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Famílias inter-raciais: como o preconceito afeta o casal e na criação dos filhos

Mais de 30% das famílias brasileiras é inter-racial. Dos embates causados por vieses inconscientes à construção de autoestima dos filhos, há muitos desafios

Por Ana Carolina Castro
Atualizado em 7 jul 2021, 12h09 - Publicado em 21 jun 2021, 11h00
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á é 2021, mas no imaginário coletivo nacional permanece difundida a imagem da família margarina: o casal branco, heterossexual, monogâmico e cristão. Contudo, na realidade, as formações familiares brasileiras são marcadas por infinitos significantes e, entre eles, a raça.

O censo de 1960 apontava que 8% dos casamentos eram entre pessoas que se autodeclaravam como sendo de raças diferentes. As décadas seguintes registraram um aumento significativo e, em 2010, esse percentual saltou para 31% – é o último dado oficial –, ou seja, quase um terço das uniões matrimoniais realizadas no país são inter-raciais. Pouco se fala sobre elas, porém.

Talvez, a escassez de debates esteja relacionada ao mito da harmonia racial e da forma como a miscigenação ocorreu em solo brasileiro. As relações inter-raciais compõem o tecido social brasileiro desde os primórdios da colonização – principalmente a partir da violência cometida por homens brancos portugueses contra mulheres negras ou indígenas.

Da metade do século 19 à metade do século 20, o país recebeu cinco milhões de imigrantes europeus, em sua maioria portugueses, italianos, espanhóis e alemães. “A miscigenação no Brasil foi um mecanismo de branqueamento da população, uma ferramenta de aprimoramento racial de um país visto como fadado à incivilidade porque era composto, em sua grande maioria, por pessoas negras e indígenas. Foi assim que se deu a chegada de diversos povos de origem europeia ao Brasil, a partir de uma ideia eugênica de que esses povos eram mais aprimorados, mais civilizados, e que fariam o país progredir”, explica Mônica Mendes, psicóloga social e psicanalista que se dedica à pesquisa de relações raciais.

Varal com roupas penduradas
(Foto/Getty Images)

Para ela, a miscigenação é um fator essencial para a validação do discurso da democracia racial. “Essa linha de pensamento é responsável pelo apagamento dos processos de violência e criação desse mito de que aqui no Brasil não existe opressão, todas as raças convivem e que essa mistura é o que faz o país mais forte”, completa Mônica.

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É importante ressaltar que raça não é um dado biológico, mas uma construção social, baseada no fenótipo, a partir das quais são mantidas profundas desigualdades materiais e simbólicas. No Brasil – sem adentrar no tópico do colorismo –, a classificação racial se dá por aparência e não por ascendência, origem e ancestralidade.

“Uma mesma família pode ser considerada inter-racial para um de seus integrantes e não ser para outro. Além disso, uma família pode ser vista como inter-racial no Rio Grande Sul e como branca na Bahia”, explica a psicóloga social Lia Vainer Schucman.

Uma pesquisa realizada por ela mostra que, mesmo 133 anos depois da abolição da escravidão, o preconceito de raça continua bastante disseminado na sociedade brasileira – a ponto de se manifestar até mesmo no seio de famílias inter-raciais.

O estudo, tema do pós-doutorado de Lia, realizado na Universidade de São Paulo (USP) com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), reuniu entrevistas feitas com 13 famílias de diferentes regiões de São Paulo e foi compilado no livro Famílias Inter-raciais: Tensões Entre Cor e Amor, de 2017.

Na obra, a psicóloga compartilha histórias dolorosas de violências sofridas por pessoas negras justamente no ambiente de onde se espera que venha o acolhimento, o familiar – desde a negação da negritude e a negativação dos fenótipos até agressões verbais mais explícitas. Em todos os casos fica evidente que, infelizmente, racismo e amor podem, sim, coexistir.

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Um obstáculo na relação amorosa

Não são poucos os desafios da vida a dois, mas eles ganham novas dimensões quando permeados pelo fator raça. Seja no enfrentamento ao racismo, seja na compreensão e valorização da ancestralidade do outro, as famílias inter-raciais inevitavelmente nascem sob a sombra da disparidade. Por vezes, a convivência como casal traz à tona experiências que nunca haviam sido vivenciadas por um dos lados. É neste ponto que o castelo de cartas do mito da democracia racial começa a ruir.

Juntos há 8 anos, o casal de empresários Luana Costa e Gustavo Silva, ambos de 37 anos, são um exemplo deste cenário nas famílias inter-raciais brasileiras. Ela é negra retinta e ele, branco. “Depois que a gente começou a namorar, ele percebeu que estava sendo tratado diferentemente em lugares que já frequentava quando solteiro. Aos poucos, foi entendendo que o que havia mudado era que ele estava acompanhado de uma mulher negra”, conta Luana.

“A última experiência de racismo que vivemos foi ao levar nosso filho Arthur, de 5 anos, no dentista. Mesmo tendo marcado horário, fomos sendo deixados de lado para que outros pacientes, todos brancos, fossem atendidos. Quando finalmente chegou a nossa vez, fomos tratados com extremo descaso e grosseria. São situações que só quem vivencia percebe a discriminação no jeito de falar, de olhar. É revoltante que meu filho tenha que passar por isso”, afirma Luana.

“Já passamos por várias situações, às vezes mais veladas, outras escancaradas. Por ser uma pessoa branca, meu marido não conseguia denominar o que estava acontecendo”

Elaine Alves, psicóloga

 

Após testemunhar casos de racismo sofridos pela mulher e pelos filhos, Gustavo confessa que adotou uma postura mais defensiva, sempre pronto para o enfrentamento. “Eu fico ligado a tudo, com o olhar mais atento, para proteger minha família”, disse.

