Erika Lust: “A pornografia é um espelho direto da nossa sociedade”
Combatendo ângulos ginecológicos, objetificações e fantasias masculinas, ela revolucionou o mercado ao apostar em narrativas com perspectivas femininas
Depois de trabalhar durante anos como uma atriz nessa indústria, a diretora sueca Erika Lust, de 45 anos, consolidou-se nos últimos anos como um dos principais nomes da pornografia no mundo. Combatendo os ângulos ginecológicos, mulheres objetificadas e fantasias masculinas em evidência, ela revolucionou o mercado ao apostar em narrativas que privilegiam as perspectivas e o prazer femininos. Em 2004, lançou seu primeiro filme, o curta-metragem The Good Girl, que foi disponibilizado para download gratuito e chegou a dois milhões de visualizações nos primeiros meses. Hoje, ela é dona de um império que conta com as produtoras e distribuidoras XConfessions, Lust Cinema, Else Cinema e The Store by Erika Lust.
Na edição de outubro de CLAUDIA, na qual publicamos uma reportagem que debate os limites e intersecções entre a pornografia e o feminismo, Erika é enfática na defesa de um pornô que, se não puder se autodenominar feminista, seja minimamente ético: “A pornografia produzida eticamente conta histórias de personagens que são tratados de forma justa e que podem explorar e expressar plenamente suas identidades e sexualidade. Queremos que nossos artistas existam na frente da câmera sem serem reduzidos à sua aparência, características físicas ou cor da pele”, diz. Leia abaixo a entrevista completa:
Você prefere dizer que é uma feminista que faz pornô do que afirmar que faz pornô feminista. Por quê?
Acredito que o feminismo é um conceito amplo, que engloba muitos outros. Para mim, feminismo é sobre lutar pela real equidade de gênero e para que pessoas de todos os gêneros tenham espaço para viver e desfrutar de seus desejos sexuais sem vergonha. Ainda estamos vendo um aumento muito lento na diversidade de gênero nos bastidores da indústria pornô, e ainda há muito terreno a ser coberto. A maior parte da indústria ainda é dirigida por homens e para homens, e é por isso que prefiro dizer que sou uma feminista fazendo pornografia. Em nossas empresas, temos muitas mulheres e pessoas queer na frente e atrás das câmeras, o que é muito empoderador! Para mim, há poder nessas figuras tomando a iniciativa de seu prazer e também em não ter medo de ocupar lugares relevantes nos bastidores, como diretoras, roteiristas, operadoras de câmera, produtoras… Dessa forma, todo o processo de gravar um filme se torna um processo feminista, já que todos compartilhamos os mesmos valores.
Quais elementos são indispensáveis para fazer uma pornografia ética?
Para mim, existem elementos cruciais para fazer uma história acontecer. Tomo muito cuidado com os filmes são filmados, cada detalhe conta, e é importante que seja uma obra tão visualmente atraente quanto qualquer outro produto audiovisual. Por outro lado,focar no prazer e celebrar a autonomia sexual de todos os envolvidos são alguns dos pilares do meu trabalho. Os valores das minhas produtoras e distribuidoras são o que garante que nossa pornografia seja produzida eticamente. Elas estão relacionadas à forma como representamos prazer e diversidade, garantindo conforto, cuidado e remuneração justa aos artistas que trabalham conosco.
Garantir que todos estejam confortáveis no set é uma obrigação, e é por isso que temos um coordenador de intimidade em todas as filmagens para que os artistas possam discutir suas necessidades e limites antes, durante e depois de cada cena gravada.
Quais são as principais diferenças entre um pornô ético e o pornô mainstream?
Historicamente, o pornô mainstream tem sérios problemas em relação à brecha de orgasmo [só os homens gozam, as mulheres, não], à fetichização de diferentes etnias e à falta de diversidade de corpos, gêneros e raças. Já a pornografia feita eticamente tenta contar histórias com personagens com as quais as pessoas possam se identificar, com indivíduos que são tratados de forma justa, humana e profissionalmente, e que podem explorar e expressar completamente suas identidades e sua sexualidade. Queremos que nossos artistas existam na frente da câmera sem serem reduzidos à sua aparência, características físicas ou cor da pele. Estamos cientes de que muitas pessoas ao redor do mundo desejam se ver representadas no conteúdo que assistem. Então, por que não dar isso a elas?
