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Conheça o Slam, a batalha da poesia

Para além dos livros e dos círculos acadêmicos, os versos retomam a tradição oral com nova roupagem, em uma cena aquecida pelas disputas com sentimento

Por Liliane Prata Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 12 dez 2017, 17h11 - Publicado em 18 nov 2017, 09h10

“A garganta é a gruta que guarda o som/A garganta está entre a mente e o coração/Vem coisa de cima, vem coisa de baixo e de repente um nó (e o que eu quero dizer?)/Às vezes, acontece um negócio esquisito/Quando eu quero falar eu grito, quando eu quero gritar eu falo, o resultado/Calo.” Roberta Estrela D’Alva, 39 anos, entoa seu poema Garganta no palco, e sua voz poderosa deixa a plateia emudecida.

Atriz-MC, diretora musical, poeta, nascida em Diadema, ela é conhecida no circuito alternativo de São Paulo também como slammer – nome que se dá a quem participa dos poetry slams, ou batalhas de poesia falada, os campeonatos em que poetas são avaliados por seus versos declamados. Roberta foi finalista da Copa do Mundo 2011 em Paris, conquistando o terceiro lugar.

Foi em um bar periférico do norte de Chicago que o slam nasceu, quando o operário da construção civil e poeta Marc Kelly Smith fez um show chamado Uptown Poetry Slam – o primeiro do gênero.

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As regras simples criadas por Marc em 1986 permanecem. Não vale usar figurinos, acessórios, cenário ou acompanhamento musical. A poesia, que deve ser autoral, precisa ser recitada em até três minutos.

Em 2008, apaixonada pelos embates depois de uma viagem aos Estados Unidos, Roberta resolveu trazê-los para o Brasil e organizou em São Paulo o primeiro slam. Foi um sucesso. “As pessoas estavam esperando um espaço de diversidade como esse”, diz ela, comemorando o aumento das slammers.

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O longa-metragem Slam – Voz de Levante, que Roberta dirigiu com a documentarista Tatiana Lohmann, levou dois prêmios no Festival de Cinema do Rio, em outubro.

Ela ainda organiza, com o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, companhia de teatro hip-hop, o Slam BR, etapa nacional que reúne os que receberam a maior nota nas edições regionais. Atualmente, são cerca de 90 pelo país, em 15 estados. A grande final foi em outubro, no Sesc 24 de Maio, na capital paulista.

Roberta Estrela D´Alva trouxe o slam para o Brasil (Pablo Saborido/CLAUDIA)

É uma grande novidade porque, no Brasil, a maioria ainda acredita que poesia é algo exclusivo de nomes consagrados da literatura, como Cecília Meireles e Carlos Drummond de Andrade. Há quem a considere sofisticada ou mesmo chata e difícil de entender.

“Em livrarias, quando anunciam leitura de poesias, começa a dar uma esvaziada. Muitos fogem”, observa Roberta. Tudo diferente do que vem acontecendo em bares, casas noturnas e espaços culturais onde as batalhas são realizadas.

As plateias são numerosas e, além de interessadíssimas, torcem pelos candidatos. As rimas saem da boca de poetas populares, urbanos; muitos são jovens e vêm da periferia.

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“Os slams mostram que a poesia não é coisa de livro nem está restrita ao que a gente aprende na escola. Pode abordar temas relacionados a nossa cultura e à atualidade, como o combate ao machismo”, acrescenta a atriz e roteirista paulistana Maria Giulia Pinheiro, 27 anos, que participa dos combates desde 2013.

Boa parte dos slammers está sedenta para se posicionar sobre temas como racismo e privilégios de classe. Não que falte o eu lírico sofrendo por amor, claro. Há embates específicos sobre a dor e a paixão, além dos focados em determinados perfis, caso do grupo paulistano Slam do Corpo, formado por surdos e ouvintes que se apresentam ao mesmo tempo falando e interpretando em libras.

“O slam é um lugar de respeito a todos, com atenção ao que o outro tem a dizer”, pontua Roberta. Para ela, a poesia traz a capacidade de expandir o imaginário, de pensar fora do mundo convencional.

“Faz muito sentido que as vozes geralmente silenciadas queiram aproveitar essa oportunidade”, opina. Nos livros da escola, assim como nos espaços de poder como um todo, a voz predominante é a do homem branco heterossexual, mas não é assim nos slams, que colocam o microfone na mão de mulheres, homossexuais e negros.

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As Minas

Luz Ribeiro ganhou o campeonato nacional em 2014 (Pablo Saborido/CLAUDIA)

É assim – quando o palco silencia, depois de uma batida do DJ – que a paulista Luz Ribeiro, 29 anos, vencedora do Slam BR-2014, dá vida aos seus versos sobre feminismo, ancestralidade, periferia.

