Quem acolhe as mães das vítimas da chacina do Jacarezinho
A chacina entrou para a história do estado do Rio de Janeiro com mais de 29 pessoas baleadas em apenas sete horas
Quando Eliene Vieira entrou na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, na tarde desta quinta-feira (6), o encontro com mulheres que perderam seus filhos foi silencioso e dolorido. “Elas estavam devastadas e chorando muito. A fala não saía e, no máximo, o que conseguimos fazer foi nos abraçar”, diz a líder comunitária, que faz parte do Mães de Manguinhos, coletivo criado para acolher as famílias da violência do Estado.
Por meio do projeto, a líder comunitária oferece suporte emocional e direciona mães e parentes das vítimas após a perda de seus entes. “O primeiro passo dado é o de acolhimento, porque essas famílias estão dilaceradas e o luto tem que ser respeitado. Após isso, caso algum familiar queira dar encaminhamento para os órgãos competentes, fazemos essa orientação também”, diz Eliene, que divide o trabalho com mulheres que perderam seus filhos de forma violenta.
Chamada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro de Operação Exceptis, a chacina entrou para a história como a mais letal do estado do Rio de Janeiro. Segundo o Instituto Fogo Cruzado, o episódio deixou 29 pessoas baleadas durante sete horas, sendo que duas vítimas de bala perdida estavam no vagão do metrô próximo à comunidade.
Em uma coletiva de imprensa, as autoridades afirmaram que 25 pessoas morreram, incluindo o policial civil André Farias, que foi baleado na cabeça. A motivação da operação, segundo a Polícia Civil, era uma denúncia de aliciamento de crianças e adolescentes para atuação no tráfico de drogas. O resultado, além das mortes e do pânico instaurado na comunidade, foi a apreensão de granadas, fuzis e pistolas.
A Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ (Ordem dos Advogados do Brasil) declarou que, até o momento, 16 corpos foram identificados pela família, sendo que sete deles tinham menos de 23 anos.
“Precisamos nomear nossas vítimas e afirmar que é uma chacina, um massacre”
Vanessa Olivieira, jornalista
Segundo o delegado Rodrigo Oliveira, as denúncias de abuso de autoridade relatadas pelos moradores, que tiveram casas invadidas, foram descartadas pela instituição. “A única execução que houve foi a do policial, infelizmente. As outras mortes que aconteceram foram de traficantes que atentaram contra a vida de policiais e foram neutralizados”, apontou aos jornalistas.
No entanto, a versão vai na contramão das cenas observadas na comunidade. Juliana Sanches, advogada criminalista e Coordenadora Pedagógica do Instituto Defesa da População Negra, iniciativa que acompanha os familiares e moradores da comunidade neste caso, contesta o delegado.
“Não há nada que justifique o cenário de 25 mortes em poucas horas. Nós temos imagens e relatos de moradores que confirmam execução dentro do quarto de uma criança, com a família dentro da casa. Nós temos imagem de um rapaz executado sentado em uma cadeira de plástico. Não foi legitima defesa. Foi execução de vidas negras e periféricas por agentes do Estado. E isso é inaceitável”, relata.
Operações proibidas
Após a morte do estudante João Pedro, 14 anos, em maio de 2020, atingido por uma bala de fuzil durante uma operação policial no Salgueiro, no Rio de Janeiro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin proibiu operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia de coronavírus.
Analisada pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF), a medida surtiu efeito e apresentou queda no número de mortes. De acordo com o estudo, 30 vidas teriam sido preservadas no mês de julho com a proibição de operações, que tiveram queda de 78%. Já o número de mortes em tiroteios reduziu em 70%, enquanto o de feridos caiu 50%.
Para Juliana, há um disfarce da política de extermínio com o discurso da redução dos índices de violência e combate ao tráfico de drogas. “Enquanto não avançarmos no debate de descriminalização das drogas e formos governados por políticos que apoiam a letalidade policial, continuaremos executando vidas negras, inclusive a de crianças, que a Polícia Civil diz proteger. Isso é genocídio”, sinaliza.
