Sem lives milionárias, artistas independentes encaram abandono na pandemia
O setor artístico encara um grande paradoxo. Ele nunca foi tão necessário e nem tão pouco valorizado financeiramente
O setor artístico encara um grande paradoxo. Ele nunca foi tão necessário – cresceu o consumo de filmes, livros e músicas durante o isolamento – nem tão pouco valorizado financeiramente. Enquanto figuras renomadas fazem lives milionárias, dançarinos, cantores e atores independentes enfrentam uma grave crise de renda e precisam lutar pela sobrevivência
O respiro que alivia mentes e corpos confinados em casa. É esse o papel de grande responsabilidade que a cultura tem assumido nos últimos meses. Mesmo com turnês e festivais adiados, cinemas fechados e livros entregues só por delivery, a arte foi, durante o isolamento, a única ponte para o mundo externo e para a fantasia. No Brasil, as lives viraram fenômeno, conectando milhões de pessoas em festas virtuais. Entretanto, esses recordes acumulados na crise destinaram-se a uma parcela pequena da classe artística. A mais vulnerável, sem contratos fixos, se viu absolutamente desprotegida e, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), de 2018, dos 5 milhões de trabalhadores do setor, 44% são autônomos.
Algumas ações de empresas do ramo se propuseram a ajudar. A ferramenta de streaming Spotify lançou, com a União Brasileira de Compositores, o fundo Juntos pela Música, que remunera artistas com dificuldades financeiras. O Itaú Cultural também se movimentou criando o edital Arte Como Respiro: Múltiplos Editais de Emergência para oferecer renda e manter as produções adaptadas aos impasses da pandemia.
“Digo para mim mesma que devo manter a calma para continuar fazendo o que amo
Darlita Albino, dançarina e professora
e em que acredito”
Apesar dessas iniciativas, seria impossível auxiliar todos os artistas do país de forma digna sem a intervenção do governo. A secretaria responsável pela cultura, encabeçada por Regina Duarte até maio, foi questionada inúmeras vezes por sua inércia em um cenário tão complicado. No início de junho, o Senado aprovou a Lei Aldir Blanc, que garante auxílio emergencial ao setor cultural – o valor total liberado poderia chegar a 3 bilhões de reais. Ela foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no dia 29 de junho, mas ainda não havia data prevista para liberação da verba até o fechamento desta edição.
“Estamos tentando nos reinventar. Não tenho renda de outros lugares. Precisaria do auxílio emergencial. Pedi o que foi lançado para a população em abril, mas não saiu da análise desde então”, conta a dançarina Darlita Albino, de São Paulo. Seu primeiro contato com a arte foi nos espaços públicos, e a paixão a levou à Escola Livre de Dança, onde se formou com uma bolsa de estudos. Além de dar aulas para crianças na Ayodele Balé, Darlita dança em apresentações das cantoras Gaby Amarantos e Drik Barbosa. Com os cursos suspensos e os shows cancelados, ela ficou sem perspectiva de futuro profissional e financeiro. “Digo para mim mesma que devo manter a calma para continuar fazendo aquilo que amo e em que acredito.”
O mantra de Darlita rege também a carreira da música paulistana Gabrielle Rainer Constantino, 23 anos. “Por sorte, consegui dar aulas online, mas o primeiro salário veio só em junho, quando já fazia três meses que estava sem renda”, afirma ela, que produziu independentemente sua canção de estreia, Fúria. Antes da pandemia, tinha investido na gravação de seu primeiro EP, mas teve os planos interrompidos e não há previsão de volta. A rede de apoio que se manifestou durante a pandemia foi essencial para mostrar as necessidades desse setor, que sempre sofreu com a precarização. Mesmo com a reabertura gradual em curso, alguns artistas ainda devem demorar a se estabilizar. E é por usufruir – e depender – da cultura nos bons e maus momentos que a população deve olhar por ela. Para além da pandemia, precisamos pensar em um sistema de colaboração entre organizações públicas e privadas que dê o devido valor a essa classe tão essencial. “Essa crise me faz questionar muita coisa. Escolher trabalhar com arte no Brasil exige coragem. Mas não vou desistir porque sei que nós, artistas, somos importantes. A arte mantém a sociedade viva e com fôlego”, conclui Gabrielle.
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