Peça resgata história de Pagu, pioneira feminista e militante brasileira
Monólogo 'Dos Escombros de Pagu' está em cartaz em São Paulo até o dia 19 de fevereiro
No palco, é a madeira do chão que preenche quase todo o espaço. Ao fundo, há duas cortinas brancas, quase transparentes. Do lado direito, uma cadeira e uma mesa, ambas de madeira, sobre a qual se acumulam alguns papéis. Em frente, um punhado de livros repousa no soalho. Um cenário adequado para uma mulher sem lugar, como foi Patrícia Galvão (São João da Boa Vista, 1910 – Santos, 1962), conhecida como Pagu, artista modernista e pioneira feminista no Brasil, cujo nome já foi sinônimo de mulher que não leva “uma vida direita”. É na voz da atriz Thais Aguiar que ela conta sua história, com sinceridade e crueza, mas (quase) sem ressentimentos no monólogo Dos Escombros de Pagu, dirigido por Roberto Lage e em cartaz até o dia 19 de fevereiro na Oficina Cultural Oswald de Andrade em São Paulo.
O texto é baseado no livro homônimo de Tereza Freire, historiadora cuja pesquisa de mestrado resgatou a biografia e obra da escritora, militante política, ilustradora, comunista e crítica literária e teatral que chocou a sociedade burguesa à qual pertencia ao lutar por justiça social e subverter os valores da “tradicional família brasileira”. Apesar de sua trajetória, no mínimo, impressionante, Pagu foi vítima do apagamento histórico que sofrem muitas mulheres e começou a sair do esquecimento em 2014, quando Augusto de Campos publicou sua antologia poética e questionou: “Quem resgatará Pagu?”
Tereza considera que, para além das consequências do machismo estrutural, a figura de Pagu foi deixada de escanteio na narrativa oficial da cultura, arte e política do país porque ela, de fato, não se encaixava em lugar algum. “Ela nunca foi bem aceita pelo Partido comunista porque vinha da burguesia, e era execrada por essa mesma burguesia porque largou marido e filho para militar”, explica. De fato, no monólogo, uma das primeiras frases da personagem é: “Minha primeira prisão foi minha família”.
Ainda criança, Pagu percebia a hipocrisia da sua própria família e nas demais casas de bem dos nobres bairros paulistanos, sustentados pelas traições dos maridos e lágrimas silenciosas das mulheres. Muito questionadora, se temia que ela se tornasse uma má influência para a irmã mais nova, Cleo, mas a primogênita pretendia fugir dos laços de sangue antes que isso pudesse acontecer. O plano foi impedido por uma gravidez aos 14 anos, fruto do relacionamento com o cineasta Olympio Guilherme, casado e oito anos mais velho que ela, que terminou em um aborto. Foi o primeiro desgosto que deu aos seus.
Um ano depois, passou a colaborar com o Jornal do Brás sob o pseudônimo Patsy, iniciando o ofício jornalístico que exerceria até o fim da vida. Enquanto cursava a escola normalista de magistério, apenas para agradar os pais, conheceu o poeta Raul Bopp, que lhe presenteou com um poema e o apelido com o que ficou conhecida e foi o responsável por introduzi-la aos salões modernistas. Aos 18 anos, Pagu virou, então, a menina dos olhos do casal Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. “Quando eles a conheceram, ambos ficaram encantados, porque na sua escrita já havia modernismo, ela unia desenho e palavra de uma forma totalmente entranhada no seu tempo, não demorou a virar musa deles”, conta Tereza.
O que era admiração mútua logo evoluiu para um romance e Oswald rompeu com Tarsila para casar com Pagu quando esta tinha 20 anos, chocando a elite artística e intelectual paulista. No canto esquerdo do palco teatral, é um retrato da pintora modernista que observa Pagu enquanto ela narra as peripécias de sua vida, como quem julga em silêncio. Encarnada por Thais Aguiar, a jovem pede perdão à mulher que lhe abriu sua casa e que ela traiu. “Era a ti que amava, Tarsila. Você era a mulher que eu queria ser”.
