Mãe de pet existe? O termo invisibiliza a sobrecarga das mulheres com filhos
Quando não é com conotação de brincadeira, leva ao questionamento do que é a maternidade e reduz a enorme obrigação social de educar
az algum tempo que o Dia das Mães virou campo de guerra nas redes sociais. É só esperar a primeira pessoa postar uma foto com seu cão ou gato e legendar: “mãe de pet”. Faísca na pólvora para a explosão acontecer.
Os argumentos chegam de todos os lados e levam a duas questões essenciais. A primeira delas é sobre o que é ser mãe. Depois, a respeito do espaço que os pets passaram a ocupar em nossas vidas. Esse debate ganhou mais fôlego recentemente, quando uma rede gigante de pet shops anunciou uma licença “peternidade” para colaboradores que adotassem animais. Logo surgiram pessoas na internet questionando o que a empresa oferece às funcionárias que são ‘mães de crianças’, especialmente durante a crise causada pela pandemia da Covid-19.
Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, há trinta anos, o Brasil não registrava uma participação feminina tão baixa no mercado de trabalho. Além dos empregos remunerados perdidos, o trabalho invisível aumentou e metade das brasileiras passou a cuidar de alguém durante a pandemia. As crianças ficaram em casa e a divisão nada igualitária de responsabilidades aumentou a já existente sobrecarga feminina. Com tanto no nosso prato, o embate entre mãe de pet e de gente ficou mais sério.
A humanização dos pets
“Prefiro bicho do que gente”: essa é a frase que Sophia Porto, psicóloga clínica e fundadora do projeto Cãodeirante, que ajuda pets com deficiência e pouco visados para adoção, afirma ter ouvido muitas vezes ao início de uma discussão do tema.
“Acho complexo comparar cuidar de um animal e de uma pessoa. Se colocamos as relações diferentes sob o mesmo prisma, perdemos a essência de cada uma delas. Os vínculos são distintos”, acrescenta. Para ela, há uma reflexão importante quanto ao status que damos aos pets atualmente.
“Parte da responsabilidade é da indústria, claro, do marketing visando ganho de dinheiro, mas a crise que estamos tendo nas relações interpessoais fala mais alto”, argumenta ela, que atua na causa animal há anos e já trabalhou com pessoas que perderam seus bichos, fazendo acolhimento durante o luto.
“Qual o motivo para estarmos humanizando seres tão leais que, quando treinados, são fiéis e previsíveis? Parece que essas qualidades são algo que buscamos e não estamos achando em outro ser humano. A natureza do animal nos acalma, pois sabemos o que esperar, não há riscos. No convívio com o homem, a dinâmica não é a mesma”, completa Sophia.
“Se o cachorro começar a latir, poucas pessoas vão olhar feio, mas se meu filho chorar, vão chamar de birrento e falar que não dei limites”
Tatiane Generali, criadora do Mamãe Acolhe
A psicóloga Ana Volpe, especializada em psicanálise pela Universidade de São Paulo, acredita que é difícil que pessoas sem pets concordem que um cachorro ou gato seja tratado como uma criança. Já os tutores vão defender exatamente isso.
“Como as emoções estão afloradas, a discussão é totalmente polarizada”, explica ela. “Os pets estão mais humanizados e isso é uma consequência da escolha de muitas pessoas de não ter filhos, uma opção particular e que não é errada ou certa”, observa. Para ela, o pet ocupa o espaço de amor, aconchego e acolhimento.
A descrição é perfeita para Milena*, que tem a cadela Filipa como seu xodó. “Senti uma pressão muito grande dos meus pais e dos pais do meu marido para ter filhos. Tentamos e não rolou. Enfrentei um processo para entender essa situação e encontrei na Filipa uma maneira de suprir essa ausência. Sou mãe de pet e acho que o sentimento de amor é o mesmo, de querer o melhor para ela. Não deixa de ser uma vida e eu dou a ela tudo que posso, sem exageros, claro”, afirma.
