Taís Araújo, o advogado, o jogador e a negra que nunca existiu
Como seria o Brasil se a Revolta dos Malês e a corajosa Luiza Mahin tivessem triunfado? Talvez não aparecessem tantos racistas para espalhar bananas nas redes sociais
A semana termina com o amargo gosto do racismo. Foram dois ataques quase simultâneos, no dia 31/10, e pelas redes sociais. As agressões, que parecem orquestradas, associaram dois negros a primatas. No Facebook da atriz Taís Araújo foram escritas estas injúrias: “Te pago com banana” e “Me empresta o seu cabelo para eu lavar a louça”. E no Instagram do jogador Michel Bastos, do São Paulo, postaram: “Macaco, negro safado, respeita a torcida. Otário, vagabundo, faz por merecer o dinheiro que recebe”.
Personalidades públicas, cercadas de apoio popular, eles se defenderam e denunciaram o crime. A imprensa cobriu. Por esses episódios dá pra calcular o quanto sofrem os negros sem o glamour e o prestígio de uma estrela da Globo e de um desportista da primeira divisão. Nos becos e nas vielas do Brasil “negro safado” ainda apanha calado – embora a prática de racismo seja crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão desde 1988 com a promulgação da Constituição Federal. Tudo aqui demora muito.
Foram necessários 133 anos para a Ordem dos Advogados do Brasil corrigir um atentado aos negros. Aconteceu também nesta semana (3/11), na Universidade Mackenzie, em São Paulo. Finalmente, a OAB concedeu, ali, ao preto baiano Luiz Gama o título de advogado. Até a sua morte, em 1882, ele havia defendido nos Tribunais do país cerca de 500 escravos. Rejeitado nos cursos de direito, estudou e escarafunchou as leis por conta própria para enfrentar os juízes. Poeta, abolicionista de discurso corajoso, é um dos líderes negros do país. Para as novas gerações que nunca ouviram falar nele, Gama agora deixa de ser um busto de bronze no paulistano Largo do Arouche e se torna inspiração. Até na morte ele polemizou: a multidão que acompanhava seu enterro no Cemitério da Consolação vaiou o padre que, ao fazer a encomenda do corpo, referiu-se ao morto como um pecador. Era um brigador. Seu pai, um branco que devia até as calças nas casas de jogo de Salvador, vendeu-o como escravo. Gama tinha 10 anos. Pude rever ontem sua biografia no recém-lançado “O Advogado e o Imperador – a História de um Herói Brasileiro”, livro de Gilberto de Abreu Sodré Carvalho.
Entrei em contato com o escritor para falar sobre a mãe de Gama, a brava Luiza Mahin. O país sabe pouco sobre essa mulher que infundiu no filho o espírito libertário e o desejo por justiça. A História do Brasil lhe deve muito e, pode demorar mais dezenas e dezenas de anos para reconhecer sua importância na luta dos negros e na batalha das mulheres. Talvez seja a primeira feminista do país. Uma das mais importantes, com certeza ela foi. Gilberto me confirmou que Luiza Mahin viveu em Salvador, era inteligente, destemida, forte, tinha vindo do Golfo da Guiné, na África, onde conheceu a escrita árabe e também a religião muçulmana. E, segundo o autor, não aceitava a igreja católica, que ela identificava com a opressão e o abuso. Luiz Gama dizia que sua mãe não tinha credo, era amorosa, vibrante, e que “esteve presa mais de uma vez, na Bahia, somo suspeita de envolver-se em planos de insurreição de escravos”. Separado dela aos 8 anos, Gama a procurou a vida toda. Luiza havia fugido para a Corte, no Rio, e pode ter morrido surrada na cadeia ou – como creem alguns – ter sido deportada para a África. No entanto, vários estudiosos e historiadores desdenham de Luiza, colocam na página do folclore, tratam como mito ou negrinha que nunca existiu.
Se negras em 2015 são invisíveis, imaginem no Brasil branco dos anos 1830. É melhor dizer que Luiza não veio ao mundo a admitir seu protagonismo. Não era uma escrava. E como vendida quitutes pelas ruas de Salvador, assumiu a missão de fazer a comunicação entre os líderes negros insatisfeitos com o Império escravocrata. Por seu temperamento e astúcia, pela clareza de ideias e a defensa do negro livre, é bem provável que Luiza tenha participado ativamente da elaboração da Revolta dos Malês, ocorrida em 1835 – ela não serviria apenas de mensageira entre os cabeças. Chefiado por pretos muçulmanos, esse levante carregava muito mais que o caráter de guerra santa e oposição ao catolicismo. Foi, sim, um episódio político de enfrentamento aos bancos. Delatada às autoridades por uma traidora, a revolta se antecipou: a Guarda Nacional e a polícia local atacaram os negros na madrugada de 25 de janeiro, antes do movimento eclodir. Os negros, então, reagiram desorganizadamente. Um banho de sangue se fez. Conta Gilberto Sodré Carvalho, neste seu romance histórico, que Luiza chega à rede em que dorme seu garoto e lhe diz: “ ‘Não acorda, filho. Vou fugir daqui. Meti-me em embrulhada com a polícia e vou para o Rio e Janeiro’… O menino não abre os olhos, não quer ver a mãe na hora da despedida”.
Senti vontade de recordar Luiza Mahin tão logo soube dos ataques a Taís Araújo. Fico imaginando como seria, hoje, a vida das negras e dos negros brasileiros caso tivessem triunfado as rebeliões do tempo de Luiza. Há indícios da ação dela em pelo menos três das sete ocorridas em Salvador, no período. A internet não estaria infestada de crime. Negro não apanharia e não só atrizes e jogadores de futebol mereceriam espaço na mídia, na vida. Estariam livres da turba de insanos que ainda não percebe que a escravidão foi o erro cometido pelo Brasil contra a humanidade. Aliás, nem sobre racismo falaríamos mais.