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Herdeiras de Glória Maria: Conheça o projeto

O grupo reúne cerca de 60 mulheres da comunicação que encontraram um espaço para aquilombar suas vivências

Por Bárbara Poerner
15 ago 2023, 08h18

No dia 14 de março de 2022, as jornalistas Claudia Lima, Cris Guterres e Isis Vergilio dividiram a bancada do programa Roda Viva. A entrevistada da vez era Glória Maria — que completaria mais um ano de vida agora em agosto, mas, infelizmente, faleceu em fevereiro deste ano. Poucos meses depois, Cris compartilhou com a sua amiga Letícia Vidica a ideia de criar um grupo só de profissionais negras da comunicação. Primeiro, ambas marcaram um jantar em São Paulo, que reuniu em torno de 20 mulheres.

O encontro deixou visível a necessidade de agrupamento. “Vimos que todas eram mulheres negras, em sua pluralidade, em busca da mesma coisa: acolhimento”, relembra Cris, apresentadora na TV Cultura e colunista no Uol. Surgiu, então, o Herdeiras de Glória Maria, primeiro no WhatsApp. “Temos jornalistas na faixa dos 20 anos, outras próximas ou com mais de 50”, aponta Letícia, apresentadora do CNN Plural e do quadro Vozes Pretas. Para ela, que experienciou espaços solitários na comunicação, o grupo “é relevante porque podemos olhar para o lado e ver que não estamos sozinhas”. Hoje, são quase 60 participantes, que atuam também no offline, realizando encontros em São Paulo, capital onde a maioria está baseada.

Entre apresentadoras, assessoras de imprensa, produtoras, repórteres e editoras, o que as une, além da profissão, é a paixão por uma das maiores figuras do jornalismo nacional. “Aos sete anos, eu via Glória na TV”, relembra Débora Freitas, âncora do CBN São Paulo e integrante do Herdeiras desde sua formação. “Quando olhava aquela mulher negra nos jornais, a cada dia falando de um assunto diferente, pensava: ‘quero ser tão inteligente quanto ela.’”

Letícia Vidica, apresentadora do CNN Plural.
Letícia Vidica, apresentadora do CNN Plural. (CAMILA TUON/Reprodução)

“A força do coletivo é muito boa, é ancestral. Sempre tivemos que estar assim para resistir e persistir, para se entender enquanto pessoa”

Letícia Vidica
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Uma inspiração para todas as entrevistadas desta matéria — e inúmeras outras mulheres negras. “Foi por causa dela que conseguimos chegar nesse lugar. Queremos mostrar que é possível, para quem vem depois da gente, que não precisa ser tão difícil como foi para muitas de nós; e também que você não precisa ser uma supermulher”, diz a assessora de imprensa da Secretaria da Educação do Governo de São Paulo, Talita Amaral.

Ela encontrou no Herdeiras um lugar para “celebrar nossas vidas, a caminhada que temos e fazer um pacto de ajuda e cumplicidade”. E não é só a referência à Glória que tem uma conotação de destaque. “A palavra herdeiras é significativa. Pessoas negras [quase sempre] não recebem heranças em dinheiro, nossas heranças são do conhecimento, oralidade, ancestralidade”, pontua Cris.

Os assuntos tratados por elas também são múltiplos. Fala-se de carreira, indicações de vagas e desabafos profissionais. São contadas e ouvidas histórias do cotidiano, sugestões de restaurantes e até indicações de bons médicos. A ideia, sempre que possível, é conectar a comunidade negra fora das telas, na vida real. É evidente que as questões raciais permeiam o grupo, mas elas não querem falar só de racismo.

“As pessoas não gostam de ficar falando disso. Trata-se muito mais de levar [o grupo] para um lado de acolhimento, de validação, de vivências parecidas”, conta Larissa Januário, apresentadora no canal Sabor e Arte, que também participa desde o início. É algo que podemos chamar de aquilombamento, a criação e a gerência de espaços afetuosos, acolhedores e pertencentes de/para pessoas negras. Para Débora, a conquista chegou: “O aquilombamento veio. O fortalecimento entre nós ajuda a entender que somos protagonistas e que podemos chegar a muitos lugares”.

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Larissa Januário, apresentadora do canal Sabor e Arte.
Larissa Januário, apresentadora do canal Sabor e Arte. (CAMILA TUON/Reprodução)

“Não queremos falar só de racismo. Trata-se muito mais de levar o grupo para o lado do acolhimento”

Larissa Januário

Com tanta gente interessante junta, surgem a todo momento novas ideias e projetos. “Para esse segundo ano, nossa ideia é ser mais propositivo. Devemos dar início a um programa de mentoria, no qual algumas integrantes se disponibilizaram a ser mentoras, outras mentoradas, em áreas específicas”, explica Letícia. O desejo é que, futuramente, o Herdeiras possa oferecer serviços ao mercado da comunicação e garantir um ganho financeiro para as integrantes.

Reconhecer-se é possível

A solidão racial nas redações do Brasil (e do mundo) é uma realidade brutal. Os três maiores jornais impressos nacionais (O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo) têm 84,4% de profissionais autodeclarados brancos, conforme a pesquisa Raça, Gênero e Imprensa: Quem Escreve nos Principais Jornais do Brasil?, lançada em maio deste ano.