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A abertura para o diálogo constante é a chave para superar as dificuldades, segundo o casal, inclusive quando elas se manifestam na divergência de ideias entre eles. “Às vezes, tem coisas que eu preciso explicar para o Gustavo, porque ele ainda não entende algumas situações de racismo velado, como o fato de eu não querer ir a certos lugares se estiver desarrumada. Para ele é natural, porque ele entra e sai sem receio, mas comigo não é assim”, explica Luana.

À espera de Laura, primeira filha do casal, a psicóloga Elaine Alves e o gestor de empresas Michel Alvarenga, ambos de 30 anos, também apostam na conversa como solução para todo e qualquer embate. Juntos há 11 anos, eles se conhecem desde a infância e têm a parceria de longa data como o ponto forte do relacionamento.

O racismo no ambiente familiar nunca foi vivenciado pela dupla. Contudo, eles entendem que a união é constantemente circundada pelo tema e Michel, ainda que seja branco, inevitavelmente vivencia o racismo sofrido pela esposa.

“A partir do momento em que nos casamos, não é só uma questão minha mais. Também conversamos muito sobre preconceito por causa dos nossos filhos que virão”, fala Elaine. “Já passamos por várias situações, às vezes mais veladas, outras escancaradas. Por ser uma pessoa branca, meu marido não conseguia denominar exatamente o que estava acontecendo. Não me coloco no lugar de explicar, porque acredito que a pessoa não precisa de um professor, já que existe uma infinidade de conteúdos sobre racismo por aí”, relata a psicóloga.

“É efeito do racismo estrutural, falamos coisas e temos atitudes que podem levar sofrimento aos outros. Ao longo do nosso relacionamento, diversas vezes eu falei: ‘Isso não foi legal, me magoou’”, conta Elaine, acrescentando que as conversas, ainda que desconfortáveis, sempre resultaram na reflexão e retratação.

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Varal com roupas penduradas
(Foto/Getty Images)

Uma das maneiras de combate individual ao racismo estrutural da sociedade é o letramento racial, que promove a correção no pensar e no agir, desconstruindo formas discriminatórias e naturalizadas na sociedade.

“É preciso estar disposto a ouvir e aceitar quando o outro se posicionar, dizendo que determinada situação lhe causou incômodo, fazendo com que se sentisse violentado”, destaca Fabiana Villas Boas, psicanalista e mestre em psicologia clínica pela USP. O antirracismo é um exercício constante de deslocar-se de si, projetar-se no lugar do outro e então voltar a olhar para si, dessa vez consciente de seus próprios privilégios.

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A densidade aumenta com os filhos

Cientes do desafio de criar duas crianças negras numa sociedade permeada pelo racismo estrutural, Luana e Gustavo se dedicam a positivar a negritude dos filhos. “Ressaltamos que o tom da pele não é um impeditivo para qualquer coisa que eles sonhem fazer, mas também deixamos claro que na nossa casa é de um jeito e lá fora é diferente. Precisamos prepará-los para isso também”, conta Luana.

“Falamos que, infelizmente, o racismo vai acontecer, mas que é importante que eles lembrem que são amados por nós e não podem ser definidos por ninguém”, diz Gustavo. “Nós nos esforçamos para falar sobre igualdade sem trazer sempre o tom de pele para o centro. Não importa a cor de pele, as pessoas precisam ser amadas e respeitadas e ponto”, finaliza Luana.

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“Precisamos entender que a raça é um significante flutuante. Vamos supor que meu filho aprenda que ser negro é lindo. E aí ele vai na escola e alguém o chama de macaco. Ele tem dois significantes: o positivo e o negativo. Mas o significante positivo veio daqueles que o amam e isso lhe dá força para responder e falar que a pessoa é racista. Se as mensagens de casa e de fora forem a mesma, ele pode acreditar que é inferior”, explica Lia.

O antirracismo é um exercício constante de deslocar-se de si, projetar-se no lugar do outro e então voltar a olhar para si, dessa vez consciente de seus próprios privilégios.

 

É preciso romper com a associação do racismo à moral, como se sempre partisse de uma pessoa ruim. “A violência racial pode ocorrer em qualquer relação. Pode ser uma mãe branca que não sabe lidar com o cabelo crespo da filha. Ela entende que o cabelo é difícil e feio, porque é diferente do dela. Ela pode tentar mudá-lo ou aprender a lidar com ele. Há aí o exercício de compreender o diferente”, afirma Fabiana.

Mas não basta um discurso vazio sem referenciais que o validem. “Os pais precisam apresentar o mundo para a criança e escolhem quais narrativas vão usar, se vão inserir só a normativa ou outras. Qual repertório cultural dessa família? Haverá contato com diversidade de pessoas?”, questiona Fabiana.

Elaine entendeu a importância disso quando teve sua família. Passou por uma transição capilar e, com o cabelo natural, trabalhou a autoestima e a construção da identidade da pequena. “Vejo a importância de ser uma referência para ela”, explica.

Para Lia, não há necessidade, na infância, de iniciar discussões sobre racismo explícito a não ser que a criança tenha vivido alguma situação que exigiu acolhimento e esclarecimento. “Nessa fase, é importante positivar e estimular o orgulho racial. As pessoas compreendem o que é racismo pela percepção da estrutura. Imagine que seu filho estuda em uma escola que ensina a história da África, tem bonecas diversas, mas todos os cargos de poder são ocupados por brancos. Você pode não apresentar conteúdo racista, mas a criança percebe, absorve”, diz.

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