A complexidade da mãe
Definir o que é a maternidade é uma ação praticamente impossível. São muitos os conceitos em culturas e tempos diferentes – quase todos banhados pelo machismo estrutural. Ter um filho sempre foi e ainda vai muito além do laço e do propósito de futuro. Nas construções sociais, a mulher gestante, com filho pequeno ou criança, perde espaço no mercado de trabalho, ganha muitas (se não todas ) responsabilidades, além da companhia constante da culpa.
“O pediatra e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott, influente no campo das teorias das relações objetais e do desenvolvimento psicológico, falava muito sobre a função materna. Ele dizia que não precisa ser exercida somente pela mãe, mas pelo pai ou por uma avó, por exemplo. É o acolhimento da criança e o suporte afetivo. São três os termos que ele usa: holding (segurar), que simboliza o suporte; handling (lidar), que é o cuidado; e apresentação dos objetos”, aponta Ana.
Na terceira função, Winnicott explica que é como se fosse a apresentação da realidade. A mãe mostra um objeto ou uma manipulação que satisfaz as necessidades do bebê. Isso leva à percepção de ser capaz de criar objetos e ele entende o mundo.
Para Cleo Holanda, psicólogo clínico, quando falamos do papel da mãe na criação e educação dos filhos, podemos destacar a provisão das necessidades emocionais básicas, biológicas, mentais, construção de crenças, valores e princípios. “São fatores determinantes para o ser humano. Por isso, podemos adjetivar a mãe como ‘uma ponte para o destino’ deste indivíduo. A mãe é uma das colunas essenciais para o crescimento da criança, devemos olhar com muita atenção e dar a devida importância para essa relação tão singular”, aponta.
“A natureza do animal nos acalma, pois sabemos o que esperar, não há riscos. no convívio com o homem, a dinâmica não é a mesma”
Sophia Porto, psicóloga e fundadora do projeto Cãodeirante
Tatiane Generali, idealizadora do projeto Mamãe Acolhe, uma iniciativa para levar uma rede de apoio para mães de crianças na primeira infância, percebe o impacto dessas responsabilidades sobre a mulher. “Sou mãe do Miguel e tenho um gato, o Snow, mas acho que não tem como comparar a criação dos dois”, enfatiza.
“A mãe de pet não é pressionada em vários aspectos que a mãe de criança é, especialmente no processo de criação e educação desse ser para a sociedade. Se o cachorro começar a latir, pouquíssimas pessoas vão olhar feio, mas se meu filho começar a chorar ou gritar, já vão taxá-lo de birrento, vão falar que eu não fui boa na hora de impor limites e por aí vai”, conta Tatiane.
–“A mãe de pet nunca vai ser excluída de uma seleção para uma vaga de emprego, ninguém vai perguntar com quem ela vai deixar o cachorro ou o gato quando tiver que trabalhar mais tarde. Com os animais, a gente consegue um hotel, uma creche, gastando pouco em comparação ao que pagamos por instituições para os nossos filhos”, ressalta.
Um dos motivos que levou Tatiane a criar a organização foi a falta da rede de apoio que sentiu ao ser mãe longe de sua cidade natal. Com isso, os perrengues aumentaram exponencialmente. “Meu marido foi transferido do interior de São Paulo para o Sul e fui junto. Procurei grupos que pudessem me ajudar e isso fez enorme diferença psicológica para mim. Ao retornar para minha cidade, observei que não existia iniciativa semelhante e criei o Mamãe Acolhe. Hoje, a gente faz diversas rodas de conversa por videochamada e ainda temos um grupo no WhatsApp para ajudar as mães”, revela Tatiane, que também sente que falta reconhecimento do trabalho que recai sobre as mães, algo que dura a vida inteira.
“A sentença ou pressão às mulheres pela maternidade e criação dos filhos deve ser olhada com empatia. Corremos o risco de agir com crueldade ao comparar as mães de pet e as mãe de criança por essas diferenças essenciais”, pondera Cleo.
São muitos os denominadores que pendem para o lado feminino e, mesmo com o passar de gerações, nós ainda carregamos as obrigações da maternidade sem o devido amparo. A mãe de pet talvez tenha que repensar o rótulo, ciente de que isso não significa de forma alguma amar menos seu bichinho, apenas se solidarizar com as mães.
*Nome alterado a pedido da entrevistada