Coparentalidade: os novos laços de família e criação conjunta
Amigos que decidem ter filhos e ex-casais que ressignificam a relação para priorizar o bem das crianças, responsabilidades divididas e o amor, sempre
Era uma vez dois adolescentes que começaram um namorico, mas quase imediatamente perceberam que seriam, mais do que outra coisa, grandes amigos. Quando ela se entendeu como lésbica, contou para ele, um homem gay, e reafirmaram o que já sabiam: estariam sempre na vida um do outro. Mais ainda, se um dia tivessem filhos, o fariam juntos. Dezessete anos depois, Natália e Matheus dividem uma casa com a namorada dela e suas duas cachorras na Chapada Diamantina, na Bahia, e se preparam para concretizar esse desejo antigo de coparentalidade. “Não vou pedi-lo em casamento, mas em filhamento”, ri Natália. “Nosso afeto e cumplicidade têm uma permanência e durabilidade maior até do que muitos namoros”, diz Matheus. “Essa é a relação na qual os conflitos que surgem se desfazem de forma mais rápida. Mais do que um amigo, ele é um companheiro de vida”, acrescenta ela.
Ambos vêm de famílias amorosas, presentes e cuidadosas, mas entendem que a estrutura nuclear de um pai e uma mãe não necessariamente dá conta da educação de uma criança. “É um trabalho que exige rotina. Conversamos com muitas mães sobre essa educação mais presente”, conta Natália. “Tenho trabalhado muito com formação comunitária, com a educação na perspectiva da amorosidade, uma criação coletivizada”, diz Matheus.
O bebê deve chegar nos próximos dois anos e, enquanto isso, a dupla se organiza financeira e emocionalmente para esse processo, pesquisando planos de saúde, fazendo economias e mergulhando em processos terapêuticos. “Não temos uma referência de como ter uma criança nesses modelos, então o tempo todo estaremos inventando essa criação, com atenção aos nossos instintos”, diz Natália.
É algo que os também amigos Wesley e Anna estão aprendendo a fazer com o bebê Vicente, de seis meses. Depois de formar parte de um trisal, descobriram a gravidez inesperada e, a princípio, viveriam a coparentalidade a três, até que o outro envolvido na equação decidiu “pular fora”. Já sem nenhum tipo de relação romântica ou sexual, eles ressignificaram o afeto que sentiam um pelo outro numa amizade de extrema cumplicidade em prol da criança. “Aceitei essa situação com medo e fui com medo mesmo”, diz Anna. “Queria estar numa relação estável e numa situação financeira confortável para ter um filho, então não esperava que essa coparentalidade desse certo, mas me surpreendi. Wesley e eu construímos uma relação de muita proximidade e confiança”, relata ela.
Desde a gestação, eles dividiram os custos médicos e materiais, prepararam juntos o enxoval, pesquisaram doulas para o parto. Quando Wesley segurou seu filho pela primeira vez, sem sequer ter feito o DNA que, posteriormente, atestou a paternidade biológica, sentiu o universo se expandir. “Entendi que eu queria ser o pai dele, independentemente de qualquer coisa. Nunca o desejei tanto quanto naquele momento em que o tive nos braços”, lembra.
Hoje, os amigos compartilham a rotina com o filho, que fica na creche durante a semana, enquanto ambos trabalham, e desfruta de passeios nos parques de São Paulo aos fins de semana. A presença dos dois adultos na vida de Vicente é quase constante, desde os banhos e trocas de fraldas até as brincadeiras. Nos momentos de lazer pela cidade, não são poucas as pessoas que se aproximam para elogiar o carinho entre os três e se chocam ao descobrir que Anna e Wesley não são um casal. “Como assim vocês não são uma família?”, perguntam. “É claro que somos uma família!”, respondem. Wesley, que é frequentemente lido como um cara gay, recebe surpresa até mesmo de conhecidos quando descobrem que ele é pai. “Fica parecendo que só pessoas heterossexuais têm direito de exercer a parentalidade. Eu sempre quis ser pai, mas era difícil imaginar isso acontecendo. Pensava em adotar, mas os trâmites são longos. Então, o Vicente é um presente que a vida deu, a forma de realizar esse sonho”, diz.
A coparentalidade estabelecida entre ele e Anna tem muito a ver com suas próprias experiências familiares. Ela, fruto de pais que se separaram quando tinha 3 anos, guarda dores dessa ruptura traumática. Já ele não teve relação com o pai. Era tudo o que não queriam. “Vicente vai crescer sabendo que tem um pai e uma mãe que são super amigos, avós amorosos e vários tios e tias. Essa é a família dele. Quem vai entrar, que entre para somar, para educá-lo numa visão de mundo diversa”, celebra Anna.
De acordo com Elisama Santos, psicanalista e especialista em famílias e educação não-violenta, isso é todo o necessário. “A ideia de família é uma construção social. Se essas pessoas dividem bem os cuidados, se a criança se sente vista, amparada e amada, é o que importa”, explica. Ela lembra que, diferente dos adultos, os pequenos não precisam desconstruir nenhuma ideia pré-concebida e aprendem o que é amor de diversas formas. “O famoso provérbio africano diz que é preciso uma tribo para educar uma criança, e a coparentalidade traz justamente essa ideia de rede de apoio que é essencial.”
A especialista diz ainda que é preciso repensar o modelo de “papai, mamãe e filhos” como uma estrutura sempre saudável. “Nessa família nuclear que conhecemos, a criança é sempre educada por uma pessoa exausta, frequentemente a mãe, que está sobrecarregada. E, se tem um adulto adoecido, isso vai afetar a criança.”
Foi pensando nisso que Maraíza e Mônica, mães de Cauê, 7 anos, decidiram continuar morando na mesma casa depois da separação. Ele adorou não ter que se dividir entre dois imóveis. “Fomos fazendo isso aos poucos, testando se daria certo. E deu. Isso permite que nós duas tenhamos mais tempo de qualidade com ele”, comenta Mônica. “Manter a rotina do nosso filho é um grande benefício, além de não termos que atualizar constantemente uma a outra sobre o que acontece no dia a dia e podermos tomar decisões juntas”, complementa Maraíza.
No final das contas, a solução encontrada por ambas melhorou a amizade e proximidade das duas. Entre os desafios, está o jogo de cintura na hora de viver outros relacionamentos. “São mais negociações, já que todo mundo divide o mesmo espaço e os mesmos horários. Eu tenho uma visão de participação de comunidade, de mais pessoas nessa criação, Mônica prefere concentrar esse processo em nós duas”, diz Maraíza.
Como lembra Elisama, criar uma criança requer diálogo, paciência e adaptação em qualquer arranjo familiar. O consenso só deve ser absoluto no bem-estar de todos os envolvidos, especialmente dos pequenos. “Ainda não sabemos quais discordâncias surgirão, mas queremos que Vicente seja uma criança educada com o máximo de liberdade possível, para ser e expressar quem quiser ser, e amar quem quiser amar”, diz Anna sobre a coparentalidade com o amigo Wesley. Ele só tem uma certeza: “Compartilhamos o objetivo de construir um chão seguro e amoroso onde nosso filho possa deitar, olhar para o céu e sonhar”. E quem não quer o mesmo para suas crianças?