Ao contrário da pornografia “convencional”, o pornô ético geralmente está disponível por trás de um paywall. Custa dinheiro fazer um filme adulto com qualidade cinematográfica, boa fotografia, pagar os artistas, todos os departamentos e a pós-produção de forma justa. Todos devemos estar mais conscientes do impacto que temos quando pagamos por nossa pornografia. Quando você paga pelo seu pornô, está dando valor às pessoas que o fazem, apoiando-as a fazer coisas diferentes na indústria, a ser criativas e focar na qualidade e não na quantidade. Todos devemos estar cientes de que assim, como em qualquer outra indústria, como consumidores, temos o poder de causar impacto na forma como as coisas são produzidas e distribuídas.
Você acredita que a pornografia que subjuga e violenta mulheres deixará de existir algum dia?
Uma coisa sobre a qual precisamos refletir é que a pornografia não é inerentemente ruim ou carregada de violência. Nossa sociedade é. Vivemos em uma sociedade que normaliza a violência contra grupos marginalizados, como mulheres e pessoas dissidentes de gênero, assim como o racismo, o capacitismo, a gordofobia e assim por diante. As redes sociais são mais claro exemplo disso: profissionais do sexo e educadores sexuais continuam sendo banidos, cancelados ou silenciados, enquanto contas que pregam violência, transfobia e homofobia continuam funcionando sem problemas. Se vemos um filme pornô que subjuga as mulheres, o problema não está no pornô em si, mas na sociedade em que esse filme foi concebido. A pornografia é um espelho direto do mundo em que vivemos, e temos que parar de culpá-la por tudo e começar a abordar os problemas reais. Nós, como seres humanos, somos seres sexuais e, em algum momento de nossas vidas, consumiremos conteúdo sexual. Não devemos fazê-lo, então, de maneira informada, segura e socialmente responsável?
Este ano, você criou The Porn Conversation, uma iniciativa para que pais e educadores conversem com crianças e jovens sobre educação sexual. Você considera que a pornografia é especialmente prejudicial aos homens jovens, que performam sua sexualidade com base no que assistem?
Hoje em dia, quase todo mundo tem acesso à internet e as crianças estão ganhando dispositivos conectados em idades cada vez mais precoces. As crianças são curiosas e, em algum momento, vão querer saber sobre sexo e tirar dúvidas. Onde você acha que eles vão procurar essas informações? Na internet, claro. Os jovens geralmente não têm cartão de crédito, então acabam em sites gratuitos onde não encontrarão respostas precisas para as perguntas que têm, e isso pode criar muitas expectativas irreais quando se trata de seus primeiros verdadeiros encontros sexuais na vida.
Temos que conversar com nossos filhos sobre sexo e pornografia. Ela pode ser uma ótima ferramenta para abrir nossas mentes sobre sexualidade, diversidade e normalizar diferentes formas de corpo, aparências, gênero, fantasias, você escolhe! É disso que trata o The Porn Conversation. Devemos ter uma conversa aberta sobre tudo isso para que nossos filhos não cresçam sentindo vergonha do sexo e de sua própria sexualidade, e para que eles entendam o que são conceitos básicos como consentimento, prazer e comunicação. Ao criar o pornô que estamos criando e ao abordar as questões que nossos filhos têm na era da internet, estamos trabalhando para um mundo onde eles possam ter uma vida sexual plena de alegria e prazer em igualdade de condições, independentemente do gênero.
Nesse sentido, qual é o papel da pornografia no feminismo?
A pornografia pode ser uma ferramenta incrível para pessoas de todos os gêneros aprenderem sobre sua sexualidade, descobrirem novas fantasias, caprichos, desejos… Tudo isso sem vergonha. Pode nos ajudar a curar o relacionamento com nossos próprios corpos e vê-los como os corpos sexuais que são, pode nos ajudar a nos sentirmos desejáveis. Sabemos que a pornografia é um cenário fictício, assim como qualquer outro gênero de filme, portanto, ela também pode nos emocionar quando nos relacionamos com as coisas que estamos vendo. Então, eu acho que a pornografia tem muito contribuir no feminismo, na luta pelos direitos humanos básicos e na luta pelos direitos e visibilidade de todas as minorias. Às vezes parece que a sociedade pensa que a pornografia é essa coisa obscura que deve ser mantida no escuro, onde se despejam todas as falhas da sociedade, quando, na verdade, é exatamente o contrário. Reafirmando a importância da pornografia e lutando por um relacionamento saudável com ela, também estamos desafiando e sacudindo as velhas estruturas hierárquicas e quebrando mitos e tabus sobre como nossos desejos devem ser vividos.