É certo (e seguro) postar fotos dos nossos filhos nas redes sociais?
Pais e cuidadoras estão enfrentando esse novo dilema moral. Quem decide sobre a privacidade de crianças? O que pode acontecer com as imagens nas redes?
A intenção é boa: compartilhar os momentos fofos e únicos dos nossos filhos para que amigos e conhecidos possam acompanhá-los. Mas, uma vez na rede, essas imagens passar a ser do mundo. E aí, o que fazer? Será que é seguro ter o rosto das suas crianças na internet?
Perigos já reais de postar fotos dos filhos
Ella é uma menina de 9 anos feliz, sorridente e cheia de personalidade. Seus pais compartilham cenas do seu dia a dia nas redes sociais: Ella apagando velinhas no aniversário, fazendo caretas para a câmera, brincando no parque. Um dia, os pais vão ao cinema, e antes do filme começar, acabam fazendo parte involuntariamente de um experimento social. Na telona, estampada em meio às propagandas que antecedem o longa, aparece sua filha Ella.
Com a ajuda da inteligência artificial, sua imagem foi alterada para que se pareça com uma adulta. Por meio dessa versão “crescida”, Ella conta que teve seus dados roubados, que está com o nome sujo na praça, que virou meme, que sofreu bullying na escola e, o pior de tudo: que teve seu rosto estampado em imagens de pornografia infantil. Tudo isso a partir das fotos e vídeos de criança que os próprios pais divulgaram nas suas contas.
A situação acima não é real — faz parte de uma campanha de proteção de dados criada pela empresa de telefonia alemã Deutsche Telekom em 2023. Tudo o que a propaganda ilustra, porém, poderia ser verdade: a IA já é capaz de identificar pessoas, “envelhecer” crianças e produzir vídeos falsos a partir de fotos disponíveis na internet, nos chamados deepfakes. Ou seja, todos os problemas enfrentados por Ella podem, pelo menos em teoria, já estar acontecendo.
A campanha da Telekom surge em meio a um comportamento recente de pais preocupados: cada vez mais, eles estão decidindo tirar as fotos que tinham de seus filhos nas redes e optando por não postar novas. Surge, aí, uma pergunta ainda difícil de responder: será que é certo expor nossos filhos na internet?
Criança não consente
“O direito à privacidade no Brasil é uma garantia constitucional e alcança todo cidadão, incluindo as crianças”, diz Patricia Peck, advogada especializada em direito digital, e sócia fundadora do Peck Advogados, que também explica que são os pais que podem autorizar a divulgação dos filhos nas redes. “O que acontece é que muitos pais acabam expondo demasiadamente as crianças e adolescentes, no chamado oversharenting”. Isso pode ser prejudicial, tanto pela segurança quanto por poder gerar constrangimentos.”
De fato, além dos perigos mais futurísticos, como deepfakes e roubo de identidade, a exposição de crianças pode também causar impactos negativos mais comuns, como o bullying na escola ou o cancelamento.
Por mais que a maioria dos pais poste suas fotos e vídeos cheios de boas intenções — sejamos sinceros: é muito difícil resistir à vontade de compartilhar com os amigos o seu filhote fazendo alguma gracinha na sua frente — é impossível controlar o que será feito com aquelas cenas uma vez que chegam à internet. Na prática, ressalta Patrícia, é muito difícil eliminar da web um conteúdo que tenha sido publicado.
A situação se agrava quando o compartilhamento de imagens tem intenções menos… nobres, digamos. Em busca de likes ou monetização, tem se tornado comum encontrar genitores que filmam seus filhos em situações constrangedoras ou em pegadinhas em troca de engajamento. O #eggcrackchallenge, por exemplo, foi um “desafio” que viralizou no TikTok em 2023, e que consistia em pais quebrando um ovo na cabeça dos seus filhos na hora de fazer um bolo. Basta uma busca rápida na rede chinesa para ver as reações das crianças: choro, mágoa, surpresa — enquanto os pais aparecem rindo ao fundo.