Filha de empregada doméstica, Luz, moradora de Guarulhos (SP), conta que sua trajetória foi repleta de obstáculos diários. “Eu gostava de escrever, mas levei tempo para desenvolver a confiança necessária para expor meus textos”, afirma ela, que se formou em pedagogia e em educação física.

“Na escola, um colega disse que eu não tinha dom para fazer poesias. Dá para imaginar o que representou para mim pegar um avião rumo a Paris para disputar a final?”, pergunta, referindo-se à viagem que os vencedores do Slam BR levam como prêmio.

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“Sempre tive prazer em competir, característica não muito valorizada nas mulheres”, revela. “Eu jogava futebol, lutava caratê, mas não me destacava em nada o suficiente para as disputas.”

Quando descobriu os slams, Luz pensou: “Eu posso ganhar. Quem sabe?”. Dito e feito. Depois de saber da existência de um time 100% feminino em Brasília, ela formou, com as poetas conterrâneas Mel Duarte, 28 anos, Pam Araújo, 23 anos, e Carol Peixoto, 29 anos, o grupo Slam das Minas-SP.

Mel Duarte começou a declamar em saraus aos 18 anos (Pablo Saborido/CLAUDIA)

“Comecei a me envolver com saraus aos 18 anos”, lembra Mel. “Por muito tempo, fui a única mulher. Depois, tinha mais uma comigo.” Nos saraus, não há pontuação, rankings nem necessidade de apresentar um poema autoral, mas, assim como nas competições, é preciso conquistar o público.

“O slam apareceu na minha vida como um desafio, um jeito diferente de apresentar minha poesia. Você leva mais a sério, pois está lá para ganhar.”

Mas, de novo, a pouca representatividade das mulheres a incomodava. “Era desanimador, porque os poemas delas não deixavam nada a desejar em relação aos deles. Mesmo assim, as meninas tinham receio de se mostrar”, comenta. “E era triste ver como as próprias mulheres estavam mais habituadas a votar em homens”, completa, referindo-se ao júri popular, que decide quem leva o troféu.

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Há variações no modo como é formado o júri, mas, geralmente, são “pescados” na plateia espectadores de diferentes perfis para avaliar cada poeta com uma nota de 0 a 10, baseando-se na força das estrofes e da performance.

“Somos desestimuladas a nos expressar e, como eles, tendemos a achar que a voz masculina tem mais credibilidade, por causa do machismo. Mas isso está mudando”, garante Mel. Seu orgulho é ver as poetas se apresentando com segurança e hipnotizando o público Brasil afora.

Como Luz e as demais integrantes, ela não apenas compete como também leva apresentações artísticas para eventos sem pontuação envolvida – como se fossem shows musicais. “Também é incrível perceber como o slam tem trazido mais visibilidade para a poesia”, acrescenta Mel.

E por que não a outros tipos de texto? “A gente vive em um tempo em que é difícil parar para ouvir qualquer coisa”, afirma Luz. “Acho que a poesia, de modo muito próprio, dá aquela silenciada. Ela cria a possibilidade de você se salvar, diariamente, em um mundo que está urgindo e demandando mil tarefas”, diz Mel.

“A poesia é uma máquina do tempo. Ela transcende esta vida da matéria, do capitalismo, do trabalho”, acrescenta Roberta.

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“Escrever poesia é falar da sua subjetividade máxima, se expressar em todas as suas vontades mais secretas”, afirma Giulia. “E tem o mérito de tocar em lugares profundos dentro da gente. Por isso, merece ser escrita por qualquer pessoa que desejar e também ser lida, no cotidiano, em casa ou no metrô.”

Alívio e Poder

Ingrid Martins, 21 anos, cabeleireira e designer, ganhou na final da Slam das Minas-SP, em outubro, que CLAUDIA acompanhou. A plateia, com 650 pessoas, vibrou com seu poema que, com base em um diálogo com Deus, questiona a maneira como ele é representado.

Mais do que criticar o racismo, escancara as dores deixadas por ele. “Para mim, escrever é uma questão de alívio”, conta Ingrid. “Pode ser um poema sobre a truculência da polícia militar ou sobre o amor impossível. De qualquer modo, trata-se de uma forma de botar meu sentimento para fora.” A emoção está com essas poetas. E o empoderamento também.

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A Voz Dela

Trecho do poema Delitos, de Mel Duarte

Fim da noite, fim de festa, nosso começo

Toque sem pressa, vontade de se despir sem anseio

Dançar sem ritmo certo, passo a passo seus movimentos eu aprendo

Suor escorre do rosto, suas mãos alcançam meus dedos, eu me rendo…

Sem regras e horários, só o momento

Eu, você, um certo lugar, tanto faz o contexto

Já é tarde, a música para, eu recomeço

Você me abraça, oferece peito, eu adormeço

Juntos, nos afogamos num mar de devaneios

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