha carreira”, conta. “Tinha ido conversar cheia de razão, mas deixei a mesa do chefe achando que meu pedido não fazia tanto sentido. Fiquei até com a sensação de que estava sendo ingrata.”

A psicanalista Simone explica que o objetivo de quem comete o abuso é se favorecer – no caso de Lorena, a vantagem do chefe era não dar aumento a ela – ou, então, sair de uma situação desconfortável. “A pessoa que pratica gaslighting está, enfim, visando beneficiar-se às custas do desrespeito ao outro. Mas, se confrontada com a situação, não admite”, pontua Simone.

Ela recorda o caso de outro gestor que, cobrando hora extra dos subordinados, sempre afirmava que na véspera havia permanecido no escritório madrugada adentro, sendo que os funcionários sabiam que tinha ido embora por volta das 10 da noite. “Ele insistia em sua versão falsa até quando o viam entrando no carro. Dizia que eles o tinham confundido com outra pessoa ou que só havia ido pegar algo no veículo e voltado. É comum quem faz gaslighting não admitir as próprias mentiras e distorções da realidade, reafirmando sua versão dos fatos e defendendo seu ponto de vista até o fim”, afirma Simone.

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“Eu me sentia um lixo”

O psicanalista paulistano Jorge Forbes lembra que ninguém gosta de ser desmascarado, mas que a insistência em desmentir os fatos, como no caso do chefe citado ou em situações envolvendo políticos que, embora tenham áudios vazados e sejam surpreendidos com malas de dinheiro, alegam inocência, pode indicar ausência de freios morais.

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“Há quem, mesmo mentindo para não ser descoberto ou distorcendo os argumentos do outro, experimente um desconforto pelo que fez e prometa a si mesmo não repetir, ainda que reincida”, ele analisa. “Mas existe quem não tenha crise alguma de consciência e só esteja interessado em proteger a própria lógica, sem ouvir, sem se preocupar, sem se sentir mal.”

É difícil traçar um perfil exato do abusador nesses casos. “Embora não dê para generalizar, podemos falar em pessoas que têm muita dificuldade em admitir os próprios erros e, no fundo, possuem uma insegurança que as fazem diminuir o outro para se engrandecerem”, resume a psicóloga Julia Maria. Segundo ela, às vezes, elas podem até sentir prazer ao fazer o outro de bobo.

“É mais fácil uma funcionária passar por situações de desempoderamento do que um funcionário, porque ele ocupa um lugar de privilégio, enquanto ela costuma ser mais questionada e, por isso, cai mais facilmente na armadilha de duvidar de si mesma”, opina Valeska. Ciladas para fazer a mulher hesitar, de fato, proliferam nas empresas. “Por exemplo, se ela se impõe ao receber uma cantada do chefe, é chamada de chata ou mal-amada. Se sobe na carreira, dizem que é porque transou com alguém. De tanto ouvir esse tipo de coisa, ela pode questionar seu mérito”, completa Valeska.

“Tinha ido conversar cheia de razão, mas deixei a mesa do chefe achando que meu pedido não fazia tanto sentido”, Lorena*, publicitária.

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A verdade é que muito mais frases desabonadoras atingem as mulheres cotidianamente. Exemplo? “Você é sensível demais.” Há outras, como “Nossa, quanto escândalo por uma bobagem!” e “Cadê seu senso de humor?”. Talvez a mais famosa seja “Você está louca?”. As vítimas ficam com a autoconfiança abalada e podem desenvolver ansiedade e depressão.

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Aline Costa, 28 anos, paulista de Hortolândia, lembra com sofrimento de quando trabalhava como assistente em uma escola para surdos e estava grávida pela segunda vez. Era uma gestação de alto risco, devido a um diagnóstico de pré-eclâmpsia que havia recebido na primeira gravidez. Sua pressão estava sempre alta. “Quando precisava sair para a emergência, minha chefe me ligava antes que chegasse ao hospital e me ameaçava dizendo que eu estava abandonando o trabalho, que não podia mesmo confiar em mim e que eu era incompetente”, relata.

Depois, quando teve pneumonia, Aline ficou uma semana afastada. A chefe voltou a atacar acusando-a de estar prejudicando o andamento pedagógico da escola. “Eu me sentia um lixo nessas horas, ficava confusa, me questionava”, conta. “Hoje parei de achar que o problema sou eu”, afirma Aline, já em outro emprego e após muita terapia.

Tentar o diálogo com o agressor é válido, mas nem sempre adianta. “Se a pessoa for sádica e sentir prazer em diminuir o outro, a conversa não será produtiva”, previne a psicóloga Julia. Em empresas pequenas, muitas vezes não há a quem recorrer em casos assim, e a única saída é mudar de departamento ou de emprego. “Disseminar a existência dessa forma de violência é a melhor maneira de preveni-la”, acrescenta.

De acordo com Simone, dificilmente um chefe habituado a tratar os funcionários desse modo agirá assim apenas com uma pessoa. “Portanto, se você costuma sair confusa e triste das conversas, se sente que há algo errado, pode ser bom conversar com colegas para saber se outros estão passando por algo parecido e até avaliar a possibilidade de comunicar ao RH”, indica Simone.

Nesse aspecto, completa a especialista, sofrer gaslighting no trabalho pode ser mais delicado do que em outros ambientes. Vale tomar cuidado com aqueles que aproveitam para fazer fofocas e criar intrigas. “É diferente de quando acontece em uma relação de amizade. Mas há um lado bom. Quanto mais pessoas testemunharem, mais o time das vítimas sairá fortalecido e o agressor intimidado.”

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Qualquer um está sujeito a sofrer gaslighting, não apenas “pessoas fracas”. “O problema é o agressor, que usa os pontos fracos dos outros para diminuí-los e manipulá-los”, diz Simone. “Nunca se deve culpar a vítima.” Valeska, aliás, orienta as mulheres a se unirem. “É importante se organizar e nunca se calar, pois fingir que não está vendo a violência pode causar grande impacto mental”, avalia. “Nos casos de violência de gênero, que as mulheres sofrem, é fundamental tirar do individual e coletivizar, no trabalho e fora dele.”

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  • A prática de interromper uma mulher quando ela está falando.

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