Uma verdadeira comunista
“Pagu aparecia em muitos documentos históricos apenas como uma amantezinha do Oswald, mas foi muito mais que isso, largou a família burguesa para militar no comunismo, escreveu o primeiro romance proletário da literatura brasileira [Parque Industrial, publicado em 1933], decidiu lutar pelos pobres”, enumera Tereza. O despertar político da jovem aconteceu em uma viagem à Argentina, quando, aos 20 anos, deparou-se pela primeira vez com a escolha entre o instinto maternal (seu primogênito, Rudá, era então um bebê) e seu desejo de ganhar o mundo. Ela foi sozinha e, ao voltar, em 1930, ela e o marido passaram a militar no Partido Comunista. Um ano depois, a falta de pudor que sempre lhe rendeu julgamentos e acusações sociais mostrou-se também coragem: Pagu participou ativamente numa manifestação de trabalhadores do Porto de Santos, onde, em confronto com a polícia, ela enfrentou a cavalaria para recolher o corpo agonizante do estivador e líder social Herculano de Souza. Foi detida pelos soldados de Getúlio Vargas e seu rosto estampou a capa de todos os jornais como “a primeira presa política do Brasil”.
Pagu iniciou sua militância no momento de stalinização do Partido Comunista, que determinou que todos os militantes deveriam trabalhar em fábricas. Mais uma vez, ela abandonou o filho para exercer o trabalho pesado. “O que mais admiro em Pagu é sua coerência. Ela podia ter feito outras escolhas e ter continuado a ser a menininha querida dos modernistas, mas fez escolhas. Por isso, não é uma vítima. Levou a sério o dogma de que ‘uma verdadeira comunista não tem família'”, diz Tereza.
Apesar de toda a sua dedicação – no monólogo, é revelado que ela teria se prostituído em troca de informações para o Partido – o próprio regime acusava-a de ser uma “agitadora individual, sensacionalista e inexperiente”, e ordenou que ela saísse do país para não atrair mais atenção sobre suas atividades. Depois de meses na prisão, ela viajou o mundo como jornalista, passou pelos Estados Unidos, Japão e China, entrevistou Sigmund Freud, pai da psicanálise em um trem, e foi a única repórter latino-americana a cobrir a coração de Pu-Yi, o último imperador chinês. Foi por meio dele, aliás, que Pagu trouxe ao Brasil as primeiras sementes de soja. Depois, ela partiu para a França, onde filiou-se ao Partido Comunista Francês, mas acabou presa e deportada por usar documentos falsos.
Já no Brasil, em 1935, participa da revolução organizada pela Aliança Nacional Libertadora (ANL) e, junto com muitos amigos, é novamente presa, dessa vez por um período de cinco anos, e torturada. “Passavam-se as horas e os dias e as semanas e o sangue escorrendo e os verdugos se revezando para me vencerem ou me enlouquecerem. Descansava no hospital e voltava para a tortura”, conta ela própria em texto reproduzido por Augusto de Campos. Quando finalmente foi solta, pesando pouco mais de 40 quilos e com sérias sequelas físicas e emocionais, disse a todos que esquecessem o nome Pagu. Para ela, acabava ali a militância.
Passou os anos seguintes dedicando-se à sua produção artística, enquanto enfrentava uma forte depressão que acarretou em diversas tentativas de suicídio. Morreu de câncer aos 52 anos e, até o derradeiro momento, sua voz foi um clamor por liberdade. “Desabotoa a minha gola…” foi a última frase que disse à família antes de falecer. “É por isso que acho absolutamente necessário essa e outras montagens sobre Pagu. Para inspirar outras mulheres e meninas a escreverem, militarem, criarem seus coletivos”, diz Tereza. Para que outras como ela não caiam no esquecimento da História. Para que sigamos resgatando Pagus.
Dos Escombros de Pagu
Datas: 14 a 19 de fevereiro de 2022.
Horário: Segunda a Sexta 20h e Sábado 18h.
Local: Oficina Cultural Oswald de Andrade
Endereço: Rua Três Rios, 363 – Bom Retiro – SP/SP.
Gênero: Drama.
Duração: 70 minutos.
Classificação: 14 anos.