A jornalista Vanessa Oliveira, organizadora do livro De Bala em Prosa – Vozes da Resistência ao Genocídio Negro (Elefante), lembra que, se a preocupação com a segurança e formação dessas crianças e jovens fosse real, alunos não precisariam ter que se proteger de tiros dentro da escola. “Como vai ser o fim de semana dessas pessoas? Se tivessem realmente preocupados, não tinham executado uma pessoa na frente de uma criança de 9 anos.”
Com a chancela do governador Cláudio Castro (PSC), a ação infringiu a decisão do STF, que abre exceção para casos extraordinários, mas com a condição de notificar o Ministério Público antes. Para o EL PAÍS, o MP-RJ informou que o aviso foi feito às 9 horas, ou seja, após a entrada dos agentes no Jacarezinho.
“A decisão do STF não é cumprida, pois vivemos uma política de morte. O governo federal e o governador do Rio de Janeiro adotam discursos que legitimam a violência policial. Isso é genocídio praticado pelo Estado. O fato é que não há justificativa da excepcionalidade da ação de ontem, no auge da pandemia, com tantas execuções. Isso precisa ser urgentemente apurado e todos os envolvidos precisam ser responsabilizados, na esfera civil e criminal”, aponta Juliana.
A morte pelo vírus, pela bala e pela fome
O cenário pandêmico acentua ainda mais as condições que pessoas periféricas são expostas sistematicamente. “Todos os dias recebemos pedidos de ajuda, as pessoas estão com fome. Tem gente morrendo por Covid-19 e por outras doenças também, sem chances de leitos”, afirma Eliene sobre a realidade das favelas.
“O que tem que ficar claro é que essa ajuda é pra salvar vidas que estão sendo tomadas, é pela vida e sempre será pela vida. As pessoas estão apavoradas por saberem que a qualquer momento tudo pode acontecer. Por isso, estamos cobrando dos respectivos órgãos competentes que façam o seu papel de cobrar e monitorar todas as ações”, explica a líder comunitária.
O que acontece na vida dessas pessoas antes do encontro da bala com o peito? Esse questionamento escancara os suscetivos golpes sofridos pelos familiares desses indivíduos, principalmente do ponto de vista das mães. “Falamos de mulheres pobres e majoritariamente negras, que estão no pé de todas as estatísticas. Independentemente se a pessoa morreu de bala perdida ou se era ator no tráfico, quantas coisas foram negadas até que esse momento chegasse? Quando elas chegam no IML e enterram seus filhos, também são tratadas como criminosas”, aponta Vanessa.
Qual será a resposta do Estado?
Rever as exceções de operações policiais apenas durante a pandemia pode ser comparado a um curativo sem cola e ineficaz na proteção. A jornalista defende que a mudança seja estrutural e para além da crise sanitária.
“Nem uma criança ou uma mulher indo comprar manteiga chocou o Estado. Há um aceite das mortes violenta e desse corpo morto, que foi fundada na escravidão e no genocídio da história do Brasil. Além disso, tem uma parcela muito grande da população que relativiza quem é cidadão ou não e qual mãe merece ou não chorar. Eles normalizam o sofrimento e derramamento do sangue”, afirma.
A solução eficaz exige esforço e escuta. Vanessa lembra que a sociedade explana quais são as mudanças urgentes há dezenas de anos, só que não é escutada. Para a jornalista, o respeito a essas vidas é necessário desde a comunicação da notícia às decisões judiciais.
“A primeira morte acontece pelo fuzil; a segunda pela associação ideológica e desonesta de tratar o indivíduo como suspeito ou bandido por conta do território que vive e a terceira pela morosidade policial, que deve afastar meia dúzia de agentes, quando o problema está na corporação. É um processo que não para de enterrar a comunidade ao ponto de nos reduzirem a números”, conclui.