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O número não difere muito do estudo divulgado em 2021 pelo Perfil Racial da Imprensa Brasileira, que aponta só 20,2% de pretos e pardos ocupando as redações brasileiras. O que torna a experiência do Herdeiras de Glória Maria inédita para todas as seis entrevistadas nesta matéria, mesmo que elas somem longos anos de brilhantes trajetórias profissionais.

Débora Freitas, âncora da CBN São Paulo.
Débora Freitas, âncora da CBN São Paulo. (CAMILA TUON/Reprodução)

“O aquilombamento veio. O fortalecimento entre nós ajuda a entender que somos protagonistas e que podemos chegar a muitos lugares”

Débora Freitas

“É algo único para mim, nunca tive pares nos locais em que trabalhei”, comenta Claudia Lima, criadora da newsletter Yabás, editora e colunista na Vogue Brasil. Ao que Larissa acrescenta: “Infelizmente, quando você é uma mulher preta, em diversos contextos, se acostuma a ser solitária”.

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A possibilidade é o substantivo que rompe com esse cenário. Foi isso que Glória Maria fez ao ocupar a TV brasileira quando não existia nenhuma mulher negra retinta fazendo isso. É isso que o Herdeiras de Glória Maria está fazendo agora, ao aquilombar diferentes jornalistas negras e inspirar a nova geração de comunicadoras. É um espelho onde se vê através do reflexo. Ou seja, uma possibilidade de se reconhecer em outra mulher negra, mas sem negar as individualidades de cada uma, ao falar e ao ouvir.

Talita Amaral, assessora da Secretaria de Educação de São Paulo.
Talita Amaral, assessora da Secretaria de Educação de São Paulo. (CAMILA TUON/Reprodução)

“Queremos mostrar, para quem vem depois de nós, que é possível, que não é preciso ser uma supermulher”

Talita Amaral

“Posso dividir sobre meu trabalho ou relacionamento, e ninguém vai dizer que é algo da minha cabeça, mas vão dizer ‘isso também acontece comigo’”, conta Cris. Fazer parte, portanto, é valioso para a apresentadora. “Esse grupo representa, para mim, a força das mulheres e da nossa capacidade de articulação para vencer as adversidades que surgem nos caminhos.” Sozinhas, todas já fazem isso, mas com as potencialidades do agrupamento, vão mais longe. Os momentos compartilhados entre elas são as pequenas alegrias da vida adulta. “Em todos os encontros, ficamos extasiadas de estar juntas. Tão felizes de poder partilhar o que pensamos e sentimos — todas falam isso”, comenta Claudia.

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Claudia Lima, criadora da newsletter Yabás.
Claudia Lima, criadora da newsletter Yabás. (CAMILA TUON/Reprodução)

“É algo único para mim. Nunca tive pares nos locais em que trabalhei”

Claudia Lima

Não existe comunicação sem a imprensa negra

Desde o século 19, a imprensa negra tem se desenvolvido no Brasil. Embora normalmente apartadas de redações brancas e hegemônicas, jornalistas e escritoras pretas e pardas criam seus próprios espaços de comunicação, nos quais racializam o ofício jornalístico. Glória Maria, as Herdeiras e outros tantos profissionais fazem parte desta tomada. “Uma das coisas que eu sempre disse ao longo da minha carreira é que ninguém vai construir a história do jornalismo brasileiro sem trazer os nomes de jornalistas negras que estão transformando a realidade da comunicação no país. Temos essa força de marcar presença”, afirma Cris.

A história da população negra está de prova que mecanismos de resistência passam sempre pela coletividade. Tal característica faz com que Letícia Vidica incentive a criação de grupos como o Herdeiras em diversos locais: “A força do coletivo é muito boa. É ancestral, sempre tivemos que estar [em grupo] para resistir e persistir, para se entender enquanto pessoa. Viver assim é algo ancestral que carregamos”. É fato que o antirracismo ainda tem muito para avançar nos espaços jornalísticos. Existem várias pessoas, com medo de perderem seus privilégios, ocupando cadeiras em diversos meios. “Quando a comunicação era totalmente branca, ninguém se incomodou. Agora que estamos chegando, estão incomodados”, reforça Cris.

Cris Guterres, apresentadora da TV Cultura.
Cris Guterres, apresentadora da TV Cultura. (CAMILA TUON/Reprodução)

“Ninguém vai construir a história do jornalismo brasileiro sem trazer as jornalistas negras que estão transformando a comunicação no país”

Cris Guterres

Isso é um sinal do porquê o grupo deu tão certo. “Crescemos rápido graças a existente demanda e necessidade de se encontrar”, acredita Larissa. “Não temos só uma, mas várias herdeiras, e elas estão espalhadas pelo Brasil todo”, completa Cris, ao ponderar que não há volta desse caminho. E, se um passo cria um chão, o que as diversas herdeiras de Glória caminhando podem criar beira o infinito. “Quem sabe um dia fazemos um grande encontro de Herdeiras de Glória Maria? É um sonho possível”, considera Claudia. Afinal, vale o lembrete: tudo que é real já foi um dia imaginado.

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