O que o Marco do Saneamento tem a ver com o aumento da renda feminina?
Teresa Vernaglia, presidente da BRK Ambiental, explica como mudanças provocadas pela lei podem beneficiar as mulheres
Lavar as mãos com sabão em água corrente por 20 segundos é uma das melhores maneiras de se proteger contra a Covid-19. O processo elimina resquícios do vírus sobre a pele. Seria a receita ideal se quase 20% dos brasileiros não tivesse acesso à água tratada. São cerca de 35 milhões de pessoas que não podem simplesmente abrir as torneiras em sua casa, tomar um banho após voltar do mercado ou lavar as compras.
A questão da água, escancarada nessa pandemia, é alarmante. Cerca de 100 milhões de pessoas, ou 47,6% da população, não tem coleta de esgoto. E do esgoto recolhido apenas 46% é tratado. Os dados são do Ranking do Saneamento Básico 2019, elaborado pelo Instituto Trata Brasil com base nos dados do Ministério do Desenvolvimento Regional.
Ok, a gravidade da situação foi compreendida. Mas o que isso tem a ver com as mulheres? Para começar, com a desigualdade na divisão das tarefas do lar, as mulheres acabam responsáveis por limpeza e cuidados das crianças e idosos. Elas que lidam diretamente com a falta de água quando precisam cozinhar ou com os filhos com doenças gastrointestinais, situação facilitada pela ausência de esgoto. Elas estão mais em contato com a água não tratada e ela fica vulnerável especialmente durante o período menstrual – imagina não ter água limpa para se lavar? O levantamento mais recente indica que uma em cada quatro brasileiras vive com acesso precário ao saneamento. Isso as afasta dos estudos e do trabalho, reduzindo a renda familiar.
“Nos últimos anos, o volume dos investimentos gira em torno de 10 a 12 bilhões por ano. Nesse ritmo, a universalização do saneamento do país só seria alcançada em 2050”, explica a engenheira Teresa Vernaglia, presidente da BRK Ambiental desde 2017 e especialista na área do saneamento. Entretanto, o cenário pode mudar nos próximos meses. Em junho, foi aprovado o Marco do Saneamento, que facilita a privatização dos serviços no setor. Em julho, a lei foi sancionada. Na prática, é uma tentativa de destravar um sistema complexo e burocrático. Segundo pesquisa do Portal G1, em julho 146 projetos estavam paralisados. Teresa explica como aconteceria a privatização e como isso pode afetar as mulheres.
Por que privatizar esse serviço?
Com o investimento atual, demoraria até 2050 para termos saneamento universalizado no Brasil. A estimativa é que a meta seja alcançada em 2033, podendo chegar a 2040, como permite a lei. Isso exige um investimento anual superior a 20 bilhões, algo que o Estado não conseguiria fazer. Só que para o setor privado participar é necessário que ele tenha certas garantias, regras claras para compreender o que deve acontecer nos próximos 35 anos, que é quando dura, em média, uma concessão. Vai precisar de segurança jurídica e regulatória. São, por exemplo, 10 mandatos de prefeito.
Como as concessões funcionavam até julho?
Hoje, 94% do saneamento no Brasil é feito por empresas públicas e o restante por empresas privadas. Mas cada contrato era feito de um jeito, não existia uma regra única como acontece no setor da energia. Não tem uma agência regulamentadora única também. Isso complicou muito no caso da Covid-19, por exemplo, porque poderíamos ter um direcionamento que oferecesse mecanismos para quem tem renda menor e é mais vulnerável.
O que pode mudar na vida das mulheres com o Marco?
Cada 1 bilhão de reais investido em saneamento gera em torno de 60 mil empregos, isso já poderia beneficiar muitas famílias, aumentando a renda. Além disso, deixaria as pessoas menos suscetíveis a doenças e contaminações, algo que impacta diretamente as mulheres. O Brasil está na posição 112 de 200 países em relação a saneamento. Somos uma das grandes economias do mundo em termos de importância e temos crianças morrendo com diarreia porque vivem perto de esgoto a céu aberto. É um atraso muito grande. Hoje, sabemos que essas pessoas mais expostas são as mais vulneráveis durante a pandemia, porém o mesmo se repete quando há surtos de dengue ou chikungunya. Isso aumenta a pressão do sistema de saúde e fragiliza ainda mais uma parcela da população. Entre os nossos vizinhos, temos o exemplo do Chile, que já tem o serviço universalizado e a atuação de empresas privadas.
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