“Em vídeos para ganho de likes, supõe-se uma autorização da criança — mas não é de responsabilidade dela autorizar. As crianças não são capazes de autorizar, porque ainda não desenvolveram a maturidade neuropsicológica para lidar com as consequências de sua exposição a curto e longo prazo”, diz o psicólogo parental Filipe Colombini, CEO da Equipe AT, empresa com foco em atendimento terapêutico.
Aqui é importante lembrar o óbvio: crianças não serão crianças para sempre. Aos poucos, estamos testemunhando a primeira geração de bebês que tiveram suas infâncias inteiras expostas nas redes chegando à adolescência — e não gostando do que veem. “Encontro adolescentes nessa situação. Alguns relataram orgulho da exposição e outros demonstram receio e vergonha. A vontade de ser aceitos pelos pares faz com que eles julguem o que foi exposto na internet”, diz Colombini. “Já adianto que isso pode ter muitas consequências e efeitos psicológicos, como impacto na autoestima, dificuldade de interação, medo.”
Equilíbrio delicado
Oito anos antes de se tornar mãe, a jornalista Daniela Arrais já sabia que não exporia seu filho nas redes. A decisão foi tomada depois de uma conversa com uma amiga, que na época tinha uma bebê pequena. “Perguntei por que ela não mostrava o rosto da filha nas redes e ela disse algo como: ‘Vejo-a como um ser humano independente, mesmo que tenha acabado de nascer. Não sei se ela vai querer ver sua vida exposta na internet quando tiver idade para entender.’”
Isso marcou Daniela que, juntamente com a esposa Laura, resolveu fazer o mesmo quando o filho das duas nasceu, há quase 3 anos. Seu Instagram, com dezenas de milhares de seguidores, tem imagens do menino de costas, com o rosto tampado e recortes de mãos e pés.
A decisão causou certa confusão na vida da mãe, que compartilha a sua própria rotina nas redes. Será que ela ia conseguir ficar sem postar sobre um aspecto tão importante do seu dia a dia?
“Tenho conseguido. Falo de como a existência dele reverbera em mim — mas sem o rosto dele. A parte mais chata é quando amigos têm uma foto maravilhosa da gente e querem postar, e a gente fala que não quer mostrar o rosto dele. Aí me sinto antipática”, diz Daniela. Felizmente, tem se tornado cada vez mais comum fotos de crianças no Instagram com stickers ou emojis cobrindo o rosto. “Prefiro lidar com isso agora, do que com um futuro que a gente ainda não sabe como vai ser.”
De fato, ainda estamos navegando por mares desconhecidos quando o assunto é exposição. De um modo geral, os especialistas recomendam cautela. “Aconselho não postar de jeito algum e, caso haja algum tipo de postagem, não mostrar corpos e rostos das crianças”, diz o psicólogo parental Filipe.
A advogada Patrícia vai na mesma linha: “Aconselharia a usar com moderação. Devemos lembrar que estamos formando a reputação digital do filho e da família. É um legado que irá acompanhá-lo ou assombrá-lo pelo resto da sua vida adulta”, diz.
Ao mesmo tempo, vivemos em 2024. O quanto que, realisticamente, é possível lutar contra uma presença digital dos nossos filhos? O caminho talvez seja tomar decisões conscientes: parar para pensar no assunto, não postar no automático, adiar a exposição dos filhos ao máximo, não usar crianças como meio de sustento, permitir que elas pensem no assunto, jamais constrangê-los nas redes.
“Quando sabemos dos perigos, a primeira vontade é não sair de casa, é ‘puxar tudo da tomada’. Mas não é a melhor forma de agir. Essas crianças vivem em uma sociedade digital. Por mais que os pais queiram postergar o convívio nas redes, ele vai acontecer. Melhor estarmos preparados, e ensinar os filhos a fazerem um uso com reflexão”, diz Patricia Peck.